Opinião

Resolução do CFM que restringe aborto em gravidez de estupro é inconstitucional e ilegal

Autor

  • Marcelo Cheli

    é servidor público federal mestrando em Direito Financeiro e Econômico pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (FD-USP) e pós-graduado pela Unicamp (Direito e Economia) PUC-MG (Direito Tributário e Aduaneiro e Direito Público) e IBMEC/Damásio (Direito e Processo Previdenciário).

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22 de maio de 2024, 18h11

O Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução nº 2.378/2024, que regulamenta o ato médico de assistolia fetal para interrupção da gravidez, nos casos de aborto previsto em lei oriundos de estupro.

Reprodução
assédio sexual estupro

De acordo com o ato normativo, ao médico é vedado realizar o procedimento de assistolia fetal, nas hipóteses de aborto previsto em lei, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas.

Não é pretensão deste artigo discutir questões morais sobre o aborto, tampouco acerca do exercício da medicina, mas de verificar, à luz do ordenamento jurídico vigente, a constitucionalidade e legalidade da resolução acima citada, especialmente no que tange à competência legal do CFM para editá-la.

O médico que praticar aborto, no caso de gravidez proveniente de estupro, não será punido criminalmente, pois o artigo 128, II, do Código Penal (CP) abriga causa de excludente de ilicitude, isto é, o aborto é legal, caso a gravidez da mulher seja oriunda daquele crime contra liberdade sexual.

O CP não estabelece quaisquer restrições à hipótese de aborto no caso de estupro. O CFM pode fazê-lo? Mediante resolução, pode restringir, condicionar ou mesmo impedir que médicos façam os procedimentos de aborto em mulheres grávidas que foram estupradas?

A resolução é inofensiva no que tange ao direito penal, pois qualquer juiz criminal ou representante do Ministério Público podem não  aplicá-la; mas, ela pode acarretar implicação ética-profissional, pois seu descumprimento pelo médico pode levar à aplicação de sanções no âmbito dos Conselhos Regionais de Medicina (processos ético-profissionais).

Spacca

Pois bem, o CFM possui competência normativa para “expedir normas para o desempenho ético da Medicina” (artigo 33, XIII, do Decreto nº 44.045/1958). O exercício desta competência, contudo, deve observar estritamente os comandos legais (sob pena de vício de ilegalidade), além de não poder extrapolar o assunto “expedir normas para o desempenho ético da Medicina” (excesso de poder).

Ao pretender restringir o comando legal, a resolução está maculada pelo vício da ilegalidade, pois o Poder Legislativo não estabeleceu restrições ao autorizar o médico a realizar o aborto no caso de gravidez decorrente do crime de estupro. É importante frisar que as restrições ao aborto legal editadas pelo CFM não encontram abrigo no CP ou em qualquer outra lei.

Ademais, o CFM extrapolou o poder normativo concedido pelo Legislador, pois expediu norma que não guarda relação com o “desempenho ético da medicina”.

A resolução também agride a Constituição, pois não observa princípio fundamental da República, qual seja: a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), porquanto submete indiretamente a mulher vítima de violência sexual a tratamento desumano ou degradante, o que é vedado (artigo 5º, III).

Legislar sobre o tema (aborto) é competência privativa da União (artigo 22, I, da CF) e seu exercício cabe ao Congresso Nacional (artigo 49, caput, da CF). Portanto, não é o CFM, mas o Poder Legislativo que deve dispor sobre eventuais restrições, condições ou impedimentos ao aborto na hipótese de gravidez oriunda de estupro.

Por fim, aos médicos que não desejarem realizar os atos necessários ao aborto legal, nos termos do Código de Ética Médica, é assegurado o direito à objeção de consciência, desde que a recusa não traga danos à saúde do paciente.

Autores

  • é servidor público federal, mestrando em Direito Financeiro e Econômico pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (FD-USP) e pós-graduado pela Unicamp (Direito e Economia), PUC-MG (Direito Tributário e Aduaneiro e Direito Público) e IBMEC/Damásio (Direito e Processo Previdenciário).

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