Opinião

ISS, exportação de serviços e a jurisprudência do STJ (parte 2): confusão e (possível) solução

Autor

  • Diogo Ferraz

    é doutor em Direito Tributário pela Universitat de Barcelona mestre em Direito Público pela UERJ coordenador do Projeto Jurisprudência Tributária (PJT) e sócio de FreitasLeite Advogados.

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25 de janeiro de 2024, 9h12

No texto anterior, mostramos como a jurisprudência do STJ acerca da exportação de serviços no âmbito do ISS evoluiu do entendimento de que o resultado do serviço seria a sua conclusão para a posição de que esse resultado, na verdade, corresponde à utilidade produzida pelo serviço.

Como dissemos, se a história tivesse terminado aqui, talvez o final fosse feliz. Com a pacificação dessa posição, restariam apenas questões fáticas que deveriam ser analisadas pelas instâncias ordinárias em cada caso concreto, à luz das específicas características de cada serviço (qual é a sua utilidade e onde ela é produzida), mas o STJ teria cumprido a sua missão de definir a tese jurídica a respeito do conceito de resultado para os serviços.

A confusão
Em um primeiro momento, o STJ ensaiou seguir esse caminho, ao julgar pelo menos três casos [1], entre 2020 e 2021, nos quais se recusou a analisar o mérito da configuração da exportação, em virtude da aplicação das suas Súmulas 5 e/ou 7.

Em todos esses processos, os tribunais de origem haviam concluído pela ocorrência (ou não) de exportação com base na concreta verificação da utilidade de cada serviço em jogo e do local em que ela ocorria. Por isso, uma vez constatado que a tese jurídica adotada pelas cortes de segunda instância estava em linha com a tese jurídica definida pelo STJ, não caberia a este último reanalisar os fatos, para dizer que um específico serviço teria outra utilidade, ou que esta utilidade seria produzida em outro lugar.

A situação mudou quando a 1ª Turma apreciou o AREsp nº 1.150.353/SP, cujo julgamento foi concluído em maio de 2021. A análise pormenorizada desse julgado – e dos que o seguiram em relação ao mesmo serviço – revela a compreensível dificuldade do STJ em lidar com os fatos subjacentes a cada caso, especialmente pela falta de costume com essa tarefa, certamente ocasionada pela Súmula nº 7.

No AREsp nº 1.150.353/SP, o debate girava em torno da exportação de serviços de gestão de investimentos prestados por uma gestora brasileira a fundos de investimentos estrangeiros. Em segunda instância, a exportação havia sido negada por aplicação de um entendimento que misturou o desenvolvimento do serviço com o seu resultado. Segundo o tribunal de origem, “a atividade da autora envolve a entrada de capitais estrangeiros provenientes da tomadora, que serão administrados pela empresa sediada no município de São Paulo, mediante a realização de operações financeiras, cujo resultado dos serviços, qual seja, o rendimento desses capitais, ocorre no território nacional, devendo, inclusive ser registrado no Banco Central do Brasil para posterior remessa à tomadora estrangeira”.

Pode-se fazer severas críticas a esse entendimento do tribunal de origem, especialmente nas afirmações de que a gestão de investimentos se limitaria à “realização de operações financeiras” e de que o resultado desse serviço corresponderia aos “rendimentos” dos recursos geridos. Essas afirmações levam à absurda situação em que a gestão não produziria qualquer resultado quando, em um determinado período, a gestora decidisse manter as posições de investimento (sem realizar novas “operações financeiras”), ou os investimentos gerassem prejuízos (e não “rendimentos”).

Seja como for, é seguro dizer que, certo ou errado, o acórdão de origem delimitou uma específica moldura fática (os recursos viriam para o Brasil para aqui serem geridos e investidos), baseado nas características dos contratos objeto daquele processo em concreto (transcritas no acórdão); e, a partir dessa específica moldura fática, chegou à conclusão pela inocorrência de exportação. Assim, se mantida a linha dos julgados anteriores, ao STJ caberia avaliar se o tribunal a quo havia (1) observado a tese jurídica fixada pelo próprio STJ em relação ao conceito de resultado de serviço (identificação do resultado-utilidade) e (2) seguido as normas processuais que regem a produção e a valoração de provas (caso contrário, o acórdão recorrido poderia ser anulado). Em nenhum caso, porém, o STJ deveria se imiscuir na análise dos fatos subjacentes ao caso, seja para confirmar ou para infirmar as constatações fáticas da corte local.

