Opinião

ADI 6.096 e o prazo decadencial: o que sobrou do artigo 24 da Lei 13.846/2019? 

Autor

  • Diego Henrique Schuster

    é advogado professor doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

26 de novembro de 2023, 7h06

Muitos vão achar que não passa de um debate acadêmico de escassa utilidade prática, eu entendo…

A partir da Lei 9.868/1999, são mecanismos aptos à realização da filtragem hermenêutico-constitucional das leis: a interpretação conforme a Constituição e a nulidade parcial sem redução de texto; mecanismos esses que, definitivamente, foram incorporados à normatividade jurídico-brasileira.

Em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, Lenio Luiz Streck aprofunda as seis hipóteses em que o Poder Judiciário pode — deve — deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei, entre elas:

c) quando aplicar a interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”) permanecerá intacto. O que muda é o seu sentido, alterado por intermédio de interpretação que o torne adequado à constituição. Trabalha-se, nesse ponto, com a relação “texto-norma”. Como poderá ser visto amiúde mais adiante, a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto e as demais sentenças interpretativas são importantes elementos para confirmar a força normativa da Constituição. São sentenças interpretativas e perfeitamente legítimas, quando proferidas sob o império de uma adequada teoria da decisão;
d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklarung ohne Normtextreduzierung), pela qual permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua incidência, ou seja, ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfalle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal. Assim, enquanto, na interpretação conforme, há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto ocorre uma abdução de sentido (conforme item específico no capítulo em que discuto esses mecanismos de aplicação do direito);

As duas hipóteses podem ser invocadas tanto mediante o controle concentrado como difuso de constitucionalidade. Para o autor: “Tais mecanismos, a toda evidência, podem e devem ser utilizados em sede de controle difuso (juízes singulares e tribunais), não sendo monopólio do Supremo Tribunal Federal” [1].

No entanto, o que nos interessa — aqui e agora — é analisar a ADI 6.096, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI), no qual foi requerida a declaração de inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 871/2019, convertida na Lei 13.846/2019, que, ao conferir nova redação ao artigo 103 da Lei de Benefícios da Previdência Social, passou a limitar o direito fundamental à concessão do benefício previdenciário ao prazo decadencial.

Note-se que, em sede de informações, a presidência da República defendeu a inépcia da petição inicial, em razão da impugnação integral do texto da MP 871/2019 (não específica), devendo, por isso, ser indeferida e o processo ser extinto sem exame do mérito, nos termos do artigo 4º da Lei 9.868/1999. De cara, restou prejudicada a análise do artigo 22 da MP 871/2019, porquanto não incluído pela Lei 13.846/2019. Em uma delimitação mais específica e explícita sobre o objeto da ADI, o relator sintetizou:

Assim, na linha do entendimento jurisprudencial desta Corte e, ante a ausência de impugnação específica dos artigos 23, 24 e 26 da MP 871/2019 no decorrer das razões jurídicas expendidas na exordial, deve o conhecimento da demanda recair sobre os artigos 1º a 21 e 27 a 30 (alegada natureza administrativa) e 25, na parte em que altera os artigos 16, §5º; 55, §3º; e 115, todos da Lei 8.213/1991 (dito formalmente inconstitucional), assim como na parte em que altera o artigo 103, caput, da Lei 8.213/1991 (alegada inconstitucionalidade material).

Com efeito, o voto foi divido em três partes. Na primeira, a Corte entendeu inexistir comprovação da ausência de urgência, não havendo espaço para atuação do Poder Judiciário no controle dos requisitos de edição da MP 871/2019. Na segunda, foi acolhido o parecer lançado pela procuradoria-geral da República para afastar a preliminar trazida pela parte autora relativa à inconstitucionalidade formal do artigo 24 da Lei 13.846/2019, equivalente ao artigo 25 da MP 871/2019, na parte em que alterados os artigos 16, §5º; 55, §3º; e 115, da Lei 8.213/1991, ou seja, aqui se disse que os dispositivos em questão não são comandos voltados a informar a atuação do Poder Judiciário (escrevi sobre isso no meu último livro). Por outro lado, a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal (Lei 9.868/1999, artigo 24, parágrafo único).

Abre-se, aqui, um parágrafo para uma breve reflexão. Na prática, os artigos 16, §5º; 55, §3º; e 115 da Lei 8.213/1991 vinculam o Poder Judiciário. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, não abriu mão do artigo 55, §3º, da LB no Tema Repetitivo 629 e, mais recentemente, no Puil 293 (Afetado 1188). Isso pode ser decisivo no julgamento do Tema 1124, já que a Lei de Benefício não dá ao julgador opção para fixar os efeitos financeiros em outra data que não a DER e/ou preenchimento dos requisitos ensejadores do benefício previdenciário (artigos 54 e 57, §2º, combinados com o artigo 49, inciso II).

