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Quem com bodycam filma, com bodycam será filmado. É da democracia

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Alexandre Claudino Simas Santos

    é mestrando (Capes/Proex) na Universidade do Vale do Itajaí (Univali) com dupla titulação pela Università degli Studi di Perugia (Itália) especialista em Jurisdição Federal pela Esmafesc/Univali e secretário jurídico do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

23 de janeiro de 2024, 17h55

A recente decisão proferida pela 6ª Vara Criminal da Comarca de Santos (SP) — autos nº 1502367-61.2023.8.26.053 [1] —, absolvendo dois acusados de tráfico e porte de arma de fogo com base nas gravações das câmeras corporais acopladas às vestimentas dos policiais é mais um elemento que  se soma à complexa (e atual) discussão em torno da utilização desse meio de obtenção de prova no âmbito do processo penal.

Como já abordado em artigo sobre o tema (SANTOS, Alexandre Claudino Simas) [2], o uso de câmeras corporais pelos agentes de polícia tem o potencial de incrementar a obtenção de evidências, ampliar a transparência das agências de segurança, reforçar o controle social sobre os órgãos policiais e reduzir os episódios de uso excessivo da força nas abordagens. É, como descreve David Garland, exemplo da implementação de uma estratégia de política de segurança pública denominada preventative partnership [2001, p. 17], orientada à prevenção, segurança e à redução de danos, perdas e da sensação de medo, opondo-se à tradicional abordagem baseada no punitivismo e na “justiça criminal”.

Spacca
Alexandre Morais da Rosa com tarja

Análises sobre os efeitos psicológicos decorrentes do uso das câmeras corporais sugerem que a presença do dispositivo promoveria um “efeito civilizatório”, por meio da autoconsciência (self-awareness theory) e da dissuasão (deterrence theory). Em geral, o levantamento da cena do crime é realizado pela perícia técnica, acionada posteriormente ao primeiro contato com o evento penal. Nas situações com vítimas que demandam atendimento e/ou suporte, o estado da cena do crime pode ser substancialmente alterado por parte dos socorristas e/ou agentes policiais em face do contexto de urgência e/ou emergência. Para mitigar o efeito da intervenção necessária das equipes de atendimento, o treinamento e a integração de câmeras (bodycam) poderia melhorar a qualidade do levantamento posterior, autorizando a identificação dos pontos alterados. Além disso, técnicas de filmagem 360º podem preservar as circunstâncias materiais da cena do crime, desde que garantida a cadeia de custódia. Propicia também que equipes de apoio possam acompanhar a diligência, triangulando com outras câmeras e sensores, reduzindo os riscos associados às diligências policiais. Enfim, garante a todos, salvo os que adotam a violência como prática abusiva.

Há, por outro lado, quem aponte para fatores psicológicos potencialmente negativos, como a piora da autopercepção dos policiais em função do uso dos equipamentos, uma vez que a vigilância constante permite um escrutínio minucioso sobre a atuação diária dos agentes de segurança, trazendo receio quanto à possíveis prejuízos na carreira em caso de captação de conteúdo indesejado.

Nesse cenário, a sentença da Justiça paulista deve ser comemorada por aqueles que buscam a consolidação de um processo penal mais justo e respeitador das garantias fundamentais. Não deve, contudo, ser tomada como representativa de uma virada rumo ao estabelecimento de uma abordagem democrática da justiça penal.

É que o mesmo tribunal, dessa vez em decisão de suspensão de liminar proferida pelo Órgão Especial da Corte, determinou que os agentes de polícia não são obrigados a utilizar câmeras corporais em todas as operações cujo objetivo seja “responder à ataques praticados contra policiais militares” [3].

A decisão suspensiva foi mantida pelo ministro presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso (vide Suspensão de Liminar 1.696, formulada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo). Embora tenha reconhecido que “a utilização de câmeras é muito importante e deve ser incentivada” e a relevância da “dupla garantia promovida pelo uso das câmeras”, o ministro Barroso corroborou os argumentos de ordem financeira e operacional lançados pelo TJ-SP para, ao fim, decretar o descabimento da intervenção do Judiciário na questão [4].