Em seu voto-condutor, o relator, ministro Gurgel de Faria, reiterou a ideia de que o resultado de um serviço corresponde à utilidade por ele gerada, ao afirmar que esse resultado ocorre no “lugar onde a suautilidade fosse efetivamente aproveitada pelo tomador”. Contudo, o voto foi além e buscou identificar a própria utilidade gerada pelo serviço de gestão de investimentos. E aqui começam os problemas fáticos.

O primeiro erro fático desse acórdão reside na identificação da gestão como a mera realização de “operações de compra e venda dos ativos financeiros que [a gestora] entender convenientes à obtenção de melhores rendimentos para o capital disponibilizado, e que, se bem sucedidos, culminarão no incremento patrimonial dos investidores”. Mais uma vez, tem-se o problema de um serviço que, embora prestado, não produziria qualquer resultado caso a gestora decidisse não vender nem comprar ativos financeiros em determinado período.

Esse primeiro problema fático quase foi mitigado quando, mais adiante, o voto indica que o resultado desse serviço estaria associado à “alteração patrimonial do fundo estrangeiro”. Ou seja, apesar de uma visão restrita acerca do escopo do serviço de gestão, o resultado foi corretamente identificado como o impacto (as “alterações”) que esse serviço produz sobre o patrimônio do fundo detentor dos recursos geridos, fazendo-o aumentar, diminuir ou manter-se estável ao longo do tempo.

Diz-se que “quase foi mitigado”, porque, na sequência, surge o segundo erro fático: o voto afirma que “os efeitos do serviço prestado pelo gestor brasileiro sobre a alteração patrimonial do fundo (…) são sentidos imediatamente no território nacional, deonde partiram as ordens de investimento. Por isso, segundo o relator, o resultado do serviço de gestão de investimentos ocorreria no lugar onde está situado o seu estabelecimento prestador, pois é nesse lugar que são apurados os rendimentos (ou prejuízos) decorrentes das ordens de compra e venda de ativos tomadas pelo gestor e que, desde logo, refletem materialmente na variação patrimonial do fundo.

Nenhuma dessas afirmações condiz com a realidade fática do serviço em discussão. A gestão de investimentos não se limita à mera compra e venda de ativos financeiros, ela envolve diversas outras atividades, que incluem a análise contínua dos mercados-alvo e podem levar à não realização de qualquer compra ou venda em determinado período; a alteração do patrimônio do fundo não depende apenas da compra ou venda de ativos financeiros, pois esse patrimônio é alterado pela simples variação no valor dos ativos que já compõem a carteira do fundo, ainda que não haja qualquer compra ou venda no período; a alteração do patrimônio do fundo não ocorre no local do qual partem as ordens de compra ou de venda de ativos financeiros, seja porque essa alteração acontece independentemente dessas ordens (como visto acima), seja porque cada ativo que gera os rendimentos ou prejuízos pode estar em lugares diferentes (no Brasil ou no exterior) e, em rigor, constitui apenas parte de um todo muito maior, que é o patrimônio total do fundo (consolidado, registrado e contabilizado onde ele está constituído); a bem da verdade, a “ordem de investimento” é um evento que não altera o valor do patrimônio do fundo, dado que, no caso do investimento, um montante que estava em caixa será “substituído” por um ativo de mesmo valor e, no caso de desinvestimento, um ativo de determinado valor será “convertido” em caixa no mesmo montante.

Pode-se dizer que esses equívocos (fáticos) decorreram da moldura (fática) que havia sido delimitada (ainda que incorretamente) pelo Tribunal de origem. Por isso, foi salutar a iniciativa da ministra Regina Helena Costa, que, em seu voto-vista, registrou que a sua análise recaiu sobre o serviço especificamente delineado pelas instâncias ordinárias”, razão pela qual “a conclusão alcançada está alicerçada na especificidade da presente ação, é dizer, considera o objeto da demanda tal como deduzido, não antecipando reflexão em relação a outras hipóteses provenientes do diversificado universo do mercado de capitais”. Ainda mais salutar foi a disposição do ministro Gurgel de Faria de encampar, expressamente, tal preocupação, vinculando a decisão ao quadro fático descrito pelo acórdão de 2ª instância naquele caso concreto [2].

