Opinião

Evolução tecnológica do Judiciário: desafios da implementação do domicílio judicial eletrônico

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7 de maio de 2024, 11h26

O procedimento adotado pelos tribunais para realização das intimações e publicações no sistema judiciário brasileiro evoluiu significativamente ao longo das últimas décadas, passando da entrega física de documentos aos interessados até a implementação de sistemas eletrônicos avançados.

Para todos, sem a menor sombra de dúvida, apesar de todas as dificuldades para adaptação, foi de grande valia a transição dos processos judiciais físicos para a tramitação eletrônica.

Esta mudança não apenas modernizou a maneira como a Justiça é administrada, mas também trouxe benefícios substanciais em termos de eficiência e acessibilidade.

Posteriormente, com a pandemia, a informatização do Judiciário trouxe ainda mais benefícios. As distâncias foram reduzidas e os canais de comunicação foram muito eficientes e importantes para esta nova realidade.

Com todas estas mudanças, houve uma redução notável no tempo de tramitação dos casos, já que foram eliminadas etapas de movimentações físicas de documentos que, além de custosas, tornavam os atos processuais absolutamente morosos.

Sem falar nos impactos ambientais. A redução no uso de papel também contribuiu para práticas mais sustentáveis, alinhando o Judiciário com as políticas de preservação ambiental.

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Apesar de todos estes pontos positivos supracitados, quem viveu este período sabe que a transição para processos e intimações eletrônicas, embora tenha trazido avanços significativos na eficiência do sistema judiciário, não ocorreu de forma tranquila e amena.

Durante o período de adaptação (que é vivido, de certa forma, até hoje), os advogados enfrentaram dificuldades substanciais, principalmente devido à diversidade de sistemas eletrônicos utilizados pelos tribunais pátrios.

Cada sistema, como o PJe (processo judicial eletrônico), e-SAJ, Projudi, entre outros, possui características próprias, demandando que os profissionais se familiarizem com múltiplas interfaces e procedimentos.

Além disso, essa multiplicidade de plataformas implicou uma curva de aprendizado íngreme e a necessidade de investimentos significativos em tempo e recursos para capacitação.

Também devem ser considerados os custos de manutenção e atualização dos sistemas, assim como o aumento de erros operacionais, afetando diretamente a gestão dos prazos processuais.

A instabilidade, falhas técnicas e dificuldade de obtenção de suporte também foram pontos críticos, comprometendo frequentemente o acesso às informações processuais e a execução de atos jurídicos essenciais (como o mero cumprimento de prazos).

Tais problemas não apenas provocaram estresse e incerteza, mas também levantaram preocupações sobre a segurança e a confiabilidade do armazenamento eletrônico das informações.

Portanto, apesar dos benefícios trazidos pela digitalização, a fase de transição foi marcada por complexidades e desafios que exigiram uma adaptação árdua e muitas vezes onerosa por parte dos advogados e escritórios de advocacia.

Implementação do DJE

Agora, depois do enfrentamento de todo este caos, novamente os advogados serão colocados à prova, considerando a implementação do Diário Judicial Eletrônico (DJE) por meio da Resolução nº 455/2022 e Portaria nº 29/2023 do CNJ, sistema este que pretende substituir todos os demais meios de comunicação processual.

A implementação do DJE, embora traga promessas de maior eficiência, levanta questões jurídicas substanciais que devem ser debatidas.

As intimações não serão encaminhadas exclusivamente aos patronos dos processos, como ocorre atualmente seguindo as disposições do Código de Processo Civil e da Lei do Processo Eletrônico. Estas serão encaminhadas também às partes. E este ponto é muito relevante, apesar de até o presente momento não ter sido divulgado nenhum debate sobre o tema.

Com o novo sistema, será essencial que haja uma comunicação extremamente eficaz entre os representados e seus patronos, especialmente porque tanto as partes quanto seus advogados poderão tomar ciência dos atos processuais de forma independente.

Essa possibilidade de ciência independente pelos advogados e pelas partes, embora possa parecer um avanço em termos de acesso à informação, também carrega o risco de desencontros, assim como o pior cenário que é a perda de prazos.

Por exemplo, uma parte pode receber uma intimação e não comunicar de forma adequada e tempestiva ao seu advogado, o que pode comprometer a defesa ou o cumprimento de prazos processuais.

