Opinião

A importância da fundamentação das decisões numa jurisdição constitucional

Autor

  • Diego Henrique Schuster

    é advogado professor doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

29 de janeiro de 2024, 6h33

Recentemente, escrevi um artigo sobre o alcance da ADI 6.096: “ADI 6.096 e o prazo decadencial: o que sobrou do artigo 24 da Lei 13.846/2019?” [1] O que defendi na oportunidade: no referido julgamento, o Supremo Tribunal Federal aplicou a nulidade parcial sem redução de texto para excluir uma das hipóteses de aplicação do artigo 103 da Lei 8.213/1991. Dito por outras palavras, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade do artigo 24 da Lei 13.846/2019 apenas para os casos de indeferimento, cancelamento ou cessação do benefício.

Como já se viu, a Lei 9.868/1999, no parágrafo único do artigo 28, ao estabelecer o efeito vinculantes às decisões decorrentes do controle abstrato de constitucionalidade, equiparou a declaração de inconstitucionalidade stricto sensu à declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto e, até mesmo, à interpretação conforme a Constituição.

Para se ter uma ideia. As primeiras decisões aplicando a interpretação conforme e a nulidade parcial sem redução de texto, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: Apelação nº 7007387608, 5ª câm. Crim., TJRS, relator desembargador Aramis Nassif; também as Apelações nº 700012614046 e 700015006935.

Ali ficou decidido que o artigo 299 do Código Penal é inconstitucional se aplicado sem qualquer comprovação da intenção do agente de colocar em risco concreto e imediato qualquer bem jurídico relevante penalmente, sob pena de incorrer em responsabilidade penal objetiva. Em outras palavras, retirou-se uma das incidências da norma, afastando-se o sentido que se releva contrário à Constituição.[2]

Inconstitucionalidade parcial
Em definitivo (e sem pestanejar), no presente artigo afirmo que não foi declarada a inconstitucionalidade de todo o artigo 24 da Lei 13.846/2019. Mas vamos aos motivos que me levaram a tal conclusão.

Antes de qualquer outra análise, contudo, vale lembrar que a ação de reclamação tem sido admitida como instrumento excepcional de esclarecimento/aperfeiçoamento e, até mesmo, de superação do conteúdo de decisões judiciais.[3] Pois bem. A Reclamação 64.675 Rio Grande Do Sul foi proposta com este objetivo, qual seja, esclarecer o alcance da ADI 6.096. Nela, o ministro Alexandre de Morais confirmou a nossa impressão:

“Na ADI 6.096 assentou-se a inconstitucionalidade da incidência do prazo prescricional ou decadencial apenas para os casos de indeferimento, cancelamento ou cessação do benefício, tendo em vista que, nessas situações, a inviabilização da rediscussão acerca da negativa repercutiria sobre o direito material à concessão do benefício. Permitiu-se, por outro lado, a incidência do prazo decadencial nos casos de revisão do ato de concessão do benefício, como na hipótese concreta.”

Ademais, para se poder afirmar que o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de todo o artigo 24 da Lei 13.846/2019, a decisão proferida nos autos da ADI 6.096 teria que, no mínimo, trazer as razões jurídicas pelas quais entende que o segundo termo para a contagem do prazo decadencial — previsto no inciso II do artigo 103 da Lei 8.213/1991 — é inconstitucional.

Princípio da fundamentação garante legitimidade
Não é possível negar a aplicação de uma lei sem fazer jurisdição constitucional. Não há nenhuma linha sobre o inciso II do artigo 103 da Lei 8.213/1991, com redação emprestada pelo artigo 24 da Lei 13.846/2019, na decisão proferida na ADI 6.096. O que garante a legitimidade da formação da decisão jurídica, além da observância do contraditório e da ampla defesa, é a consagração do princípio da fundamentação das decisões judiciais.

Por óbvio, não se trata de defender a constitucionalidade do inciso II do artigo 103 da Lei. 8.213/1991 por exclusão (já que não objeto da ADI 6.096), mas ter em mente que a fundamentação das decisões judicial é uma garantia constitucional. Não podemos concluir pela inconstitucionalidade de todo o artigo 24 por presunção. Entendimento contrário serve de parâmetro de observação do que se compreende por uma “jurisdição constitucional”.

Uma decisão bem fundamentada/justificada nem sequer poderia demandar “esclarecimentos” acerca da holding ou do dictum da decisão, o que dirá sobre algo que nem foi objeto da ADI 6.096, nem mesmo como mero dicta! O stare decisis, pela importância que concede ao precedente, garante que

A aplicação deste só pode ocorrer se ele foi fruto de um intenso contraditório e se estiver fundamento, do contrário será dicta que ‘não são considerados como parte do dispositivo da decisão, porquanto tais questões podem não ter sido submetidas (devolvidas), de forma integral, à consideração do tribunal. Portanto, as partes da decisão judicial que são mero dicta ordinariamente não possuem valor ou efeito de precedente’.[4]

A alegação de que o Supremo Tribunal Federal declarou, na parte dispositiva, a inconstitucionalildade de todo o artigo 24 da Lei 13.846/2019 torna imprescindível a fundamentação sobre tal ponto na própria decisão. Com efeito, tal alegação não está no caminho, tampouco no que se dirige a uma jurisdição constitucional.

A mesma hermenêutica vale para o Tema Repetitivo 975/STJ, que nem sequer se preocupou com aquilo que acontece depois do pedido de revisão protocolado dentro do prazo de 10 anos. Importante lembrar que a redação tomada como base para o debate foi dada pela Lei 10.839/2004, vigente por ocasião da interposição do recurso especial.