Mas voltamos à ADI 6.096. Na terceira e mais importante, a Suprema Corte analisou tão somente a alteração do artigo 103 da Lei 8.213/1991, vale dizer: na parte que sujeita a prazo decadencial o ato de indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício previdenciário, concluindo, pois, pela afronta ao direito à previdência social, consagrado no artigo 6º da Constituição. Na decisão assim restou expresso:

“Com efeito, o direito à previdência social é direito fundamental, expressamente previsto pelo artigo 6º da Constituição da República, que, fundado no direito à vida, na solidariedade, na cidadania e nos valores sociais do trabalho e consubstanciado nos objetivos da República em construir uma sociedade livre, justa e solidária, em erradicar a pobreza e a marginalização e em reduzir as desigualdades sociais e regionais, caracteriza-se como instrumento assegurador da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial.
[…]
Ora, o dispositivo impugnado, ao estender a incidência do prazo decadencial ao direito ou à ação da parte segurada ou beneficiária em face de qualquer decisão administrativa negativa que tenha por objeto a concessão do pedido relativo a pedido de benefício previdenciário, obstaculiza a entrada de ação revisional para confirmação da certeza jurídica quanto ao direito ou à pretensão da parte beneficiária ou segurada no decorrer do lapso temporal que o prazo atinge.
[…]
O prazo decadencial pode até fulminar a pretensão ao recebimento retroativo de parcelas previdenciárias ou à revisão de sua graduação pecuniária, mas jamais cercear integralmente o acesso e a fruição futura do benefício, motivo pelo qual, como acima já sustentado, o artigo 103 da Lei 13.846/2019, por fulminar a pretensão de revisar ato de indeferimento, cancelamento ou cessação, compromete o direito fundamental à obtenção de benefício previdenciário (núcleo essencial do fundo do direito), em ofensa ao artigo 6º da Constituição da República.
Do exposto, voto no sentido de conhecer parcialmente a ação direta e, na parte remanescente, pela procedência em parte do pedido, declarando a inconstitucionalidade do artigo 24 da Lei 13.846/2019 no que deu nova redação ao artigo 103 da Lei 8.213/1991.”

Mas afinal, qual a técnica decisória utilizada? O advogado-geral da União opôs embargos de declaração, defendendo a possibilidade de se conferir uma interpretação conforme à Constituição ao artigo 103 da Lei nº 8.213/1991: “de modo a esclarecer que a decadência por ele veiculada atinge tão somente os efeitos financeiros de benefícios previdenciários que tenham sido originariamente indeferidos, cancelados ou cessados, não impedindo o reconhecimento do fundo de direito em ulterior requerimento”. Em resposta, o STF declarou a impossibilidade de aplicação da técnica de interpretação conforme a Constituição à norma avaliada, sob o fundamento de que “seus efeitos não são passíveis de limitação objetiva”. Em conclusão:

Com efeito, se o prazo decadencial somente produzisse efeitos financeiros, a antiga previsão estabelecida pelo artigo 103 da Lei nº 8.213/1991 não necessitaria de alteração, pois suficiente a redação do parágrafo único referente ao prazo prescricional. No entanto, é justamente a modificação promovida pelo artigo 24 da Lei nº 13.846/2019 que se verifica inconstitucional.

Ao que tudo indica, o Supremo Tribunal Federal aplicou a nulidade parcial, sem redução de texto, pois, segundo o próprio, a interpretação conforme a Constituição constitui “técnica de controle de constitucionalidade que encontra o limite de sua utilização no raio das possibilidades hermenêuticas de extrair do texto uma significação normativa harmônica com a Constituição”.

O foco foi abduzir sentido, isto é, excluir das hipóteses de aplicação do artigo 103 da Lei 8.213/1991 a concessão do benefício propriamente dito (e aqui fica clara a diferença, e não cisão, entre regra e norma). Assim, o STF declarou a inconstitucionalidade do artigo 24 da Lei 13.846/2019 apenas no que a nova redação sujeita a um prazo decadencial o direito à previdência social — um direito fundamental. Ganha importância a fundamentação das decisões, uma vez que os motivos (fundamentos), embora não sejam cobertos pela coisa julgada, dimensionam e determinam o alcance da parte dispositiva. Não podemos esquecer que estamos diante de um precedente construído para balizar casos futuros, envolvendo o tema da decadência.

