Opinião

A inovação aberta como ferramenta de transformação do Direito

Autor

  • Pedro Arthur Capelari de Lucena

    é professor convidado de programas de pós-graduação e mestrado profissional em disciplinas como Regulação de Mercados de Economia de Atenção Responsabilidade Civil para Influência Digital e Investimentos em Inovação mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa por intermédio de programa da Escola Superior do Ministério Público especialista em Direito Público advogado e consultor para negócios digitais influenciadores e pessoas politicamente expostas embaixador da Open Knowledge Foundation Brasil e diretor do Grupo de Trabalho em Inovação Aberta da Comissão de Educação da Ordem dos Advogados do Brasil Subseção do Rio Grande do Sul.

21 de janeiro de 2024, 17h13

“A seta do tempo é para frente, ela não anda para trás. Na equação presente, passado e futuro, é o futuro que determina o avanço, do conhecimento, da abertura, da dúvida permanente da condição humana…” [1].

Levo essas palavras de Gilberto Gil, ditas em uma entrevista de 2019 e postadas no Twitter do cantor, como mantra. Que me traz otimismo em um mundo que muitas vezes só vislumbra futuros distópicos, com certa consciência, visto todas as complexidades que novamente presenciamos, de guerras de impactos globais à crises ambientais e outras humanas.

Refletir e se movimentar na mudança do futuro — e este altera-se no presente — é desafio geracional, de construção e reconstrução de ambientes mais sadios. A frase de Gil poderia tranquilamente ter sido dita por cientistas como Ada Lovelace (a primeira programadora da história), Neil deGrasse (renomado divulgador científico), Calestous Juma (um dos grandes cientistas contemporâneos dos estudos sobre políticas de tecnologia e inovação), Clayton Christensen (o autor do conceito de inovação disruptiva) e Henry Chesbrough, com quem logo iremos dialogar.

E esse movimento de transformações não tem de ser diferente no Direito. Nossa ciência secular sofre de identidade e encontra-se perdida frente ao ambiente desafiador, que é de se projetar para o futuro. Fomos — pelo menos contemporaneamente — ensinados que o Direito exerce um sistema de normas que regem — naquilo que em sua teoria pura Hans Kelsen define como conjunto de regras — estruturas, e estas têm o dever de regular comportamento humano.

Com todo o respeito a Kelsen e suas importantes contribuições, como definir essas regras, em realidades que se alteram em velocidades, até então recentes, nunca imaginadas? Como aplicar sua teoria pura a este mundo, e ao futuro de cada vez mais difícil dimensionamento.

Se fôssemos questionar há dois, três anos, a esmagadora parte dos cientistas que estudam riscos e projetam futuros não teriam ideia da revolução que estaríamos vivendo em relação, por exemplo, à inteligência artificial. E nem todas as alterações de interfaces que essa tecnologia geraria, seja em mercados contemporâneos, tais como das plataformas digitais, seja nos tradicionais, como o  mercado financeiro. Poucos, ou talvez nenhum, projetariam avanços, de tão simples e rápidos usos, como o que percebemos na inteligência artificial generativa, do Bard, da Google, ou do Chatgpt, da OpenAI.

Por isso, parece-me que existem acertos e merece uma releitura sobre a parte da celebrada, mas também “criticada”, filosofia jurídica de Roscoe Pound. Pelo menos quanto a essas acepções que dizem que o Direito age nas relações sociais, e é instrumento da engenharia social, atuando no equilíbrio dos interesses sociais, e promovendo — ou que tem como função — promoção de bem-estar social.

Sua visão, por mais que seja focada nas tradições de direito comum e tenha fortes características idealistas, em especial até a mudança ideológica em que passou a criticar o realismo legal, e que foi objeto de críticas por gabaritados em amplo espectro, como John Rawls, H.L.A Hart e Richard Posner [2], serve-nos para construir aspectos filosóficos sobre as questões que se ora estão no presente, se projetam aos resultados futuros. Pois há, nela, o desafio à ideia de que leis, normas e regras são sistemas fechados e lógicos [3].

Vamos usar como exemplo as tecnologias oriundas da inteligência artificial. Não há como regular, com perda de potencial mercado — visto que a regulação não tem como ser global — e fortíssimos riscos de frear a inovação, se observarmos apenas os modelos e as tradições das normas, já estruturadas e estruturantes do nosso ordenamento jurídico. Contudo, não há como não a regular, visto que isto poderá gerar ainda mais riscos, desde violações de privacidade, de relações de violações de segurança e vulnerabilidade, mas também nas — e em especial — questões atreladas aos vieses, e aos riscos das decisões automatizadas preconceituosas ou injustas. Qual é a solução para essa encruzilhada?

