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Aceitar os termos e condições? Processo Penal e dataveillance

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Víctor Minervino Quintiere

    é doutor em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) Research Fellow na Universitá degli studi Roma TRE na Itália mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) sócio no escritório Bruno Espiñeira Lemos & Quintiere Advogados professor do programa de pós-graduação em Direito Penal do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) professor convidado do programa de pós-graduação da Escola Baiana de Direito em Direito Penal e professor da Faculdade de Ciências Jurídicas (Fajs) do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

9 de janeiro de 2024, 16h11

Este artigo apresenta a noção e o impacto da “dataveillance” no contexto do Processo Penal, a partir da premissa de que as coordenadas de realidade analógica foram substancialmente alteradas pelos frenéticos avanços tecnológicos, afetando a configuração das relações sociais e, por consequência, da obsolescência dos padrões normativos de regulação, conformidade e resolução de controvérsias. Desde comunicação em tempo real, com o abandono do telefone em favor dos aplicativos de mensageria (WhatsApp; Telegram etc.), passando pelas plataformas (Uber; iFood etc.), inteligência artificial generativa (GPT; Bard; Gemini etc.), afetando decisivamente as práticas de controle social e de investigação criminal.

Luciano Floridi, no famoso “Manifesto Onlife” (entrevista aqui), apresentou a noção de Mundo Híbrido, consistente na ausência de fronteiras entre o “offline” e o “online”, sobrepondo coordenadas tangíveis e intangíveis, ou seja, sem delimitação entre o mundo físico e o mundo digital. A consequência é a de que, embora a “titularidade” dos Direitos Fundamentais (pensados para o mundo analógico) tenha sido em grande parte preservada, os atributos associados ao “âmbito de incidência” colapsaram porque os padrões estabelecidos para o mundo analógico são insuficientes à regulação eficaz do mundo onlife (físico e digital). Dentre os diversos pontos controversos, o breve texto situa o contexto do “dataveillance”.

Spacca
Alexandre Morais da Rosa com tarja

“Dataveillance” significa a vigilância de dados pessoais e sensíveis por meio da coleta, classificação, indexação, armazenamento e análise dos registros para fins de monitoramento de pessoas, grupos ou em massa. Diferentemente da vigilância analógica, realizada no mundo físico, o potencial invasivo promove vantagem competitiva injusta e ilegal, pondo em risco a proteção aos Direitos Fundamentais (por exemplo, perfilamentos os mais variados).

A investigação analógica adquiria “dados” (registros do mundo) para, em conjunto, transformá-los em “informação” (dados com significado atribuído em determinado contexto, a partir de suporte teórico específico), construindo o “conhecimento” sobre o caso penal. O regime de garantias penais e processuais tinha como referência os significados o mundo físico.

No entanto, no ambiente “onlife”, o foco primário direciona-se aos “metadados”, adquiridos, classificados e analisados de modo desregulado em face das limitações, defasagens e ambiguidades do regime jurídico penal vigente. Ainda que a Emenda Constitucional 115/2022 tenha incluído a “proteção de dados” no rol dos Direitos e Garantias Fundamentais, contemos com legislação específica, dentre elas o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados. A ausência da Lei de Proteção de Dados Penal favorece o comportamento oportunista dos agentes estatais que se valem da parcial “anomia” como “vantagem estratégica”, campo aberto para violação de Direitos Fundamentais e/ou práticas de lawfare.

Os metadados são os “dados sobre os dados” (DNA dos dados). Dentre os tipos de metadados, destacamos: 1) Nome dos arquivos; 2) Extensões/formato (.docx; .jpg; .pdf etc.); 3) artefato (smartphone; computador etc.); 4) Dado cadastral do usuário; 5) Data e hora da criação; 6) Data e hora da atualização; 7) Coordenadas de geolocalização; 8) Datas de acesso; 9) Histórico de navegação.

Ainda que não se tenha acesso ao “conteúdo”, os atributos fornecidos autorizam estabelecer relacionamentos entre os usuários, especialmente quando utilizadas as “medidas de centralidade” da Teoria dos Grafos (grau, intermediação e proximidade). Considere a quantidade de mensagens que você troca por WhatsApp. Com seus metadados, é possível descobrir com “quem”, “quando” e de “onde” você troca mensagens, construindo uma rede de vínculos. Embora não indiquem o “conteúdo”, delineiam os relacionamentos associados ao contexto.

Por exemplo, quando tiramos uma foto com o smartphone, o arquivo produzido (imagem) atenderá aos padrões Exif (exchangeable image file format), gravando as configurações e especificações do momento da captura, contendo: 1) Marca e modelo do artefato (smartphone; câmera); 2) Dimensões do arquivo; 3) Formato (.jpeg; .tiff etc.); 4) Usuário; e, 5) Coordenadas de GPS (latitude e longitude). Alguém de posse dos metadados poderá adquirir muito mais informações do que a mera “imagem”. Se você acessar os arquivos de fotos de seu smartphone, poderá “puxar” a foto para cima, descobrindo os “metadados”. Em geral, a função é desabilitada. Também se pode usar aplicativos para exclusão de Exif [na loja do seu smartphone]. Entretanto, se você postar uma foto com fundo público, por exemplo, basta colocar o arquivo num buscador de imagem reversa que se descobre “onde” foi capturada.

