Garantias do Consumo

Implementar uma plataforma virtual do superendividamento é necessidade

Autor

  • Leonardo Garcia

    é procurador do estado do Espírito Santo mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP professor de diversos cursos e autor de diversas obras jurídicas tendo atuado como assessor do relator no Senado do projeto de lei do superendividamento.

3 de maio de 2023, 8h00

Após mais de nove anos de trâmite no Congresso Nacional, finalmente foi aprovada a Lei 14.181 (de 1º de julho de 2021), que altera o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso para tratar de um dos temas mais sensíveis da sociedade nas últimas décadas.

Atualmente, mais de 70% da população brasileira encontra-se endividada (o que não significa que esteja superendividada) [1]. Porém, 30% da população estão inadimplentes, percentual alarmante e que demonstra um grave problema que estamos enfrentando.

Estima-se que metade desses inadimplentes estejam em uma situação de superendividamento, ou seja, mais de 30 milhões de brasileiros não conseguem mais pagar suas dívidas [2]. E, com a pandemia do coronavírus, a tendência é que esse número aumente.

Essa situação que torna o consumidor superendividado, antes de ser um problema jurídico, é um problema social. O superendividamento causa exclusão social (expressamente reconhecido no texto do CDC no artigo 4º, X). Ela acarreta uma série de problemas na vida do cidadão/consumidor, na sua família e, por via reflexa, na sociedade. O superendividamento acarreta na vida do consumidor e de sua família uma existência indigna, sem acesso a padrões mínimos de subsistência.

Visando conter e amenizar esse grave problema social, a Lei 14.181/2021 trouxe princípios e diretrizes fundados em dois pilares/objetivos: prevenir (para evitar a ocorrência do superendividamento) e tratar (aqueles que já se encontram superendividados).

Como toda doença, o tratamento muitas vezes é demorado e complexo. Exige exames, consultas, medicação e vários procedimentos. O superendividamento, da mesma forma, exige uma certa complexidade. Não basta simplesmente renegociar as dívidas do consumidor.

O que se pretende é o resgate de sua dignidade, fazendo com que não mais entre nesta situação (de inadimplência permanente). Para isso, é necessário entender os motivos que levaram ao superendividamento, contar com apoio psicológico e de assistentes sociais, contar com economistas para elaboração de um plano de pagamento viável e que reserve uma quantia para o mínimo existencial, além, é claro, de toda uma estrutura dos órgãos públicos visando conciliar as dívidas e, caso necessário, implementar um plano compulsório.

Nesse sentido é que a Lei 14.181/2021 trouxe um arcabouço próprio visando tratar o consumidor superendividado através dos artigos 104-A ao 104-C, incluindo vários players como responsáveis por esse desiderato: Judiciário (artigo 104-A) e órgãos públicos do Sistema Nacional, mais especificamente os Procons, Defensorias Públicas e Ministérios Públicos (artigo 104-C).

Os desafios do tratamento do consumidor superendividado são enormes. A finalidade da lei é o resgate da dignidade do consumidor e de sua família, reinserindo-os novamente na sociedade de consumo. Não basta somente renegociar as dívidas existentes. É preciso entender os motivos que levaram o consumidor a esta situação degradante, permitindo que, ao sair, não volte novamente a se superendividar. O tratamento do consumidor, assim, é complexo e multidisciplinar.

Para esse mister, é necessário primeiramente providenciar o acolhimento do consumidor superendividado. Antes de qualquer providência, é necessário viabilizar ao cidadão superendividado a possibilidade de atendimento psicológico (não raras vezes há relatos de consumidores que entram pela porta dos Procons chorando em razão da situação de superendividamento e dizendo que querem tirar a própria vida.)

Assim, primeiramente há necessidade de contar com psicólogos nos órgãos públicos para providenciar esse acolhimento do consumidor.

Em segundo lugar, é necessário, em muitos casos, entender os motivos que levaram o consumidor a se superendividar. É preciso compreender a realidade familiar, com análise do quantitativo de renda e dos custos de vida. Avaliar se estamos diante de um superendividado ativo e/ou passivo [3]. Para tanto, é preciso contar, nesses casos, com auxílio de assistentes sociais que detêm expertise para esta análise.

Em terceiro lugar, é necessário contar com economistas para a elaboração do plano de pagamento do consumidor, de modo que ele consiga efetuar os pagamentos no decorrer do tempo (lembrando que o prazo máximo por lei é cinco anos) e ainda consiga sobreviver com dignidade (reserva do mínimo existencial).