Aquele que a tiver, e a acertar, será dos juristas mais importantes deste século. Não há como dar certeza, como em quase em nada neste século — salvo nas relações lógicas que as aplicações de inteligência artificial realizam -, mas cabem projeções e caminhos. Silvio Meira, renomado cientista da computação, e um dos fundadores do Parque Porto Digital, um dos maiores parques tecnológicos do mundo, e, enfatiza-se um não jurista, sinaliza que esta regulação tem de ser inovadora, ponderada na ética e adaptabilidade às mudanças sociais e econômicas, ou seja, projetada ao futuro.

Muito mais do que alinhada a princípios e valores constitucionais, o que faria com que soluções do neoconstitucionalismo servissem a resolução do problema, o enfoque na eficácia e resultado, e a sua projeção de futuro, parece-nos um caminho interessante.

Colho dos ensinamentos de Sílvio Meira, e os alinho com os de Gilberto Gil e de Roscoe Pound em sua jurisprudência sociológica. O Direito, não só no seu caráter instrumentatório de suporte à regulação, mas em toda a sua atuação múltipla, precisa se projetar para o futuro, com foco em eficácia, mas conectado à visão de “seta a promoção do bem-estar”. Com transparência e compreensão de que tudo é influenciado e influência.

Podemos construir esses avanços no modo de ver o Direito, a partir das experiências das outras áreas, alcançando ensinamentos que façam com que consigamos construir essas novas relações. De forma efetivamente multidisciplinar, o que historicamente não é simples dentro do nosso campo científico.

O Direito, e esta era uma das críticas feitas inicialmente a Pound, absorve muito das Ciências Humanas, como da Sociologia, e da Filosofia, mas pouco faz com outras ciências aplicadas. Para promovermos o bem-estar científico, precisaremos destas em conjunto e diálogo com as primeiras.  Há forte avanço na correlação entre Economia e Direito por quem trabalha com a análise econômica do Direito, também com a Estatística, com os avanços de estudos de jurimetria — em especial em lawtechs e legaltechs que aplicam tecnologias de inteligência artificial —, mas ainda há muito para correlacionar, como por exemplo no distanciamento dos conhecimentos da administração e do empreendedorismo. O Direito, pelo menos no cenário brasileiro, ainda busca essas fontes com um olhar normativo e reativo, de controle, e com baixo uso de ferramentas.

Observe por exemplo a realidade do Porto Digital, cofundado por Silvio Meira. O premiado parque é um projeto que, inaugurado no início dos anos 2000, conecta empresas de tecnologia, informação e comunicação, com inovação e economia criativa. E contínuas trocas entre universidades, empresas e governo. Ou seja, há nele, e em uma série de outros parques tecnológicos e institutos, como o TecnoPUC, Instituto Caldeira, Associação Cubo, Instituto de Tecnologia e Software, dentre outros, um conjunto de técnicas aplicadas de conceitos da administração, a da inovação aberta e colaborativa, na construção de ecossistema.

Ecossistema este, que está intimamente relacionado à inovação aberta. Conceitualmente, inovação aberta é termo criado pelo professor da Universidade da Califórnia Henry Chesbrough, que ludicamente coloquei ao lado de Gilberto Gil no início do texto e que, no ano passado, viu sua ideia aplicada mais conhecida completar 20 anos, após ser introduzido no livro Open Innovation: The new imperative for creating and profiting from Technology [4]. Resumidamente, a concepção traz uma nova abordagem para a inovação, em que agentes utilizam as ideias internas e externas para elaborarem caminhos ao mercado, como partes dos processos e das estratégias de inovação.

Existem neles pontos bem interessantes, que podem nos auxiliar a remodelar o Direito e, em especial, a prática jurídica. A inovação aberta pensa além das fronteiras e de modo multidisciplinar. Se inicialmente refletido para o caráter empresarial, podemos inovar e estruturar este modelo colaborativo a campos diversos do saber. Não é sobressair prática à ciência, mas colaborar, de forma complementar. Ou seja, há caráter cocriativo, em que múltiplos agentes praticam formas, em modelos de parcerias.

E isso, consequentemente, acelera processos. Se voltarmos ao nosso exemplo, da regulação da aplicação de inteligência artificial, podemos encontrar caminhos com potencialidades de mais acertos, atuando deste modo, cocriativo e colaborativo. Ao invés de resguardamos em isolamentos internos de saberes científicos únicos e exclusivamente jurídicos, mesmo que vinculados a análises principiológicas — o que tão pouco existe, sendo apenas uma ficção, a partir da escola de pensamento do realismo jurídico — nunca poderemos chegar às soluções na geração de avanços inovadores, que, segundo a função do direito de Pound, geram bem-estar.

