Opinião

Quadro atual da regulação das criptomoedas no Brasil e sugestões da OCDE

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4 de maio de 2024, 11h19

Um dos problemas da regulação de novas tecnologias é o justo limite temporal para a intervenção do Estado na atividade do particular, uma vez que a regulação prematura interrompe o avanço da inovação e a regulação tardia se torna ineficaz. Denominada de Dilema de Collingridge, a dificuldade relatada decorre de estudos sociológicos da tecnologia que sugerem que, nos estágios iniciais, a flexibilidade da inovação é alta, todavia, ao final, quando ela se estabiliza, torna-se difícil a sua modificação.

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Diante dessa premissa, surgem doutrinas filosóficas que versam sobre a intensidade/modalidade da regulação do Estado sobre os particulares, sendo certo que este artigo adota como regulação ideal aquela em que o Estado contempla diretivas a uma entidade centralizadora e esta cria exigências para que os players possam atuar (regulação da autorregulação).

A título de exemplo aplicável a tal modalidade, podemos citar as instituições financeiras, que, para terem autorização de funcionamento, são obrigadas a seguir diretrizes do Estado.

Salienta-se que a regulação da autorregulação, para ser eficiente, depende de uma gradual participação de particulares com o escopo de, conjuntamente, construírem um marco regulatório, no qual os agentes privados aceitem correções e proponham a evolução das normas.

Caducidade, experimento e formas de regulação

Por sua vez, a atuação dos agentes públicos consiste na exclusão de anormalidades extremas, usando tanto de métodos indutivos (concessão de benefícios fiscais), como de métodos impositivos (controle e comando). Sobre o tema, cita-se a doutrina de Sofia Ranchordás, que prevê que, nos casos de aplicação de métodos impositivos, deve-se utilizar cláusulas de caducidade e experimento.

Segundo a autora, o primeiro grupo de normas possibilita que o ordenamento crie mecanismos de regulação, no qual, por serem dotadas de caráter temporário, permitem uma frequente reanálise dos ciclos de vida da tecnologia e dos novos interesses a serem seguidos, gerando um ônus para o agente estatal de demonstrar a necessidade de renovação da referida previsão.

No que tange aos regulamentos experimentais, cita-se uma prática na qual a administração destaca parcela do mercado para participar da regulação e colher os resultados (sandbox regulatório, regulamentado no Brasil pela Resolução nº 50/2020, do BCB, e Resolução nº 29/2021, da CVM).

Feitas essas observações iniciais, citando Julia Black, afirma-se que a regulação deve ocorrer de forma híbrida (combinando atores governamentais e não governamentais), multifacetada (várias estratégias simultâneas) e indireta (criando mecanismos de estímulo ao cumprimento das normas, como forma de evitar a entropia do sistema).

Questão da transparência

Expostos em linhas gerais os parâmetros de uma regulação satisfatória, cumpre discutir o principal problema das criptomoedas. Isso, porque, as criptomoedas são um ativo no qual a chave pública, embora facilmente visualizada, não identifica a pessoa como seu titular no mundo. Em outras palavras, embora o nome de quem opera a transação seja público, esse dado não permite identificar a pessoa natural ou jurídica que está operando tal “conta”. Ou seja, falta uma transparência que permita identificar/correlacionar o real proprietário do bem e a chave pública.

Spacca

Neste ponto, malgrado a gênese das criptomoedas seja o anonimato, a expansão dessa tecnologia acarretou uma desvinculação em relação à origem filosófica. Dessa forma, o usuário, hoje, não se importa tão somente em permanecer oculto, mas também com a rentabilidade/aceitabilidade desse ativo.

Sob essa perspectiva, parece relevante estimular que todas as operações de “câmbio” de criptomoedas ou aquisição de produtos por criptomoedas ocorram dentro das exchanges. Isso, porque, tais instituições, ao cadastrarem os usuários dessa plataforma automaticamente terão acesso ao fluxo de movimentação de tais ativos, reportando-os à administração pública, evitando, assim, a lavagem de dinheiro e a erosão da base tributária do Estado.

Diretrizes

Sobre o tema, vale recordar que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) produz diretrizes para os países membros, sendo que esses as incorporam em sua legislação e impõem que as instituições privadas se adaptem a tais comandos. Assim, tendo por base algumas normas já previstas no CRS (Common Reporting Standard), cuja preocupação é o reporte de informações das instituições financeiras à jurisdição sujeita à comunicação (Estado), a OCDE trouxe diretivas para as exchanges através do Carf (Crypto-Asset Reporting Framework).

