Opinião

Tema Repetitivo 995/STJ: entre coerência e data de ajuizamento da ação

Autor

  • Diego Henrique Schuster

    é advogado professor doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

5 de setembro de 2023, 6h07

A jurisprudência está muito longe de fornecer todas as respostas sobre a correta aplicação do Tema Repetitivo 995/STJ, o que é normal. Afinal, o precedente não traz uma norma justa, pronta e acabada. Assim como a regra a qual faz referência o precedente de observação obrigatória, ela não traz consigo todas as hipóteses de aplicação da norma. Trata-se de um texto jurídico e, como tal, dever ser interpretado.

O problema é quando uma decisão rompe com o discurso acordado nos tribunais inferiores, que é anterior à fixação da tese. No julgamento do AgInt no REsp 2.018.250/RS, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça definiu que, quando a reafirmação de data de citação ocorrer para um momento anterior ao ajuizamento da ação previdenciária, a DER deve ser fixada na data da citação válida — e com ela os efeitos financeiros.

Qual é o problema disso? O segurado não tem como prever qual a extensão da procedência do pedido inicial na justiça (e.g.: quais os períodos que serão reconhecidos como especiais), de modo que seja possível saber se o preenchimento dos requisitos ensejadores do benefício ocorrerá na DER, entre a conclusão do processo administrativo e o ajuizamento da ação judicial ou, por fim, no curso da ação previdenciária [1].

Com efeito, tal decisão representa um desestímulo ao esgotamento da via administrativa, já que, quando mais tempo entre a DER e a Data de Ajuizamento da Ação, maior a chance e/ou probabilidade da reafirmação de DER ocorrer neste ínterim.

Com isso não se pretende criticar a decisão do STJ. No contexto do recurso especial interposto pelo INSS e, sobretudo, da decisão monocrática, a orientação que acabou prevalecendo, a partir do voto-vista da ministra Regina Helena Costa, representa uma vitória. A solução primeira apontava para a necessidade do segurado, depois de mais de sete anos na justiça, retornar a via administrativa. Sim, é isso mesmo que você leu. Num primeiro momento, entendeu-se pela falta de interesse de agir em relação ao tempo posterior à DER. Por outras palavras, o segurado deveria ter atravessado um novo requerimento administrativo entre a DER e Data de Ajuizamento da Ação! [2].

O presente artigo é veículo apropriado para se adjudicar a questões de fundo sobre o Tema 995/STJ. Antes de qualquer outra análise, contudo, cumpre observar que o precedente versa sobre uma questão exclusivamente processual, que tem como fundamento a tese do fato superveniente.

O novo Código de Processo Civil, no seu artigo 493, não só reproduziu a literalidade do artigo 462 do Código de Processo Civil de 1973, mas acrescentou o artigo 933, que prevê, expressamente, a possibilidade de o fato superveniente à decisão recorrida ser considerado no julgamento do mérito, devendo o julgador (relator do tribunal ou turma recursal) dar às partes oportunidade de se manifestar a respeito da nova questão. A situação deve ser mensurada a partir de dois estágios: se a constatação de fato superveniente ocorreu durante a sessão de julgamento ou em vista dos autos, conforme §§1º e 2º do mencionado artigo 933.

Em matéria previdenciária, o modo mais específico de implementação da tese se dá através da chamada Reafirmação da DER, procedimento adotado pelo INSS na via administrativa, conforme art. 690 da Instrução Normativa 77/2015, o que, na prática, possibilita a consideração de contribuições vertidas no curso da ação e do tempo de serviço especial que perpassa a DER; enfim, questões que influenciam no reconhecimento do benefício postulado.

A rigor, portanto, a tese somente aproveita processos em que a reafirmação de DER ocorrer no curso de uma ação previdenciária, vale dizer: para um momento posterior ao ajuizamento da ação. Esta questão, contudo, merece uma discussão mais profunda. Isso porque antes da tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região já admitia a reafirmação de DER, porém, somente até a Data do Ajuizamento da Ação:

"PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO. SERVIÇO RURAL EM REGIME DE ECONOMIA FAMILIAR. REAFIRMAÇÃO DA DER LIMITADA À DATA DO AJUIZAMENTO. REQUISITOS PARA APOSENTADORIA NÃO PREENCHIDOS. […] 7. Em que pese a possibilidade de reafirmação da DER, o cômputo das contribuições vertidas após o requerimento administrativo fica limitado à data do ajuizamento. 8. Não cumprindo com todos os requisitos para a concessão do benefício, o segurado tem direito à averbação do período reconhecido judicialmente, para fins de obtenção de futura aposentadoria". (TRF4, APELREEX 5007742-38.2012.4.04.7108, QUINTA TURMA, relator para Acórdão Luiz Antonio Bonat, juntado aos autos em 22/09/2015).

