Opinião

A importância do devido processo legal/previdenciário

Autor

  • Diego Henrique Schuster

    é advogado professor doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

1 de outubro de 2023, 6h31

Antes do julgamento em Nuremberg, que condenou as principais figuras nazistas após o fim da Segunda Guerra Mundial, tinha-se, na opinião pública, uma maioria pela execução sumária de todos os envolvidos  o tal senso comum!

No entanto, a fim de se evitar que no futuro as pessoas pudessem questionar a existência de culpados, a materialidade das mortes e atrocidades cometidas (Holocausto), os líderes dos países vencedores entenderam por bem a realização de um julgamento internacional, com observação do devido processo legal. Ali restou comprovado, com respeito ao contraditório, que o partido nazista tinha como objetivo, desde o início, a guerra (para expandir seu território), bem assim a perpetuação de uma "raça pura", com a eliminação dos judeus e todos aqueles que não concordassem com sua ideologia.

Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Daí a importância de um devido processo legal. É possível se afirmar que o procedimento é mais importante que o conteúdo propriamente dito. "Forma é garantia, forma é legalidade", como defendem os advogados criminalistas. No Poder Judiciário, portanto, a legitimação das decisões se dá pelo procedimento, com a observação do devido processo legal. O procedimento é extremamente importante para o Direito, isto é, para que haja aceitação da decisão pelas partes.

Dito isto, é engraçado quando o juiz infere que a alegação de cerceamento de defesa "releva mero inconformismo da parte com as conclusões do julgado". Podemos não concordar com o resultado da perícia judicial, mas o que é inegociável é o direito à prova pericial (pegaram a visão?). É impensável que melhor sorte assista ao segurado em cujo processo o juiz deferiu o direito à prova pericial. Centenas de perícias realizadas na mesma empresa demonstram, no mínimo, que a prova pericial é irrelevante até que seja feita.

Com efeito, quando o pedido de prova pericial, apoiado em evidências sérias do labor especial e/ou em situações já experimentas, com um alto grau de consenso acerca de sua ocorrência, é negado, tem-se não apenas uma restrição ao direito de prova, mas ao próprio acesso à justiça.

Enfim, é muito mais do que "mero inconformismo…"! Estamos, com isso, pondo em xeque a função do processo, bem assim o papel do judiciário. Quando o juiz toma o formulário PPP, produzido fora do processo, como prova absoluta da não exposição a agentes nocivos, tem-se a execução sumária do segurado. No período romano, os imperadores decidiam com o polegar para cima ou para baixo e sem dizer os motivos.

O processo previdenciário, em que não observado o devido processo legal, transformou-se no lugar perfeito para fazer a frase feita, afinal: "sem contraditório, tudo é possível" [1]. Desde o formulário preenchido "sem inconsistências", que não indica os agentes nocivos alegados, até a utilização de juízos de mero verossimilhança, isto é, presunções do tipo: mesmo que estivesse exposto a algum agente químico e/ou dada a diversidade de atividades, o contato não poderia ser habitual ou permanente. Por óbvio, o julgador não precisa se preocupar com a forma como dispersam ou como os agentes químicos entram em contato com o trabalhador. "Tudo se resume, se presume, se reduz". (HG).

É comum dizer que o galo canta para saudar a manhã que chega; mas, quem sabe, ele canta melancolicamente a tristeza pela noite que se esvai. É comum dizer que os trabalhadores de empresas calçadistas estão expostos a solventes e colas, produtos altamente tóxicos; mas, quem sabe, não passa de uma colinha à base d'água. Os procuradores do INSS estão adorando esse jogo de narrativas. Esse tipo de narrativa vem "colando" em matéria previdenciária. Isso porque tal alegação vai ao encontro de julgadores que decidiram não mais autorizar a prova pericial. O benefício da dúvida em favor do INSS e, sobretudo, da celeridade e da economia processual.