Segundo as diretrizes previstas no Carf, os prestadores de serviço de criptoativos reportantes (Exchanges) devem ter um sistema que permita a auto certificação de usuários de criptomoedas. Nesse caso, o usuário será identificado por um “Taxpayer Identification Numbers” (TIN) e todas as operações que ele realizar ficarão registradas no sistema, devendo serem reportadas à autoridade fiscal local. Ainda sobre o tema, vale afirmar que as transações que podem ocorrer dentro dessas prestadoras de serviço são:

(1) operação cambial (tanto entre moeda fiat e criptomoedas, como apenas entre criptomoedas); e
(2) transferências de criptoativos relevantes (transações de pagamento). Frisa-se, ainda, que se as operações superarem o montante de US$ 50 mil, serão tidas como transação de pagamento de varejo relevante, as quais deverão ser imediatamente reportadas. Por seu turno, em que pese as transferências inferiores também devam ser reportadas, não serão consideradas relevantes.

Fazendo um paralelo com a legislação brasileira, o Brasil exige que operações acima de R$ 50 mil sejam imediatamente reportadas ao Coaf por instituições financeiras. Por sua vez, quando os valores forem inferiores à tal quantia e superiores à R$ 10 mil, se a instituição financeira suspeitar de lavagem de dinheiro, também tem o dever de informar.

Ainda dentro das observações quanto ao Carf, salienta-se que todas as operações com criptoativos devem ser convertidas para o valor justo de moeda fiat.

Por último, as normas previstas nessa resolução não se aplicam às instituições financeiras (custodiante, depositária, entidade de investimento ou companhia de seguros especificada), uma vez que a elas já se aplica a sistemática do CRS (Common Reporting Standard), devendo, portanto, ser evitado o duplo reporte.

Legislação

Feita essa breve digressão sobre o CRS e Carf, vale analisar se a legislação brasileira possui normas que permitam a adequação das exchanges ao disposto no quadro regulatório dos ativos criptografados internacionalmente.

De forma simples, o Sistema Financeiro Nacional, que se preocupa com a economia popular e as distorções provocadas por particulares no mercado financeiro, é composto por entidades normativas e entidades de supervisão. Para os fins que realmente importam para este trabalho, destaca-se o Conselho Monetário Nacional (entidade normativa), o Bacen e a CVM (entidades de supervisão).

De forma bem resumida, o advento da Lei nº 4.595/64 teve o condão de retirar do Banco do Brasil a regulação do mercado financeiro e transferi-la para o Banco Central, bem como atribuir ao Conselho Monetário Nacional o caráter normativo das políticas econômicas. Já a Lei nº 4.728/65, dispôs que os valores mobiliários seriam disciplinados pelo Conselho Monetário Nacional e fiscalizados pelo Banco Central, sem que, contudo, definisse a expressão “valores mobiliários”. Ademais, observa-se, também, que a referida legislação equiparou valores mobiliários e títulos, sendo certo que este é a mera representação daquele.

Em seguida, a Lei nº 6.385/76 criou a CVM, dividindo a competência fiscalizatória da seguinte forma:

(1) Bacen: títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal, os títulos cambiais de responsabilidade de instituição financeira, exceto as debêntures e os demais casos não previstos no artigo 2º, da Lei nº 6.385/76; (2) CVM: o rol taxativo dos títulos previstos no referido artigo 2º, da Lei nº 6.385/76. Por último, a Lei nº 10.303/01 permitiu uma melhor estruturação de tal autarquia, determinando que o Bacen, em conjunto com a o Conselho Monetário Nacional, é a autoridade monetária, competindo à CVM a atribuição de regular os contratos de investimento coletivo.

Em relação ao Bacen, a entidade, por meio do Comunicado nº 31.379, de 2017, manifestou-se no sentido de que, além de não possuir atribuição para supervisionar as operações com as moedas virtuais, essas não se confundiriam com as moedas digitais.

A Comissão de Valores Mobiliários também já teve a oportunidade de estudar o tema, dispondo, por intermédio do Ofício Circular 01/2018/CVM/SIN, que as criptomoedas ainda não podem ser qualificadas como ativos financeiros, para os efeitos do disposto no artigo 2º V, da Instrução CVM nº 555/14 e, por essa razão, sua aquisição direta pelos fundos brasileiros não seria permitida.