Nessa perspectiva, a Corte Cidadã foi além, permitindo a reafirmação de DER  também  no curso da ação, para a efetivação de um direito fundamental-social. Na ratio decidendi do precedente é possível se extrair as perguntas que nortearam a decisão: a) seria razoável admitir a necessidade de o segurado ajuizar uma nova ação previdenciária, quando, ainda no processo em curso é possível se considerar os fatos supervenientes  que influenciam na caracterização do direito? b) é razoável premiar o INSS com eventual subtração dos valores devidos desde o implemento dos requisitos ensejadores do benefício previdenciário?

A nosso ver, a questão da reafirmação de DER antes da Data de Ajuizamento da Ação está contida na tese fixada no Tema 995/STJ. Em sede de embargos, o STJ não apenas confirmou a possibilidade de "reafirmação da Data de Entrada do Requerimento (DER) para o momento em que implementados os requisitos para a concessão do benefício, mesmo que isso se dê no interstício entre o ajuizamento da ação e a entrega da prestação jurisdicional nas instâncias ordinárias", mas ratificou que esta seria possível "ainda que não haja prévio pedido expresso na petição inicial". E ainda: "existindo pertinência temática com a causa de pedir, o juiz poderá reconhecer de ofício outro benefício previdenciário daquele requerido, bem como poderá determinar seja reafirmada a DER".

A reafirmação da DER, ainda que do ponto de vista da tese do fato superveniente, não traduz nenhuma ruptura com aquilo que já se encontra consolidado na jurisprudência:

– basta o indeferimento ou, até mesmo, a demora injustificada para ultimação do ato, para que o segurado possa buscar a via judicial, por conta da configuração de pretensão resistida. Uma vez percorrida a via administrativa, atendidos os requisitos do Tema 350/STF, há que se entender que está tudo "sub judice". Tanto é assim que a Corte Especial reiterou que a reafirmação da DER poderá ocorrer "ainda que não haja prévio pedido expresso na petição inicial". Da mesma forma, não se exige que, entre o término do processo administrativo e a Data de Ajuizamento da Ação, o autor atravesse novo requerimento de aposentadoria;
 […] os efeitos financeiros devem retroagir à data do requerimento administrativo e/ou do preenchimento dos requisitos ensejadores do benefício.

Nesse nível, seria no mínimo contraditório exigir que o segurado atravessasse um novo pedido administrativo entre a DER e Data de Ajuizamento da Ação, quando, na verdade, tudo estava "sub judice". Deve ter ficado claro, mas é sempre o INSS que dá causa a ação e, por isso, o direito depende da procedência de um ou mais pedidos, com o reconhecimento do direito desde a DER ou, no caso de improcedência de algum, mediante a reafirmação de DER.

A pergunta que devemos fazer é a seguinte: qual a diferença entre quem preenche os requisitos ensejadores do benefício entre a DER e a Data do Ajuizamento da Ação e aquele que preenche os requisitos no curso da ação previdenciária? O que justifica um tratamento diferenciado, vale sublinhar: com a subtração de valores devidos desde o preenchimento dos requisitos ensejadores do benefício?

Um primeiro olhar para essas situações convida ao raciocínio de que é contraditório admitir a possibilidade de o início da aposentação coincidir com o preenchimento dos requisitos no curso da ação, e não entre a DER e a Data do Ajuizamento da Ação, independentemente se pendente (ou não) o processo administrativo. No entanto, sabemos que o Tema Repetitivo 995/STJ trata, acima de tudo e sobretudo, da tese do fato superveniente, uma questão processual. O precedente em análise abrange apenas a possibilidade de reafirmação da DER para um momento posterior à Data do Ajuizamento da Ação.

Assim sendo, das duas, uma: ou se entende que o precedente é capaz de dar uma resposta objetiva para o universo de casos em que a DER é reafirmada para um momento anterior a DER, qual seja: "É possível a reafirmação de DER (Data de Entrada do Requerimento) para o momento em que implementados os requisitos para a concessão do benefício"; ou se aplica o entendimento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, não representando este uma afronta ao Tema 995/STJ. Pelo contrário. A primeira coisa que se deduz de duas coisas é que não são a mesma coisa.

No Tema 995, o STJ permitiu a reafirmação de DER para além da Data de Ajuizamento da Ação, logo, entender que não é possível a reafirmação entre a DER e a Data de Ajuizamento seria como pular um abismo e, na sequência, dar um passo para trás, para nele cair. Estamos no abismo. George Orwell dizia que, quando estamos em um abismo, a tarefa do homem inteligente é reafirmar o óbvio.

 

[1] A reafirmação de DER não pode servir de pretexto para a propositura de ações temerosas. São muitos os motivos para o não preenchimento dos requisitos na DER, entre eles, as constantes guinadas na jurisprudência previdenciária, o indeferimento arbitrário de provas (imprescindíveis para a demonstração dos fatos alegados), etc.

[2] A Primeira Turma, por maioria, vencido o senhor ministro Gurgel de Faria (relator), deu parcial provimento ao agravo interno para reconhecer o interesse de agir, em razão da necessidade de prestação judicial para reconhecimento e cômputo de tempo especial negado administrativamente, fixando o termo inicial da aposentadoria especial na data da citação, nos termos do voto-vista da senhora ministra Regina Helena Costa, que lavrará acórdão.

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  • é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

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