Esse elogiável cuidado deveria garantir que a conclusão do AREsp nº 1.150.353/SP ficasse restrita àquele caso (ou, pelo menos, a casos que tivessem a mesma moldura fática delineada pelas instâncias ordinárias [3]) e não fosse automaticamente replicada em casos com molduras fáticas diferentes, que deveriam ser apreciados de maneira distinta pelo STJ.

Essa expectativa, contudo, começou a ruir no julgamento do AgInt nos EDcl no REsp nº 1.897.476/SP, pela mesma 1ª Turma, em maio de 2023.

Nesse processo, que também versava sobre a gestão de investimentos prestada por uma gestora brasileira a fundos estrangeiros, o tribunal de origem reconhecera a configuração da exportação, porque uma perícia havia constatado que, à luz das especificidades do serviço objeto daquele feito, o seu resultado ocorria no exterior.

Apesar de a decisão do tribunal de origem estar pautada em fatos constatados por prova pericial, o STJ superou essa moldura fática e, com base no AREsp nº 1.150.353/SP (que possuía uma moldura fática distinta), concluiu que o resultado do serviço ocorreria no Brasil, ou seja, em um lugar diferente do que havia sido constatado por uma perícia. É a representação do que seria a Súmula nº 7/STJ em algum universo paralelo, no qual se admite um Recurso Especial para se inverter as conclusões fáticas de uma prova pericial.

De qualquer forma, ainda há esperança de que, ao apreciar os embargos de declaração opostos no AgInt nos EDcl no REsp nº 1.897.476/SP, o STJ recoloque o curso da discussão nos seus devidos trilhos e apenas verifique se o Tribunal a quo adotou a tese jurídica relativa ao resultado-utilidade, abstendo-se de substituir a análise fática feita pelas instâncias ordinárias (com base em prova pericial) acerca de qual seria e de onde ocorreria essa utilidade.

Essa esperança é reforçada pelo fato de que, posteriormente, o mesmo relator do AgInt nos EDcl no REsp nº 1.897.476/SP, ministro Benedito Gonçalves, proferiu decisão monocrática em outro caso sobre o mesmo serviço (AREsp nº 2.288.151/SP), pela qual observou o alcance (auto)limitado do decidido no AREsp nº1.1503.53/SP e determinou que o Tribunal de origem se debruce sobre as “peculiaridades do caso em questão, a fim de enquadrá-lo ou não no precedente citado no acórdão recorrido (AREsp 1.150.353/SP, relator: ministro Gurgel de Faria, 1ª Turma, DJe 13/5/2021)”.

O problema é que a tese jurídica acerca do que é o resultado de um serviço tampouco escapa da confusão jurisprudencial. Embora haja vários julgados que reiteraram a identificação desse resultado com a sua utilidade [4], ainda é possível encontrar decisões isoladas que derrapam na hora de aplicar essa posição.

Este foi o caso do REsp nº 2.075.903/SP, julgado em agosto de 2023 pela 2ª Turma, no qual se discutiu a configuração da exportação de serviços de exame, pesquisa, coleta, compilação e fornecimento de dados destinados ao desenvolvimento de produtos farmacêuticos e médicos no exterior. O tribunal de origem reconhecera a exportação, sob o entendimento de que a utilidade decorrente de tal serviço consistia na utilização dos dados fornecidos pela empresa brasileira no desenvolvimento de produtos médicos no exterior.

Ao examinar o caso, o relator, ministro Francisco Falcão, se valeu do (superado) entendimento firmado no REsp nº 831.124/RJ. Sustentou que “o tomador [SIC] de serviços foi contratado para a realização de serviços específicos conforme acima enumerado, e o resultado dos serviços que foram integralmente desenvolvidos no Brasilse relaciona ao próprio serviço, não havendo se falar em complementação no exterior dos serviços contratados”. Essa posição faz tábula rasa de toda a evolução da corte na direção de identificar o resultado do serviço com a sua utilidade, para ressuscitar a compreensão de que esse resultado equivaleria à própria prestação do serviço, em contrariedade a um sentido minimamente razoável do artigo 2º, parágrafo único, da LC nº 116/2003.

Novamente, resta a esperança de que esse tenha sido um caso isolado que inadvertidamente não retratou o real entendimento consolidado do tribunal, algo compreensível em uma corte submetida a um exorbitante volume de processos.