Há a partir da ótica da inovação aberta, um fluxo bidirecional do conhecimento, na qual ideias e tecnologias relacionam-se a aquilo construído internamente, mas também em toda a relação externa, sejam empresas, institutos de pesquisa, universidades, advogados, estudantes, ou mesmo no próprio ambiente de ensino.

Foram estas motivações que fizeram a Ordem dos Advogados do Brasil, da Subseção do Rio Grande do Sul, a criar um Grupo de Trabalho e de Pesquisa voltado à Inovação Aberta no Direito. Muito mais que dialogar sobre operações legais (ou seu nome usual em inglês de legal operations) e sobre acesso a dados de sistemas de justiça (ou também em seu nome em inglês de open justice) trazer o debate da inovação aberta, e de outros oriundos da administração, conecta agentes, de modo colaborativo, de forma adaptativa, e colaborativa [5].

O conceito, que é uma realidade de aplicação no ambiente empresarial, desafia modelos tradicionais das definições, como de propriedade intelectual, ponto este que é um dos desafios também da regulação da inteligência artificial. Trazer a pesquisa e o estudar dentro da ótica do Direito faz com que possamos pensar em modelos inovadores, que tragam justas recompensas àqueles que inovam, mas que também consigam proteger direitos e garantir bem-estar. Em um desenvolvimento tecnológico responsável, de criação de ecossistemas de inovação sustentável.

Motivação que vem das frases iniciais deste texto, de Gilberto Gil, segundo as quais devemos estar e sentir o presente, absorvidos nos aprendizados do passado, mas sem projetar os riscos, desafios e os ganhos do futuro. Ou seja, cientificamente sendo realistas, distantes das utopias e das distopias.


[1] A entrevista em que vi Gilberto Gil pronunciar essa frase ocorreu no Projeto Cria, em 27/8/2019, na qual o jornalista Leonardo Lichote faz uma conversa franca com Gil, no palco, em modo de espetáculo, na Casa Camolese, no Rio de Janeiro. Há uma postagem em seu X (antigo twitter) que trás texto aproximado twitter.com/gilbertogil/status/1068531395000193025

[2]  Richard Posner foi um dos críticos teóricos de Pound, mas que colheu muito dos seus ensinamentos na construção científica do seu saber. Posner trazia uma abordagem mais pragmática e econômica do Direito. De igual forma H.L.A Hart, ao tempo que trazia uma compreensão bem realista de como o Direito atua na prática, era um crítico dos posicionamentos de Posner.

[3] Há um momento de mudança significativa da forma em que Roscoe Pound vê o direito, que é quando passa a ser crítico do movimento New Deal, e do próprio realismo legal americano, que auxiliou a fundação. Isso faz com que passe a defender políticas conservadoras como as do presidente Herbert Hoover, e a prestar apoio inicial às posições do então chanceler Adolf Hitler. A mancha na sua trajetória o faz ser um jurista pouco estudado e aceito, em especial no contexto brasileiro. Nós delimitamos seu conhecimento até este momento histórico.

[4] Em “Novas fronteiras em inovação aberta” Henry Chesbrough, em conjunto de Wim Vanhaverbeke e Joe West, retomam os conceitos trazidos no livro de 2003, em especial relacionado a gestão e a organização da inovação aberta. Por ser um livro de 2017, há acertos e erros em prognósticos, como a distância da visão que tinham da amplificação de inteligência artificial, e o que resultou. Contudo, são exceções aqueles que a acertaram.

[5]  Até a presente data existem poucos estudos no Brasil que correlacionam a inovação aberta e o Direito. Interessante texto é de Flavia Bianchini Mesquita Gabrichi, e de Frederico de Andrade Gabrich, intitulado Inovação Aberta no Direito, disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=8d5e957f29789348

Autores

  • é professor convidado de programas de pós-graduação e mestrado profissional em disciplinas como Regulação de Mercados de Economia de Atenção, Responsabilidade Civil para Influência Digital e Investimentos em Inovação, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa por intermédio de programa da Escola Superior do Ministério Público, especialista em Direito Público, advogado e consultor para negócios digitais, influenciadores e pessoas politicamente expostas, embaixador da Open Knowledge Foundation Brasil e diretor do Grupo de Trabalho em Inovação Aberta da Comissão de Educação da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção do Rio Grande do Sul.

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