Portanto, a eficácia do DJE dependerá não apenas da interoperabilidade tecnológica e da estabilidade dos sistemas, mas também da capacidade de advogados e clientes de manterem um alinhamento constante e eficiente.

Neste contexto, a adaptação ao DJE não é apenas uma questão de familiarização com uma nova ferramenta tecnológica, mas também implica a necessidade de desenvolvimento de estratégias robustas de comunicação entre advogados e seus clientes para garantir que todas as informações processuais sejam gerenciadas de maneira precisa e eficiente.

Isso pode exigir a implementação de novos protocolos internos nos escritórios de advocacia e talvez até uma revisão nos métodos tradicionais de interação cliente-advogado. Sem falar de novos custos (além de todos já gerados pelas alterações passadas) para contratação de pessoal ou até de ferramentas de controle.

Não se desconhece a existência de tal método na tramitação dos processos administrativos, como o e-CAC no âmbito federal, por exemplo. No entanto é relevante destacar que a figura do advogado nos processos administrativos apenas foi incluída no Estatuto da OAB em 2022 e que a Súmula Vinculante nº 5 do STF dispõe que “a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. Logo, sendo a figura do advogado facultativa nestas hipóteses, de fato é indispensável que as intimações sejam endereçadas às partes.

Porém não é o que ocorre no âmbito judicial. Nos processos judiciais a presença do advogado apenas não será obrigatória em três situações: proposição de Habeas Corpus; Juizados Especiais e Justiça do Trabalho (ressalvada a interposição de recurso ao TST, situação na qual o advogado é indispensável). Em todas as demais a representação das partes por advogado é obrigatória.

O advogado pode ser responsabilizado civilmente pela perda de prazo, havendo previsão de infração disciplinar no artigo 34, XVI do Estatuto da OAB, que dispõe da seguinte redação: “Constitui infração disciplinar deixar de cumprir, no prazo estabelecido, determinação emanada do órgão ou de autoridade da Ordem, em matéria da competência desta, depois de regularmente notificado”.

Todavia, diante do novo cenário, torna-se questionável a notificação regular do advogado mencionada no artigo 34, XVI, do EOAB já que qualquer pessoa da empresa, inclusive sem conhecimento técnico, poderá iniciar o dever que é do advogado e que só ele será penalizado em caso de perdas de prazos!

Dispositivos legais dos advogados

Em meio a tantas tentativas de modernidade à tramitação dos processos no País, não podemos esquecer dos dispositivos legais que visam resguardar as atividades dos advogados.

Nos termos do artigo 269 do Código de Processo Civil (CPC), “intimação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém dos atos e dos termos do processo”.

Já o artigo 270 diz que “as intimações realizam-se, sempre que possível, por meio eletrônico, na forma da lei”.

E merece especial atenção o § 5º do artigo 272 do CPC, já que este dispositivo estipula que, quando houver um pedido expresso nos autos para que as comunicações dos atos processuais sejam feitas exclusivamente em nome dos advogados indicados, qualquer desatendimento a essa solicitação implica nulidade das comunicações.

E o artigo 280 do CPC deixa claro que as citações e as intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais.

Ou seja, sendo a ciência realizada no DJE por qualquer pessoa que não seja o advogado indicado nos autos, podemos acreditar que os juízes e tribunais reconhecerão a nulidade do ato e concordarão com a devolução do prazo?

Este sempre foi o entendimento jurisprudencial. É certo que admitir qualquer interpretação contrária seria o mesmo que concluir que a Resolução nº 455/2022 e a Portaria nº 29/2023 do CNJ teriam o poder de substituir as previsões legais, o que não se pode considerar.

Inclusive, para a doutrina e jurisprudência, a ausência de publicação em nome de terceiros que não mais patrocinam a causa representa vício insanável/nulidade absoluta, inclusive para as intimações eletrônicas.

Ignorar tais previsões compromete diretamente o direito ao exercício da ampla defesa e do contraditório, princípios fundamentais assegurados pelo artigo 5º da Constituição, já que o início do prazo poderia se dar por pessoas que não possuem qualquer conhecimento técnico.