Fundamentação é garantia constitucional
Enfim, entendimento contrário ignora um pequeno detalhe: a garantia constitucional da fundamentação das decisões judiciais. A fundamentação das decisões ganha relevância para a legitimidade da decisão, bem assim para dimensionar e determinar o alcance da parte dispositiva de qualquer decisão.

A confirmação de que o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do artigo 24 da Lei 13.846/2019 apenas no que a nova redação sujeita a um prazo decadencial o direito à previdência social, e não de toda a sua redação, dá condições (jurídicas) para os juízes e tribunais aplicarem o inciso II do artigo 103 da Lei 8.213/1991, que confirma a existência de dois termos para a contagem do prazo decadencial.

A dúvida aqui suscitada vai ao encontro do que hoje se discute no Tema 975/STJ, no IAC 5031598-97.2021.4.04.0000/TRF-4 e no Tema 256/STJ (PUIL 3687/STJ), com proposição para se colocar um fim à discussão e pacificar a questão.

Insiste-se: os juízes e tribunais não poderão negar a aplicação do inciso II do artigo 103 da Lei 8.213/1991 sem fazer jurisdição constitucional. Segundo Lenio Luiz Streck, o Poder Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei nas seguintes hipóteses:

(a) Quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional; (b) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias; (c) quando for aplicar a interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung); (d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung); (e) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto; (f) quanto – isso é absolutamente corriqueiro e comum – for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de algum princípio, entendidos estes não como standards retóricos ou enunciados performativos [5].

Conclusão lógica
Este é (só) mais um argumento para se defender a existência de dois termos para contagem do prazo decadencial. O segundo (que depende do protocolo de pedido de revisão dentro do prazo de 10 anos a contar do primeiro dia útil do mês subsequente ao recebimento da primeira prestação) tem início a contar da ciência da decisão de indeferimento do pedido de revisão, devendo ser observada a matéria expressamente impugnada.

Abre-se um parêntese para lembrar que, caso seja ignorado o segundo termo para contagem do prazo decadencial, ou melhor, caso seja declarada a inconstitucionalidade do inciso II do artigo 103 da Lei 8.213/1991, chegaremos à seguinte conclusão lógica: o beneficiário precisa, dentro do prazo de 10 anos (a contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação), tomar ciência da circunstância que lhe permite postular a revisão; formalizar um pedido administrativo de revisão de benefício, para levar a matéria ao conhecimento do servidor do INSS (Tema 350/STF); e ajuizar uma ação judicial.

Ocorre que o beneficiário não pode depender do agendamento para a apresentação dos documentos, tampouco do tempo que o INSS levará para analisar o seu pedido de revisão (ações ajuizadas antes de 45 dias já foram extintas, sem resolução de mérito, com fundamento na ausência de interesse de agir.

Ademais, se no limite, ao beneficiário não será possível esgotar a via administrativa, contrariando, assim, a premissa de que o Poder Judiciário não pode ser transformado num “balcão do INSS” — alguns procuradores do INSS reclamam da judicialização, numa tentativa de colocar a Justiça contra o cidadão.

Não pode haver um pedido protocolado dentro do prazo para depois se dizer que operou a decadência. O direito previdenciário não está imune à filosofia. É difícil compreender o entendimento que aposta na existência de uma “análise” da decadência em duas fases distintas, uma administrativa e outra judicial, uma “isolada” da outra, como se o INSS não fosse o primeiro destinatário do artigo 103 da Lei 8.213/1991.

Diferença (e não cisão) entre regra e norma
Mas retomando a questão da fundamentação. No centro de toda a discussão está a diferença (e não cisão) entre texto e norma, vale dizer: a ideia de que um dispositivo traz consigo todas as hipóteses de aplicação de um texto jurídico.[6] O mesmo vale para o Tema Repetitivo 975/STJ e a ADI 6.096, isto é, tais decisões não abarcam todos os casos de aplicação do artigo 103 da Lei 8.213/1991.

Veja, assim, o paradoxo, como seria possível estabelecer uma fundamentação sobre uma lei que sequer existia ao tempo do julgamento do Tema Repetitivo 975/STJ? Como é possível empregar/aplicar as razões da ADI 6.096 que sequer consideraram a possibilidade de um pedido de revisão de benefício? Como é possível estabelecer fundamentações sem que se tenha aquilo que é condição dessa fundamentação? Isso tudo indica que essa antecipação de sentido trabalha com a ideia de que um precedente traz consigo uma norma justa, pronta e acabada, ou seja, de que ele abarca todas as futuras hipóteses de aplicação da norma.

Poseidon tinha um filho chamado Procustos, que tinha uma cama de ferro; para adaptar seus “hóspedes” à cama, ele os esticava ou cortava seus membros. É bem possível que o mesmo esteja acontecendo aqui — e daí a falta de uma devida distinção entre as situações envolvendo a aplicação do prazo decadencial.


Bah1: Foi o jurista Lenio Luiz Streck quem propôs a releitura do art. 299 do Código Penal a partir da Constituição. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed., rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 159.

Bah2: SCHUSTER, Diego Henrique. ADI 6.096 e o prazo decadencial: o que sobrou do artigo 24 da Lei 13.846/2019? In: Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 26 nov. 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-nov-26/adi-6-096-e-o-prazo-decadencial-o-que-sobrou-do-artigo-24-da-lei-13-846-2019/>. Acesso em 22 jan. 2024.

Bah3: Vide Reclamação 4.374, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 3.9.2013; Tema 793/STF; para citar apenas estes.

Bah4: STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. p. 67.

Bah5: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed., rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 637.

Bah6: Cf.: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed., rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 134 e ss.

Autores

  • é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!