Direito Civil Atual

Clóvis Bevilaqua: o Codificador e o Código Civil (parte 2)

Autor

  • Augusto Cézar Lukascheck Prado

    é professor de Direito Civil. Assessor de ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

26 de fevereiro de 2024, 14h25

Continuação da parte 1

O período no qual foi gestado o Código Civil de 1916, se por um lado foi marcado por uma grande debilidade econômica, por outro, representou época de grande desenvolvimento intelectual.

É a época da plenitude da obra de Machado de Assis, com a publicação, em 1891 de “Quincas Borba, o inventor do Humanitismo”, e, em 1899, de “Dom Casmurro”. Euclides da Cunha, em 1902, publica “Os Sertões”. As letras jurídicas não ficaram para trás.

Iniciados os trabalhos de elaboração do projeto, duas vozes se fizeram ouvir. Por um lado, Herculano Marcos Inglez de Souza insurgia-se contra a própria ideia de codificação [1].

Por outro, a voz, de ainda maior autoridade, de Rui Barbosa criticava a celeridade com que se pretendia a elaboração de um diploma legislativo de tão grande importância, criticando a ideia de “um Código o quanto antes”, de “um Código já e já” [2].

De acordo com o autor, a obra seria “tosca, indigesta, aleijada” [3] ao mesmo tempo em que o jurista escolhido para tal empreitada era visto como um noviço e “não amadurecido para empresa de tal porte” [4].

Em artigo publicado, Rui Barbosa criticava as características pessoais do Codificador, cuja escolha era atribuída a um rasgo do coração e não da cabeça:

“Com tôdas as suas prendas de jurisconsulto, lente e expositor, não reúne todos os atributos, entretanto, para essa missão entre tôdas melindrosa. Falta-lhe a consagração dos anos. Falta-lhe a evidência da autoridade. Falta-lhe um requisito primário, essencial, soberano para tais obras: a ciência da sua língua, a vernaculidade, a casta correção do escrever” [5].

O tormentoso processo legislativo
A rivalidade entre Clóvis Bevilaqua e Rui Barbosa é, de fato, famosa na literatura jurídica nacional. Juristas de escol, eram personagens completamente diferentes: “Rui lembra o oceano lançando-se contra os rochedos. Clóvis lembra o rio que, tranquilo, desliza no seu leito procurando a foz” [6].

ConJur

A despeito das críticas iniciais, no final de outubro, o projeto foi enviado ao governo federal, que, buscando a opinião de juristas consagrados, obteve resposta somente de Manoel Antonio Duarte Azevedo e Olegário Herculano de Aquino e Castro [7].

Diante dos pareceres, o governo decidiu nomear uma Comissão Revisora, cuja presidência ficou a cargo de Epitácio Pessoa e da qual recusaram participar Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira e Rui Barbosa.

Iniciados os trabalhos em 29 de março de 1900, a Comissão contou com a importante participação de Clóvis Bevilaqua a partir de 6 de agosto, encerrando os trabalhos em 2 de novembro de 1900.

Foram consideráveis as modificações introduzidas no Projeto, afetando-lhe o sistema, remodelando instituições e restaurando outras que haviam sido extintas, de modo que o “espírito do Projecto perdeu alguma coisa da sua feição originaria” [8].

Ao final dos trabalhos, o número inicial de artigos, que era de 2.015, aumentou para 2.244, muito embora o Projeto Revisto tenha mantido as linhas mestras da estrutura [9].

A premissa estabelecida no artigo de 1896 — equilíbrio entre tradição nacional e doutrina científica –, portanto, fez-se sentir.

O Projeto Revisto foi encaminhado ao governo federal em 10 de novembro de 1900 e ao Congresso Nacional em 17 de novembro do mesmo ano.

Na Câmara dos Deputados, a pressa exigida pelo governo central era de tal monta que foi necessário modificar o próprio Regimento Interno a fim de atender a tramitação especial. Não hesitou o governo, inclusive, em convocar o Congresso nas férias parlamentares para dar andamento aos trabalhos [10].

Na Comissão formada, atuaram juristas como Coelho Rodrigues, representando a fase do processo legislativo mais rica do ponto de vista do entrechoque de ideias jurídicas, morais e políticas, contrastando a inovação e a tradição. “Discussão memorável” [11], é como Clóvis Bevilaqua se refere aos debates ocorridos no seio da comissão.

Merece destaque o embate entre o Codificador e Andrade Figueira, fervoroso defensor do Direito em vigor e cujo espírito conservador conflitava com o espírito reformador de Clóvis [12].

A oposição irredutível de Andrade Figueira levou o presidente a sugerir que apresentasse emendas que considerasse pertinentes, ao que o jurista então respondeu “(…) ser isso mais difícil porquanto teria de emendar quase todo o Código[13].

O próprio Clóvis Bevilaqua, ao referir-se aos embates travados com o mencionado jurista do Império, reconheceu que seu prestígio e conhecimento do direito positivo não podiam ser simplesmente ignorados, representando verdadeiro obstáculo a ser superado [14].