No entanto, em seguida, através do Ofício Circular nº 11/2018/CVM/SIN, o referido órgão se manifestou no sentido de que o residente no Brasil poderia adquirir participação em fundo internacional que explorasse a compra e venda de criptomoedas. No ano de 2021, todavia, houve o Parecer de Orientação nº 40, da CVM, que trouxe normativas para a equivalência de criptoativos à valores mobiliários (utilizassem de ICOs para obtenção de financiamento dos seus projetos – contratos de investimento coletivo — que seriam apurados pelo Teste de Howey).

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) de igual modo já foi indagado a se pronunciar sobre criptomoedas. No Inquérito Administrativo nº 08700.003599/2018-95, o Cade analisou o caso de instituições financeiras tradicionais que, com o argumento de proteção ao Sistema Financeiro Nacional, impediram as Exchanges de operar contas de recebíveis em seus domínios (não autorização para abertura de conta, recusa em mantê-las ou encerramento das contas já existentes).

Depois de recursos administrativos contra o arquivamento da denúncia, a Conselheira Relatora Lenisa Rodrigues Prado autorizou a abertura de processo administrativo sancionador. Ao final, o Inquérito foi arquivado, em 21.07.2022, por inexistir demonstração de violação à ordem econômica.

Para além desses órgãos, há também manifestações da Receita Federal. A primeira delas, em forma de perguntas e respostas, questiona como os criptoativos devem ser declarados e tributados, tema que passou por uma evolução. Inicialmente, no ano de 2018 e 2019, repetindo entendimento de 2016, a Receita Federal afirmou que se tratava de outros bens, tais como ativos financeiros (Pergunta 447).

Já no ano de 2022, de forma mais genérica, a Receita Federal optou apenas por dizer que tais ativos devem ser declarados e que não se trata de moeda de curso legal (ou seja, reviu seu posicionamento sobre equipará-los a ativos financeiros). Por sua vez, o segundo questionamento complementava o primeiro, prevendo que a tributação se dá por ganho de capital, quando esse for superior a R$ 35 mil no mês.

Ainda em relação a este órgão, cita-se a Instrução Normativa nº 1888/2019, que versa sobre a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal.

Por último, menciona-se o Decreto nº 11563/2023, que delega ao Bacen a competência para (1) regular a prestação de serviços de ativos virtuais, observadas as diretrizes da Lei nº 14.478/2022; e (2) regular, autorizar e supervisionar as prestadoras de serviços de ativos virtuais, exceto se a hipótese for manifestamente de obtenção de receita por contrato de investimento coletivo.

Diante do exposto, entende-se que a legislação brasileira tem aptidão para reduzir a opacidade das relações de chaves públicas. Para isso, entretanto, deve-se incentivar cada vez mais o surgimento de exchanges, inclusive, com a concessão de benefícios fiscais, de modo a estimular que as operações com criptomoedas, em sua maioria, ocorram dentro dessas instituições, aumentando: (1) transparência das relações, evitando, assim, a prática de lavagem de dinheiro; e (2) a arrecadação tributária.

 


Referência bibliográfica

Crypto-Asset Reporting Framework and Amendments to the Common Reporting Standard. Disponível em:<https://www.oecd.org/tax/exchange-of-tax-information/crypto-asset-reporting-framework-and-amendments-to-the-common-reporting-standard.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2024.

BLACK, Julia. Decentring regulation: understanding the role of regulation and self-regulation in a ‘post- regulatory’ world. In: Current Legal Problems, Volume 54, Issue 1, 2001, Pages 103–146.

MOSES, Lyria Bennett. How to think about law, regulation and technology: problems with ‘technology’as a regulatory target. In: Law, Innovation and Technology, v. 5, n. 1, p. 1-20, 2014.

RANCHORDÁS, Sofia. Innovation-Friendly Regulation: The Sunset of Regulation, the Sunrise of Innovation. In: Jurimetrics, Vol. 55, No. 2, 2015.

Autores

  • é advogado e procurador na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Direito, Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Uerj, especialista em Processo Civil e autor do livro Tributação das Criptomoedas: a Influência do Direito Monetário para uma Tributação Além do Imposto de Renda por Ganho de Capital (Editora Casa do Direito).

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