Na prática, a regulamentação do uso das câmeras segue indefinida, à espera da consolidação de promessas de normatização, como a recentemente anunciada pelo ministro da Justiça [5]. No atual estágio de transparência, recursos tecnológicos disponíveis, a perseverança da opacidade dos atos estatais é incompatível com os deveres de conformidade. Se a regra é a publicidade e o segredo exceção, a negativa retórica é inválida.

Enquanto  isso, é preciso que os tribunais se atentem à necessidade de superação do standard probatório nos casos em que, se possível a gravação da ocorrência, tenha o agente estatal deixado de utilizar as câmeras ou, ainda, não apresentado o conteúdo registrado para a devida juntada ao procedimento criminal.

Se o registro audiovisual das câmeras é, como afirma Aury Lopes Jr., meio de prova, “através do qual se oferece ao juiz meios de conhecimento, de formação da história do crime, cujos resultados probatórios podem ser utilizados diretamente na decisão” (LOPES JR, 2020, p. 586), incumbe ao Judiciário zelar por todas as etapas da gestão probatória, inclusive aplicando a Teoria da Perda de Uma Chance Probatória em favor do réu aos casos em que houver omissão do Estado na colheita de elementos concretos acerca da prática do fato delituoso imputado.

É verdade que a filmagem não pode ser a nova rainha das provas, exigindo-se cuidados adicionais, sob o risco concreto de a instrução restringir-se à mera reprodução das cenas. Em consequência, a incorporação das bodycam exigirá o alinhamento normativo e o lugar e função probatória [CANI, Luiz Eduardo; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Gravações com câmeras individuais em policiais gera outros problemas no processo penal. Atualidades do Direito: obra em homenagem ao professor Luiz Flávio Gomes. Salvador: JusPodivm, 2020)

No julgamento do HC 229.333, o ministro Nunes Marques, apontou a importância da atualização das câmeras, anulando a condenação que deixou de franquear acesso à defesa, com críticas contundentes ao modus operandi dos agentes estatais (aqui).

Assim já assentou o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em acórdão relatado por um dos autores [Apelação Criminal n. 5000191-89.2023.8.24.0072-SC]:

É inválida, em pleno século 21, a valoração da prova policial nos moldes do século passado, diante do contexto tecnológico disponível, com a plena possibilidade de fonte autônoma. Se a integridade dos atos judiciais exige gravação, a ação dos agentes da lei, sem mediação judicial, restringindo Direitos Fundamentais, também deve se cercar de instrumentos de conformidade.

Tais quais outras tecnologias já incorporadas aos procedimentos investigatórios, as câmeras corporais não apresentam malefícios ou benefícios intrínsecos ou essenciais. O resultado da sua implementação dependerá do framework regulatório, a estrutura de incentivos, além do abandono da mentalidade inquisitorial que ainda permeia os tribunais brasileiros.

Transparência é bilateral: quem com bodycam filma, com bodycam será filmado.

 


[1] Processo Digital n. 1502367-61.2023.8.26.0536 – Controle n. 458/23. TJSP. Sistema SAJ.

[2] SANTOS, Alexandre Claudino Simas. A REGULAMENTAÇÃO DO USO DE CÂMERA CORPORAIS PELOS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA E OS REFLEXOS NA PERSECUÇÃO PENAL: ENTRE O EFEITO CIVILIZATÓRIO E A ARMADILHA SOLUCIONISTA. https://indexlaw.org/index.php/revistacpc/article/view/9686

[3] https://www.conjur.com.br/2023-dez-15/tj-sp-decide-que-policiais-nao-precisam-usar-cameras-em-operacoes/

[4] https://www.conjur.com.br/2024-jan-02/uso-de-cameras-por-policiais-em-sp-deve-ser-implementado-mas-sl-nao-e-meio-proprio/

[5] https://noticias.uol.com.br/colunas/carolina-brigido/2024/01/19/dino-deve-baixar-norma-sobre-cameras-em-fardas-policiais-antes-de-deixar-mj.htm

Autores

  • é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • é mestrando (Capes/Proex) na Universidade do Vale do Itajaí (Univali), com dupla titulação pela Università degli Studi di Perugia (Itália), especialista em Jurisdição Federal pela Esmafesc/Univali e secretário jurídico do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

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