No livro O Direito Penal nas Sociedades Digitais, o subscritor Victor Quintiere, aborda a temática de modo ampliado, a partir dos seguintes pontos; 1) Contornos da sociedade pós-industrial; 2) Fenômeno da pós-modernidade; 3) Expansão do direito penal (criminalização do cotidiano e novos bens jurídicos difusos); 4) Standards probatórios; e 5) Impactos da hipervelocidade da pós-modernidade no desenvolvimento do próprio “jogo” processual penal.

Em síntese, desde as sociedades pré-industriais, passando por aquelas ditas industriais, e ao que se convencionou chamar de sociedades pós-industriais, a luta pelo controle do poder punitivo materializado por meio da decisão penal exige a atribuição do valor de verdade à premissa fática do raciocínio jurídico (silogismo judicial), por meio da valoração da prova válida produzida. O desafio se potencializa em face do fenômeno da pós-modernidade, levando-se em consideração tanto suas características, como o papel do próprio Direito (estabilidade social), dentre os quais, a ausência de normas e valores muito rígidos, o individualismo, a produção em série de cultura voltada para o consumo rápido, o hiper-realismo e a disponibilização de grande quantidade de informações, associados aos avanços tecnológicos potencializados pela redução dos custos e disponibilidade de dados.

No âmbito do Direito Penal, a partir do Expansionismo Penal de Silva Sánchez (2001), denominado de 5ª Velocidade Penal (Quintiere, 2022), implementam-se novas características e padrões: 1) Utilização da tecnologia no combate preventivo e repressivo aos crimes; 2) Aumento da produção de indícios e provas de autoria e materialidade por parte do Estado, afetando a configuração da atividade investigativa e nos gastos públicos; 3) Atualização digital do conceito do nemo tenetur se detegere que, fundado na realidade física, mostra-se insuficiente à contenção das violações à privacidade, intimidade e autonomia informacional; 4) Elaboração e manutenção de definição operacional de Privacidade Digital, especialmente no Direito Penal, devendo qualquer: 4.1) Incursão do Estado ser autorizada previamente por decisão judicial fundamentada com base em requisitos válidos; 4.2) Vedada a mera analogia com os padrões analógicos em face da potencial invasão da privacidade na era digital; e 5) Reelaboração dos padrões relacionados ao tempo de defesa, quantidade e qualidade das garantias penais e processuais atribuídas ao arguido que, diante da disparidade de armas digitais [ferramentas] atualmente utilizadas pelo Estado-Investigador, dificulta e/ou impede o exercício da Ampla Defesa e do Contraditório, com potencial violação ao devido processo legal.

Esses são os pontos iniciais destacados. Muitas outras perspectivas constam de publicações especializadas. O mais complicado é que diante da ausência de “Letramento Digital”, muitos estejam expostos desnecessariamente aos perigos do mundo digital. A velocidade das inovações exige a aquisição de novos conhecimentos, habilidades, experiências e, principalmente atitudes. Quem sabe começando pela revisão das suas práticas de privacidade (aqui você encontra boas dicas).

Enquanto isso, nas salas da Justiça, impera a ambiguidade e as controvérsias. A mobilização dos profissionais do Direito é urgente para o fim de atualizar as salvaguardas constitucionais e convencionais ao mundo onlife, ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha indicado as diretrizes na ADC 51 (aqui).

 


Referências:

BAUMAN, Zygmunt. A Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2001.

BELL, D. O Advento da Sociedade Pós-Industrial. São Paulo: Cultrix. 1974.

HEAPHY, Brian (12 de setembro de 2007). Late Modernity and Social Change: Reconstructing Social and Personal Life (em inglês). [S.l.]: Routledge

FLORIDI, Luciano. Manifesto Onlife.

JAMESON, Fredric, The Cultural Logic of Late Capitalism, Postmodernism (London 1991), p. 27.

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Criminal. Florianópolis: Emais, 2024.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. ROSA, Alexandre Morais da. Não Vale Tudo no Processo Penal: Escritos Marginais de Dois Outsiders. Editora Emais. 2020. ISBN-10: 6586439140.

QUINTIERE, Víctor Minervino. O Direito Penal nas sociedades digitais: da expansão às perspectivas à luz do Criminal Dataveillance, da criminologia e do direito à não auto-incriminação.. 1. ed. Belo Horizonte: Editora d´placido, 2022. v. 1. 352p .

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal em las sociedades postindustriales, Civitas, 2ª ed., 2001.

Autores

  • é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • é advogado, doutor em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), professor no programa de pós-graduação do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec), professor de Direito Penal e Processo Penal no Centro Universitário de Brasília (Ceub) e membro consultor da Comissão de Estudos de Direito Penal do Conselho Federal da Ordem dos Advogados (CFOAB).

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