Lenio Streck explica: "Se dissermos que 'chove lá fora', esse enunciado pode ser falso ou verdadeiro, bastando colocar a partícula 'não' e olhar para fora". Sem a prova pericial, o que prevalece é o formulário PPP "sem inconsistências", o formulário que omite os agentes químicos. Daí se segue com qualquer argumentação, afinal, nunca saberemos se isso é verdadeiro ou falso. Eis o busílis.

Fato é que a prova pericial vem sendo indeferida sob qualquer pretexto, impedindo o autor de participar do procedimento  e aqui destacamos o direito de defender-se provando e de influir ativamente na construção do pronunciamento judicial. Marcelo Mazzola foi muito feliz na defesa do contraditório-influência: "Sem dúvida, a ausência do contraditório atinge diretamente a dignidade da pessoa humana, pois faz com o que o jurisdicionado seja um espectador mudo do conflito. O processo não pode ser um jogo de surdos e mudos, em que as partes falam, mas não são ouvidas pelo juiz" [2]. O pedido de prova é, muitas vezes, analisado de forma superficial e genérica, ou seja, a fundamentação aparece desligada do caso concreto e/ou distante do ponto controvertido  esperar algo diferente também cobra uma impugnação específica por parte do advogado!

Cumpre perguntar: a prova pericial é ilícita? Sim, pois, o juiz não deve permitir a produção de provas ilícitas. A resposta é "não". Na verdade, o juiz precisa da instrução para verificar a existência dos fatos alegados. A prova pericial serve não apenas para contrapor as informações estampadas no formulário fornecido pela empresa, mas para demonstrar o labor especial a partir da verificação das reais condições de trabalho, devendo sua (ir)relevância ser analisada a partir de uma padrão de dúvida (já escrevi mais de 100 páginas sobre isso).

Para tanto, a parte autora tem o direito de ser ouvida por um juiz imune a entendimentos particulares ou ideológicos  um juiz que sabe suspender suas opiniões prévias. Isso porque o juiz deve decidir a causa com base em provas e elementos adquiridos no debate contraditório  as duas únicas provas produzidas com pleno contrário são pericial e testemunhal, por contarem com a participação das partes, mediante perguntas/quesitos.

Aprendemos na faculdade que viola o princípio do devido processo legal o juiz que não garante o contraditório. Assim, o processo deve assegurar o direito de prova. Em matéria previdenciária, resta saber em que momento do caminho o processo perdeu de vista o direito material, ou melhor, o destinatário das normas previdenciárias. Não se pode falar do segurado sem considerá-lo, simultaneamente, como ser biológico, psicológico e social, alguém de carne, osso e história.

E daí a minha insistência, nos últimos dias, na inspeção judicial (CPC, artigo 481), um meio de prova que pode efetivamente contribuir com o ato de percepção do juiz. Ele não poderá julgar com a "coragem que a distância dá" ou, segundo a música Coração Blindado (Engenheiros do Hawaii), "sem o cheiro, sem o som, sem ter nunca estado lá". Para a doutrina, "[…] nada melhor do que se permitir ao juiz o contato direto com o lugar ou com a coisa, para que tome suas impressões pessoais e forme sua convicção sobre o fato" [3]. Só quem já cheirou os produtos utilizados-manipulados-usados na indústria calçadista sabe do que estou falando!

O segurado, manipulado artificialmente nos autos do processo, acaba sendo transformando num fragmento do real. Depois de transformado no autor, de mais um processo, fica fácil esquecermos de sua condição humana, do seu projeto de vida. Um abismo vem separando a atividade das partes e a atividade judicante do juiz. O devido processo legal permite preenchermos esse imenso vazio com o tão necessário diálogo judicial, que viabiliza a interação e o intercambio de ideias e experiências, a fim de evitarmos a chamada "visão de túnel" ou, como já se viu, a execução sumária do segurado!  

 

_______________________

[1] NEVES, José Roberto de Castro. Medida por medida: o Direito em Shakespeare. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. p. 304.

[2] MAZZOLA, Marcelo. Silêncio do Juiz no Processo Civil (Inércia, Omissão Stricto Sensu e Inobservância) e Seus Mecanismos de Impugnação. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023. p. 53.

[3] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. O novo processo civil. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2015. p. 313.

Autores

  • é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!