Mas qual a importância, em termos práticos, dessa discussão? Muitos são os efeitos práticos! Senão vejamos: A declaração de inconstitucionalidade do artigo 24 da Lei 13.846/2019 abarca todas as situações envolvendo o prazo decadencial? Resta mantido o inciso II do artigo 103 da Lei 8.213/1991, com redação emprestada pelo artigo 24 da 13.846/2019? Note-se que o Tema Repetitivo 975/STJ não enfrentou a redação emprestada pela Lei 13.846, de 2019, porquanto superveniente. Daí se segue com novas interrogações: Mas qual a importância dessa lei? Ela não apenas reafirmou literalmente a existência de um segundo termo inicial, mas foi além, conferindo a ele um lugar de destaque — na segunda parte do inciso II:

“Artigo 103. O prazo de decadência do direito ou da ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão, indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício e do ato de deferimento, indeferimento ou não concessão de revisão de benefício é de dez anos, contado:
I – do dia primeiro do mês subsequente ao do recebimento da primeira prestação ou da data em que a prestação deveria ter sido paga com o valor revisto; ou
II – do dia em que o segurado tomar conhecimento da decisão de indeferimento, cancelamento ou cessação do seu pedido de benefício ou da decisão de deferimento ou indeferimento de revisão de benefício, no âmbito administrativo.”

O Decreto 3.048/1999, após a redação emprestada pelo Decreto 10.410/2020, incorporou a redação conferida pelo artigo 24 da Lei 13.846/2019, com especial atenção para o segundo termo para contagem do prazo decadencial. Enfim, o que se pode concluir, sem favor algum ao segurado, é que, no restante, o artigo 24 é constitucional, nele compreendido o inciso II do artigo 103 da Lei de Benefícios, que literalmente estabelece um segundo termo de contagem do prazo decadencial: “da decisão de deferimento ou indeferimento de revisão de benefício, no âmbito administrativo.”

Este é (só) mais um argumento para se defender a existência de dois termos para contagem do prazo decadencial e/ou a “interrupção do prazo decadencial”. O segundo (que depende do protocolo de pedido de revisão dentro do prazo de dez anos a contar do primeiro dia útil do mês subsequente ao recebimento da primeira prestação) tem início a contar da ciência da decisão de indeferimento do pedido de revisão, devendo ser observada a matéria expressamente impugnada.

Ainda sobre a ADI 6.096, a meu ver, a Lei 13.846/2019 não trouxe nada de novo (ao incluir o inciso II no artigo 103); ela veio confirmar a existência de dois termos. Isso porque já tínhamos decisões nesse sentido, antes e depois do julgamento do Tema Repetitivo 975/STJ.[2] O alcance da ADI não é decisivo para se concluir pela existência (ou não) de dois termos. A propósito, as decisões do STF têm esse problema, elas não deixam clara qual a técnica utilizada.

Às vezes, não é necessário (re)construir um novo sentido que explique e convença melhor, mas perceber que aplicar o Tema 975 por subsunção cria uma singularidade excludente, o que não é característica da jurisprudência previdenciária. Aplicar o Tema 975 é dar uma interpretação mais restritiva, sem que o STJ tivesse dito isso. Às vezes, devemos abrir mão de uma linguagem estática, porquanto as coisas acontecem e esperam uma resposta razoável do direito. Essa resposta já foi dada, inclusive pela TNU (tema 256). Ela vai ao encontro do destinatário das normas previdenciárias e, o mais importante, não afronta o Tema 975/STJ.

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[1] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed., rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 158-159.

[2] No Recurso Especial nº 1566958 – PR (2015/0292044-7), o Superior Tribunal de Justiça confirmou que o termo inicial do prazo decadencial é a data do conhecimento pelo administrado do indeferimento do pedido de revisão. Oportuna a transcrição do seguinte trecho da decisão: “Alega o recorrente ter apresentado, na via administrativa, pedido de revisão do benefício, não tendo obtido qualquer resposta da Administração. As instâncias de origem foram uníssonas ao rejeitar a relevância da argumentação, consignando pela impossibilidade de suspensão do prazo decadencial, julgando, nesse medida, irrelevante a apresentação de pedido administrativo para a contagem do prazo decadencial. Contudo, tal posicionamento afronta a jurisprudência desta Corte, segundo a qual tendo sido negado formalmente pela administração o direito pleiteado, o termo inicial do prazo decadencial é a data do conhecimento pelo administrado do indeferimento do pedido”. No mesmo sentido Recurso Especial Nº 1566958 – PR (2015/0292044-7).

Autores

  • é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

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