Como se vê, a confusão quanto aos contornos da exportação de serviços para fins de ISS permanece: não há segurança absoluta quanto à tese jurídica (se o resultado equivale à prestação/conclusão ou à utilidade do serviço) nem, principalmente, quanto aos seus efeitos em cada caso concreto (se as questões fáticas, notadamente a identificação de qual é e de onde se produz a utilidade de um serviço, devem ser examinadas pelas instâncias ordinárias ou pelo STJ).

Uma possível solução
A pacificação da discussão em torno da configuração de uma exportação de serviço isenta do ISS depende, simultaneamente, de uma proatividade e de uma autocontenção por parte do STJ.

A proatividade reside na cristalização da tese jurídica acerca do conceito de resultado previsto no artigo 2º, parágrafo único, da LC nº 116/2003. É crucial que o tribunal defina, de uma vez por todas, preferencialmente via precedente vinculante, se o resultado corresponde à utilidade, à prestação, ou à conclusão do serviço. Em que pese a clareza da inclinação da corte pelo conceito de utilidade, deve haver um compromisso institucional com esse entendimento, sem espaço para julgados isolados que se valham de outros critérios e acabem por embaçar a visão acerca da posição do tribunal.

Já a autocontenção se refere às questões fáticas que se tornam relevantes a partir da fixação da supracitada tese jurídica. Uma vez definido, por exemplo, que o resultado deve ser entendido como a utilidade produzida por determinado serviço, não cabe ao STJ dizer qual é essa utilidade nem onde ela é verificada, pois não há, em regra, Lei Federal que estabeleça o que constitui e o local em que ocorre a utilidade de cada serviço.

Em rigor, essa utilidade é revelada pelos contratos e demais elementos materiais concretamente envolvidos em cada serviço, os quais podem ser reconstruídos a partir de provas documentais e/ou periciais, cujo exame foge ao escopo de atuação do STJ, à luz da aplicação coerente e consistente das Súmulas nºs 5 e 7.

Definitivamente, deve caber ao STJ verificar se o tribunal de origem (1) aplicou a tese jurídica correta, bem como (2) respeitou as normas processuais que regem a produção de provas e se ateve aos elementos probatórios de cada processo, sem inventar fatos inexistentes ou não provados.

Com isso, o Tribunal da Cidadania garantirá que a aplicação da Lei Federal em questão (LC nº 116/2003) seja juridicamente uniforme e, ao mesmo tempo, observe as peculiaridades fáticas de cada serviço.

 


[1] AgInt no AREsp nº 1.708.468/SP; AgInt no AREsp 1.708.468/SP; AgInt no REsp 1.905.526/SP.

[2] O relator fez constar expressamente do seu voto-condutor: “Assim como fez a eminente Min. Regina Helena Costa, em seu voto-vista, ‘destaco, por fim, que a conclusão alcançada está alicerçada na especificidade da presente ação, é dizer, considera o objeto da demanda tal como deduzido, não antecipando reflexão em relação a outras hipóteses provenientes do diversificado universo do mercado de capitais’”.

[3] Isso ocorreu no julgamento do AgInt no AREsp nº 1.427.985/SP, pela 2ª Turma do STJ, em março de 2023. Nesse caso, certo ou errado, o Tribunal de origem também havia fixado que “a atividade da autora no caso sub judice envolve o recebimento de capitais provenientes de seus clientes no exterior, para serem por ela administrados no município de São Paulo, mediante a realização de compra e venda de títulos e valores mobiliários”.

[4] Por exemplo: REsp nº 1.805.226/SP, AgInt no AREsp nº 1.931.977/RS; AgInt no REsp nº 1.996.935/SP; AgInt no AREsp nº 1.427.985/SP; AgInt no AREsp nº 1.427.985/SP. Pode-se discordar da conclusão do STJ acerca de qual seria a utilidade gerada pelo serviço e da ocorrência ou não de exportação nesses casos, mas, em todos eles, o Tribunal adotou a premissa de que o resultado do serviço corresponde à sua utilidade.

Autores

  • é sócio de FreitasLeite Advogados, doutor em Direito Tributário pela Universitat de Barcelona, mestre em Direito Público pela Uerj, coordenador do Projeto Jurisprudência Tributária (PJT) e conselheiro da ABDF

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