A elaboração de um plano de pagamento, sem entender a realidade do consumidor e de sua família, não servirá para tratarmos efetivamente o superendividamento. O consumidor não conseguirá pagar as prestações ajustadas e acordadas, voltando à situação de superendividado e, portanto, de excluído socialmente. É como se adotássemos o tratamento errado para a doença. Ou seja, a doença (superendividamento) persistirá, podendo até mesmo se agravar.

Por fim, é necessário que os órgãos, incluindo o Poder Judiciário, contem com servidores treinados para receberem o consumidor no atendimento prévio; para realizarem as intimações dos credores; analisarem a documentação referente às dívidas, para ajudarem o consumidor na elaboração do plano e do mínimo existencial; para acompanharem o pagamento do plano (verificarem se o consumidor está adimplente em relação ao acordado no plano); conciliadores e mediadores para realizarem a audiência global, além de estrutura física e operacional para o cumprimento de todas estas funções.

Assim, considerando a necessidade de equipe multidisciplinar e estrutura suficiente para atender mais de 30 milhões de superendividados, espalhados por todos os cantos deste país, é necessário praticamente uma "nova" estrutura dos órgãos administrativos e também do Judiciário para tratar eficientemente a problemática (doença social) que é o superendividamento.

Isso sem contar a necessidade de instauração de novos núcleos, principalmente dos Procons e da Defensoria Pública, em praticamente todas as cidades (aos menos comarcas) para realização do atendimento e tratamento do consumidor.

Em relação ao Judiciário, haverá também a necessidade de mais juízes e estrutura para realização de audiências globais com os credores, com instalação de novos Cejuscs no interior dos estados. As audiências de conciliação, dependendo da quantidade de credores, podem durar até quatro horas (ou mais!), dificultando a organização de uma pauta de audiências [4].

Assim, é preciso pensarmos uma solução que consiga de maneira mais efetiva, considerando a complexidade do tratamento, abarcar o máximo de consumidores espalhados nas regiões mais longínquas deste país, possibilitando trazer dignidade novamente para todos e não somente para aqueles que possuem acesso aos Procons, defensorias e ao Poder Judiciário. Estamos diante de um cenário novo para a sociedade brasileira. Nunca antes tivemos a necessidade de resolver uma situação com tamanha complexidade e gravidade e que tem causado inúmeros problemas sociais.

Realizar o atendimento individual presencial, como atualmente é feito, demanda tempo do servidor, estrutura física, espaço para audiências globais contendo vários credores, servidores responsáveis pelo envio das notificações, mediadores e conciliadores etc.

Fora que, diante da realidade brasileira, é praticamente impossível disponibilizar toda essa estrutura de pessoal e operacional, em todos os cantos do país, para possibilitar que todos os cidadãos brasileiros, que se encontrem na situação de superendividados, sejam tratados.

Diante desse quadro, a implementação de uma plataforma para a realização do tratamento do consumidor superendividado é uma alternativa que propus quando da minha participação no grupo de trabalho instituído pelo CNJ e coordenado pelo ministro do STJ Marco Buzzi.

A utilização de uma plataforma traria inúmeras vantagens. Primeiramente e talvez a mais óbvia é que o consumidor, bastando ter acesso à internet, através de um aplicativo instalado no celular ou através de um site, possa iniciar o tratamento do superendividamento, sem necessidade de ir presencialmente a um órgão público.

Sabe-se que muitos consumidores deixam de reclamar seus direitos e também buscar ajuda para a situação de superendividamento em razão da dificuldade encontrada em se fazer presente aos órgãos públicos [5]. Muitas vezes, a ida ao órgão público representa um dia de trabalho perdido. Assim, possibilitar que o consumidor, por meio de um simples app ou site solicite ajuda para o tratamento do superendividamento é um passo crucial para conseguirmos dar acesso, de maneira mais efetiva, aos consumidores superendividados espalhados por cada canto deste país.

Claro que a possibilidade de utilização de uma plataforma não retiraria a oportunidade de o consumidor superendividado comparecer pessoalmente a um órgão público, caso tivesse acesso facilmente a um [6].

