Escritos de Mulher

Prática do stalking também pode ser processual

Autor

28 de fevereiro de 2024, 8h00

Não é novidade anunciar que mulheres sofrem perseguições das formas mais variadas possíveis, em contexto de violência doméstica. A perseguição obsessiva, conhecida também como stalking, é crime previsto no Código Penal, no artigo 147-A, desde abril de 2021.

Narra o texto legal que é crime “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade e privacidade”.

Ainda que a norma legal merecesse texto mais apurado para melhor descrever a conduta do stalking, é importante trazer luz ao trecho “reiteradamente e por qualquer meio”.

Stalking após o término da relação
Nesse ponto, farei parênteses para contextualizar que a prática de perseguir em razão do gênero acontece, especialmente, quando mulheres decidem encerrar relacionamentos. Segundo dados do Departamento de Justiça dos Estados Unidos [1], 87% das vítimas de stalking são mulheres, em 67% dos casos o perseguidor é o ex-companheiro.

É justamente no momento do encerramento da relação que o comportamento de controle obsessivo fica evidente para as vítimas, até então imersas no ciclo da violência doméstica.

Perseguição processual
Contudo, a atenção de vítimas e integrantes do sistema de justiça deve recair não apenas aos comportamentos mais óbvios de perseguição – aparecer no trabalho da vítima, enviar flores e presentes de forma incessante e constrangedora, segui-la na rua, ligar descontroladamente –, mas também aos mais sofisticados.

Falo sobre a perseguição processual, stalking processual ou assédio processual.

Perseguir a vítima de violência doméstica ou, ainda, a mulher que pleiteia direitos nas varas de família, por meio da distribuição de uma série de processos com fim de promover revanchismo que enseja abalo emocional na mulher, é também violência doméstica.

Apesar de não estarmos inventando a roda, já que essa prática é muito mais antiga do que alguns tendem a pensar, dar nome e contexto é ferramenta importante para prevenção e combate da violência processual.

Pela perspectiva da psicanálise, o stalker é o sujeito que não detém em seu repertório o adequado manuseio das circunstâncias do luto. Aquele que não sabe encerrar relações e lidar com a angústia, aquele que não admite ficar no vazio, sem controle sobre algo e alguém que ama, ou imagina amar.

A partir desse contexto, a prática da perseguição obsessiva pode mesclar formas e condutas, pode se estender, como mencionei ao início do texto, para “qualquer meio”, segundo o próprio tipo penal.

Isso significa que o stalker, na ânsia e compulsão de controlar o objeto que imagina deter poder, pode perseguir pessoalmente, virtualmente, por meio de pessoas interpostas e, até mesmo, instrumentalizando a justiça para paralisar a vítima, gerando medo e abalo emocional.

Via de regra, é comum vermos o grande número de distribuição de processos inúteis ou com pedidos descolados da realidade fática servirem para gerar asfixia financeira na mulher que decide bater às portas da justiça pleiteando direitos, muitas já endividadas, contando com a ajuda de amigos e família para custear honorários advocatícios.

Spacca

Nesse ponto, vale mencionar que o stalker processual tem perfil. Geralmente, é o homem que exerce o direito fundamental de acesso à justiça e pode contratar uma banca para defendê-lo. Afinal, o homem preto, pobre e periférico não acessa a justiça da mesma maneira e provavelmente será representado pela Defensoria Pública.

Precedente e um caso público de stalking processual
Quanto a decisões judiciais, há precedentes importantes que reconhecem o stalking processual, inclusive, como litigância de má-fé, como é o caso da Apelação Cível nº 00034194720198070016, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, cujo acórdão reconheceu a importância da preservação do direito fundamental à felicidade da vítima, ao narrar que “a perseguição reiterada (stalking) à ex-esposa, invadindo sua esfera de liberdade e privacidade por meio de ações e incidentes judiciais repetitivos, infundados e temerários, aptos a lhe causar inquietação e dano emocional por prejudicar sua liberdade de determinação e degradar sua integridade psicológica, perturbando sua paz existencial e impedindo, assim, o exercício da felicidade, que são direitos fundamentais intrínsecos à pessoa humana, tipifica, em tese, assédio processual, conduta subsumida nos artigos 147-A e 147-B do Código Penal, sem prejuízo de outra classificação a ser dada pela Autoridade competente”.

Em recente caso midiático de uma apresentadora da TV Record, vimos seu ex-companheiro declarar publicamente uma série de situações que se amoldam, em tese, ao stalking processual. Vale mencionar, para ilustrar, que o sujeito, apenas nos últimos 30 dias, declarou ter pleiteado na justiça pensão alimentícia de R$ 42 mil (mesmo estando o filho do casal sob a guarda da mãe); declarou que pediu a prisão da apresentadora por alienação parental; atacou a sexualidade dela com palavras de baixo calão irreproduzíveis nesse espaço; acusou a apresentadora de fraude e, segundo nota publicada pela defesa da apresentadora, “busca tumultuar o processo para tirar o foco”.

A mencionada apresentadora declarou recentemente que “não tem 24 horas de paz”, que “os pedidos na justiça são um pior que o outro”, além de mencionar o abalo emocional como resultado das investidas, “em razão do estresse emocional estou com a voz abalada e alergias na pele”, disse a vítima que denunciou lesão corporal dentre outros crimes.

A importância de mencionar um caso público para ilustrar possíveis teses aproxima as vítimas desse debate, já que a maioria desconhece a complexidade de violências mais sofisticadas, como o stalking processual, ou híbrido, que mescla perseguições pessoais, virtuais e processuais.

Como bem trouxe o acertadíssimo acórdão do TJ-DF mencionado neste texto, às mulheres é garantido o exercício da felicidade. Por isso, compreender, como bem menciona o referido acórdão, que “o stalking pós-ruptura relacional trata-se de uma extensão ou variante da violência conjugal como forma de manter a ligação entre os/as stalkers e ou seus/suas (ex-) parceiros/as, ou como tentativa de manter o poder e o controle sobre estes/as” é um grande passo para o enfrentamento de violências cada vez mais sofisticadas.

 


 

[1] https://infotracer.com/criminal-records/stalking (acessado em 26 de fevereiro de 2024).

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!