Vejamos alguns julgados que comprovam estas afirmações:

APELAÇÃO. AÇÃO DE USUCAPIÃO. SENTENÇA DE EXTINÇÃO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. INSURGÊNCIA DA PARTE AUTORA. INTIMAÇÃO DA PARTE AUTORA QUE FOI DIRIGIDA A ADVOGADO DIVERSO DAQUELE INDICADO NA INICIAL. APLICAÇÃO DO ARTIGO 272, § 5º DO CPC. ANULAÇÃO DA SENTENÇA QUE SE IMPÕE. 1. Na petição inicial houve pedido expresso da parte autora para que as intimações fossem efetuadas exclusivamente na pessoa do Dr. Marcos André Flores Ramos – OAB/RJ 74.822. 2. A intimação eletrônica da parte autora, acerca do despacho de indexador 235, foi realizada na pessoa da Dra Tatiana Fernandes Gomes Affonso, portanto, equivocadamente dirigida a patrono diverso daquele expressamente indicado pela parte demandante. 3. Há certidão cartorária informando que “não houve manifestação da Parte Autora a respeito do ato de Fl. 235”. 4. Sobre a matéria, o artigo 272, § 5º, do CPC, dispõe que “constando dos autos pedido expresso para que as comunicações dos atos processuais sejam feitas em nome dos advogados indicados, o seu desatendimento implicará nulidade”. 5. Nesse cenário, a sentença de extinção deve ser anulada, para que se promova a regular intimação da parte interessada quanto ao despacho de indexador 235. RECURSO AO QUAL SE DÁ PROVIMENTO, ANULANDO-SE A SENTENÇA.

(TJ-RJ – APELAÇÃO: 0048224-40.2006.8.19.0038 202300157676, Relator: Des(a). WILSON DO NASCIMENTO REIS, Data de Julgamento: 22/02/2024, DECIMA SETIMA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 26, Data de Publicação: 23/02/2024)

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CAUTELAR DE SUSTAÇÃO DE PROTESTO. INTIMAÇÃO NÃO REALIZADA. INOCORRÊNCIA. INTIMAÇÃO NA PESSOA DO ADVOGADO CADASTRADO NO SISTEMA PJE. VALIDADE. SENTENÇA MANTIDA. 1. “Em se tratando de processo eletrônico, prevê o § 6º do art. 5º da Lei 11.419/06 que as intimações feitas por meio eletrônico aos devida e previamente cadastrados, inclusive a Fazenda Pública, serão consideradas pessoais para todos os efeitos legais” (Precedente do STJ). 2. Demonstrado que houve a efetiva e válida intimação dos patronos da parte autora, que estão cadastrados no PJE, resulta descabida a anulação da sentença que indeferiu a inicial. 3. Apelação a que se nega provimento.

(TRF-1 – AC: 10005676920174013810, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL DANIELE MARANHÃO COSTA, Data de Julgamento: 10/06/2020, 5ª Turma, Data de Publicação: PJe 22/06/2020 PAG PJe 22/06/2020 PAG)

A conclusão a que se chega então diante deste cenário é que a intimação direta das partes, em detrimento da intimação exclusiva aos advogados, pode ter sérias implicações e representa claramente nulidade processual, ilegalidade e inconstitucionalidade.

Primeiramente, por comprometer o prazo legal que o advogado tem para agir aos movimentos processuais, uma vez que a parte pode não ter o conhecimento técnico para compreender a urgência ou a relevância da comunicação recebida.

Ademais, tal prática enfraquece a figura do advogado como intermediário necessário e guardião dos direitos processuais da parte, podendo ser indevidamente responsabilizado como mencionado acima.

Observamos que a melhor solução seria a remessa das intimações aos responsáveis legais. Às partes, deveriam ser direcionadas as citações e intimações relacionadas aos processos sem patronos habilitados. Aos advogados devidamente constituídos, as demais comunicações processuais.

Em hipóteses em que há apresentação de substabelecimento sem reserva de poderes, sem a constituição de novo patrono, o direcionamento das intimações diretamente às partes seria realmente efetivo e essencial, por exemplo.

Acreditamos na importância da instituição do DJE. Sem dúvida, representa grande evolução à informatização, centralização e unificação do envio das comunicações processuais.

Contudo, tal medida não pode ocorrer sem considerar, também, a evolução legislativa, em detrimento do direito dos advogados e das partes.

O que se coloca neste artigo então são estes relevantes pontos para debate entre a advocacia e o CNJ, que podem afetar a continuidade das relações processuais.

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