Em uma abordagem mais direta e objetiva, destacamos as principais vantagens da utilização da plataforma:

1) A possibilidade de a plataforma abranger todo um município ou estado (e até mesmo o país inteiro), sem necessidade de ter, necessariamente, um Procon, Defensoria Pública ou Ministério Público na localidade;

2) A facilidade de o consumidor enviar todos os dados das dívidas (contratos), bem como inserir os dados dos custos de vida através de um site ou aplicativo, não precisando se deslocar presencialmente para solicitar o tratamento;

3) Possibilidade, caso o consumidor requeira ou a própria plataforma sugira, de atuação de um psicólogo ou assistente social, que poderá atender o consumidor de maneira online (pela própria plataforma) [7][8];

4) Possibilidade de o consumidor, de modo fácil, através do celular, enviar uma denúncia de abuso na concessão do crédito (podendo enviar fotos, documentos, etc), e a plataforma notificar o fornecedor imediatamente da reclamação/denúncia (caso este fornecedor já esteja cadastrado). A participação do consumidor como "fiscal da concessão do crédito", denunciando os abusos praticados no mercado, é importante para concretizarmos a fase preventiva da lei;

5) Possibilidade de o envio das intimações e/ou notificações dos credores pela própria plataforma, com comprovação de recebimento, não necessitando do envio de cartas por AR, gerando economia de tempo e custo;

6) Possibilidade de elaboração de um plano de pagamento automatizado, a partir dos dados inseridos pelo consumidor superendividado (dívidas e renda), com parâmetros do mínimo existencial, não necessitando de um profissional de economia para a realização de cada plano;

7) Possibilidade de a plataforma mostrar, com base no big data disponível, gráfico que indique propostas, considerando o credor e o tipo de dívida, com maiores chances de êxito;

8) A possibilidade, embora a lei não preveja, de o credor poder enviar uma proposta de pagamento (os termos em que aceitaria uma repactuação), mesmo antes da apresentação do plano de pagamento, gerando praticidade e transparência;

9) Possibilidade de realização de audiências assíncronas (as partes não precisam estar em contato ao mesmo tempo — simultaneamente), com o envio do plano de pagamento para todos os credores, possibilitando em um determinado prazo que cada um se manifeste pela anuência ou não e, em caso negativo, que esclareça as razões pelo não aceite do plano apresentado. Dentro deste prazo, cada credor terá tempo suficiente para avaliar os dados e a proposta enviada pelo consumidor, podendo aferir, por exemplo, a veracidade das informações.

10) A realização da audiência assíncrona é eficiente porque:

a) O consumidor e os credores não precisam se deslocar até a sede do Procon ou defensoria pública para a realização da audiência;

b) Facilita a participação dos credores que não precisam manter representantes e advogados em cada cidade do país;

c) Possibilita um tempo para que os credores avaliem a veracidade das informações prestadas pelo consumidor;

d) Possibilita um tempo de análise do plano de pagamento por parte dos credores;

e) Evita o constrangimento de o consumidor estar por algumas horas sendo exposto aos credores;

f) Gera economia porque não necessita de estrutura física para as audiências globais e nem de servidores (conciliadores e mediadores) para os atos;

g) Em caso de aceite do credor ao plano de pagamento, é gerado automaticamente termo de acordo, não necessitando de servidor para redigir o termo;

h) Em caso de não aceite do credor ao plano, há possibilidade (em caso de convênio) de envio direto ao Poder Judiciário para o ajuizamento da ação de revisão e repactuação de dívidas (artigo 104-B) com atuação de um advogado ou defensor público;

11) Possibilidade de registro do resumo histórico da negociação, principalmente em caso de não acordo, para subsidiar o magistrado na definição do plano de pagamento compulsório (artigo 104-B), avaliando principalmente se o credor se portou com boa-fé ao tentar conciliar;

12) Possibilidade de acompanhamento do pagamento das prestações do plano acordado e/ou do plano compulsório instituído pelo magistrado.

13) A desjudicialização do tratamento do superendividamento. Sendo efetiva e com acesso facilitado o consumidor irá optar pelo tratamento extrajudicial, deixando o judiciário somente para as hipóteses de não acordo (plano judicial compulsório), gerando economia de custos para a sociedade, uma vez que o processo judicial é extremamente caro.

Assim, essas são algumas das inúmeras vantagens que o uso de uma plataforma pode proporcionar no tratamento do consumidor superendividado.

A vigência da lei nestes quase dois anos foi suficiente para demonstrar que os órgãos públicos e o Poder Judiciário não disponibilizam estrutura e servidores para darmos acesso a todos os brasileiros superendividados — ou ao menos à maioria deles.

A utilização de uma plataforma elaborada especificamente para o superendividamento certamente dará acesso a mais consumidores e gerará facilidades de operacionalização e fluxo do tratamento, com menos servidores e com economia de custos relevantes.