Ao final dos trabalhos da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, do relatório elaborado por Silvio Romero é possível extrair a seguinte passagem que demonstra a importância do referido debate:

“Dir-se-ia que duas intuições antagônicas do direito, a velha e a nova escola, se achavam em presença e feriam uma luta de vida ou de morte. O que de talento e saber foi despendido de parte a parte é cousa que indelével ficou em a consciência dos que assistiram essas memoráveis lides da inteligência” [15].

O Projeto emanado da Comissão, a terceira versão, era mais próxima da versão original, o chamado Projeto Primitivo, porquanto Clóvis Bevilaqua acompanhou de perto os trabalhos de sua elaboração, defendendo com ardor suas ideias [16].

Clóvis Bevilaqua

O Projeto foi, então, submetido à revisão de Carneiro Ribeiro, professor de português e ex-professor de Castro Alves e de Rui Barbosa. O revisor, a despeito de considerar que o trabalho “seria superior às suas forças”, aceitou a tarefa [17].

Para receber o Projeto, e votá-lo com urgência, o Senado Federal constituiu Comissão Especial sob a presidência de Rui Barbosa antes mesmo do encerramento dos trabalhos na Câmara dos Deputados, o que só se daria na sessão extraordinária de 31 de março. Remetido o projeto ao Senado, Rui já estava com seu parecer pronto em 3 de abril.

A importância de Rui Barbosa
A importância de Rui Barbosa na presidência da Comissão do Senado não deve ser ignorada. Seu papel na elaboração do Código Civil é de grande relevo e, em certa medida, seus objetivos foram alcançados.

Clóvis Bevilaqua não ignorava a importância de Rui e era consciente das batalhas que seu Projeto teria que superar antes de ser encaminhado à sanção presidencial.

Após discorrer sobre toda as autoridades às quais teve de responder no âmbito da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, concluía o Codificador: “por fim a sorte adversa me fez cair nas mãos de adversário mais temível do que qualquer outro — o emérito presidente da Comissão do Senado” [18].

Muito já se disse sobre o conteúdo deste invulgar Parecer do Senador Rui Barbosa. O embate gramatical que se travou entre este grande jurisconsulto brasileiro e seu ex-professor Carneiro Ribeiro ocupa lugar de destaque no anedotário das letras jurídicas brasileiras.

O que nem sempre é colocado em relevo são os motivos que levaram Rui Barbosa a optar por uma crítica gramatical ao invés de jurídica.

Nesse ponto, San Tiago Dantas sustenta que Rui, ao perceber que o Projeto possuía grande apoio e tramitava com imensa celeridade, em rasgo de verdadeira genialidade, percebeu que apenas críticas jurídicas — de difícil compreensão pela população — não seriam capazes de frear a marcha do projeto.

Um parecer jurídico, de fato, não seria mais do que um “voto vencido”. Optou, assim, por elaborar profundo parecer literário, que seria capaz de corroer, por dentro, o prestígio do Projeto e alarmar a opinião pública [19].

O seu objetivo foi plenamente alcançado. O parecer e a polêmica que se instaurou contribuiu para que a marcha do processo legislativo se estendesse por mais de seis anos.

Em menos de 4 dias, Carneiro Ribeiro, que já havia revisado o Projeto, elaborou resposta ao parecer. Desta resposta, surgiu a já famosa e monumental réplica.

A título de ilustração, vale menção à breve passagem do referido debate, que fez com que o Brasil ficasse sem um Código Civil até o ano de 1916.

Logo no início de seu Parecer, consignava Rui Barbosa:

“me impressionou a negligencia, a que a preoccupação dos grandes problemas resolvidos naquelle trabalho abandonara sua fórma. A cada passo entre o meu espírito e o do legislador se interpunha ella como um véu, um diversorio, ou um tropeço (…) Aos meus primeiros reparos, suppuz não passassem de leves e raras jaças na superficie de immensa gemma despolida. Mas tanto se repetiam, que principiei a assignalal-as para orientação minha, e, afinal, não sei se houve pagina da brochura, onde não tivesse que notar” [20].

Acerca da referida passagem fez Carneiro Ribeiro os seguintes e breves comentários, que demonstram o nível de preciosismo a que chegou a contenda: “’se interpunha ella’, estranha esta construção de Ruy, malsinando-a de cacophonica”.