Nos dizeres de Bauman, "não são as crises que mudam o mundo, e sim nossa reação a elas" [9]. Estamos vivendo a maior crise do endividamento e superendividamento da história, e que vem sendo agravada fortemente pela pandemia da Covid-19 [10]. Precisamos, assim, reagir a essa crise (doença) com a vacina correta. Talvez a plataforma seja uma luz nesse sentido.

 


[1] Número de brasileiros endividados chega a 71,4%, o maior desde 2010. Aqui.

[2] Cresce número de endividados; saiba organizar as finanças. Consulta em 27/10/21: https://idec.org.br/idec-na-imprensa/cresce-numero-de-endividados-saiba-organizar-financas

[3] O superendividado ativo é aquele consumidor que se endivida voluntariamente, iludido pelas estratégias de marketing das empresas fornecedoras. Esta categoria se subdivide em duas: o superendividado ativo consciente e ativo inconsciente. O consciente é aquele que de má-fé contrai dívidas convicto de que não poderá pagá-las, com intenção deliberada de fraudar os credores (é o consumidor de má-fé). Por outro lado, o inconsciente é aquele que agiu impulsivamente, de maneira imprevidente e sem malícia, deixando de fiscalizar seus gastos. Acabou, por assim dizer, “gastando mais do que deveria”. São consumidores de boa-fé que acreditavam que conseguiriam honrar com suas obrigações.

Já o superendividado passivo é aquele que se endivida em decorrência de fatores externos chamados de "acidentes da vida", tais como desemprego; divórcio; nascimento, doença ou morte na família; necessidade de empréstimos; redução do salário; etc.

[4] Tive a oportunidade de assistir uma audiência virtual no Cejusc de Porto Alegre em agosto de 2022 que durou mais de três horas. Eram sete credores e um consumidor idoso com mais de 80 anos sem estar assistido por advogado ou defensor público. Não houve apresentação de plano de pagamento por parte do consumidor. A iniciativa da proposta partia de cada credor. Para cada proposta apresentada, havia toda uma discussão sobre as condições, possibilidade de pagamento por parte do consumidor, etc.

[5] Maioria dos consumidores não reclama por seus direitos. Pesquisa realizada pelo Centro de Justiça e Sociedade (CJUS) da FGV Direito Rio. Disponível em: https://direitorio.fgv.br/noticia/maioria-dos-consumidores-nao-reclama-por-seus-direitos. Acesso em: 5/4/2023.

[6] Poder-se-ia questionar que a utilização de uma plataforma excluiria os analfabetos digitais ou os que não dispõem de acesso à internet, situação infelizmente de muitos superendividados, principalmente idosos. Para resolver este problema, bastaria os municípios disponibilizarem alguma secretaria ou local para o recebimento do consumidor. Não precisaria ser necessariamente o Procon ou a Defensoria Pública (até porque em várias cidades estes dois órgãos são inexistentes). Bastaria um servidor municipal para scanear os documentos referentes às dívidas e a renda do consumidor, inserir os dados na plataforma, dando início ao tratamento. Esse consumidor, analfabeto digital e/ou sem acesso à internet, principalmente nas localidades sem órgãos públicos de defesa do consumidor, estão excluídos não somente da sociedade de consumo, mas também do tratamento que a lei disponibiliza para eles. Assim, a utilização da plataforma, com acesso através de parceria com os municípios, possibilitaria acesso a estas pessoas.

[7] Na hipótese de o consumidor analfabeto digital ou sem acesso à internet, bastaria o município (nas localidades sem órgãos de defesa do consumidor) disponibilizar uma sala com acesso a câmeras para o atendimento. Algo muito fácil de se fazer atualmente, principalmente após a pandemia!

[8] Não seria necessário ter psicólogos ou assistentes sociais em cada cidade do país. Bastaria uma central com vários psicólogos e/ou assistentes sociais que poderiam atender os consumidores dos seus próprios consultórios.

[9] Em entrevista à revista Istoé, em 2010.

[10] Número de inadimplentes no Brasil atinge recorde em 2022, diz CNC. Disponível em https://www.poder360.com.br/economia/numero-de-inadimplentes-no-brasil-atinge-recorde-em-2022-diz-cnc/. Acesso em: 5/4/2023

Autores

  • é procurador do estado do Espírito Santo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, diretor do Brasilcon, membro do Condecon-ES, professor de Direito do Consumidor e autor de vários livros jurídicos, entre eles o "Código de Defesa do Consumidor Comentado" (ed. Juspodivm).

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