A réplica de Rui veio com especial tônica:

“Onde se me occultará, nesses tres vocábulos, a desharmonia, que indispõe o censor? Orelhas finas, também eu as possuo. Deu-me a natureza de sobra neste sentido o que de míngua me aquinhoou na vista. Pois ha semanas que o envido, em busca dessa incógnita musical, e cada vez estou peior. Naquele ‘se interpunha ella’, onde a aresta odiosa ao meu illustre mestre? Debalde separo, junto e torno a decompor a sentença. Não me diz nada. Será nas duas syllabas iniciais, sínter? Parece-me de todo innocentes. Será o terpunha ou o unha? Mas ambas pertencem ao verbo interpunha, que não é obra minha. Será o punha ella? Mas, nesse caso, já não poderemos utilizar, sem ofensa da harmonia, com aquelle pronome, o imperfeito de pôr e seu compostos? Punha ella, dispunha ella, repunha ella, compunha ella, expunha ella, oppunha ella, impunha ella, seriam então phrases condemnaveis?” [21].

Estas breves passagens ilustram o espírito do debate travado acerca do qual Clóvis Bevilaqua, mais tarde, elaborou severa crítica:

“Fugi o mais possivel de envolver-me nessa contenda bysantina (…) Desejariam os antagonistas do Projeto vasal-o numa lingua hieratica, impeccavel, que jamais existiu na realidade da vida, que jamais foi falada pelo povo, e que elles suppõem idealmente creada pelos escriptores de sua predilecção” [22].

Somente em 1908 o Senado elaborou nova Comissão para analisar o Projeto e em 1911 ocorreu sua aprovação em segunda discussão.

Das 1.736 emendas apresentadas durante a tramitação do Projeto no Senado, cerca 90% dizia respeito à redação do Código, número do qual se infere a relevância e a influência dos trabalhos elaborados por Rui Barbosa.

A redação final foi aprovada em 26 de dezembro de 1915, tendo sido o Projeto sancionado em 1 de janeiro de 1916, entrando em vigor em 1 de janeiro de 1917.

San Tiago Dantas, ao comentar a tramitação do Projeto e a atuação de Rui Barbosa, argutamente ressaltou, a título de síntese, que “o advogado ciceroniano, cujo adento assinalou uma nova etapa da nossa cultura e o professor exímio que mais se aproximou entre nós da perfeição e do equilíbrio estavam fadados, não a rivalizar em torno do Código, mas a elaborá-lo de mãos juntas” [23].

Rui Barbosa, então Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, na comemoração do centenário de Augusto Teixeira de Freitas, ao convidar ao palco Clóvis Bevilaqua, escolheu com esmero as palavras: “para falar sobre o maior civilista morto, concedo a palavra ao maior civilista vivo”.

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[1] BEVILAQUA, Clovis. Codigo civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. v. I. 5. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1936, p. 22; MEIRA, Silvio. O Código civil do Brasil de 1917: o Projeto Bevilaqua. Giuffrè, 1982, p. 355.

[2] DANTAS, San Tiago. Rui Barbosa e o código civil. Revista forense, v. 46, n. 126, p. 335, nov./dez. 1949.

[3] BEVILAQUA, Clovis. Codigo civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. v. I. 5. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1936, p. 21.

[4] MEIRA, Silvio. O Código civil do Brasil de 1917: o Projeto Bevilaqua. Giuffrè, 1982, p. 355.

[5] DANTAS, San Tiago. Rui Barbosa e o código civil. Revista forense, v. 46, n. 126, p. 337, nov./dez. 1949.

[6] PICANÇO, Aloysio Tavares. O Credo politico de Rui Rarbosa e o credo juridico-politico de Clóvis Bevilaqua. Revista da Academia Brasileira de Ciências Morais e Políticas, v. 1, n. 1, p. 50, 1995.

[7] BEVILAQUA, Clovis. Codigo civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. v. I. 5. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1936, p. 23.

[8] BEVILAQUA, Clovis. Codigo civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. v. I. 5. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1936, p. 26.

[9] MEIRA, Silvio. O Código civil do Brasil de 1917: o Projeto Bevilaqua. Giuffrè, 1982, p. 365.

[10] DANTAS, San Tiago. Rui Barbosa e o código civil. Revista forense, v. 46, n. 126, p. 337, nov./dez. 1949.

[11] BEVILAQUA, Clovis. Codigo civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. v. I. 5. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1936, p. 36.

[12] MEIRA, Silvio. O Código civil do Brasil de 1917: o Projeto Bevilaqua. Giuffrè, 1982, p. 371; DANTAS, San Tiago. Rui Barbosa e o código civil. Revista forense, v. 46, n. 126, p. 337, nov./dez. 1949; BEVILAQUA, Clovis. Codigo civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. v. I. 5. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1936, p. 88.

[13] MEIRA, Silvio. O Código civil do Brasil de 1917: o Projeto Bevilaqua. Giuffrè, 1982, p. 372.

[14] BEVILAQUA, Clovis. Codigo civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. v. I. 5. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1936, p. 38).

[15] MEIRA, Silvio. O Código civil do Brasil de 1917: o Projeto Bevilaqua. Giuffrè, 1982, p. 374.

[16] BEVILAQUA, Clovis. Em defeza do projecto de Codigo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906, p. VIII; MEIRA, Silvio. O Código civil do Brasil de 1917: o Projeto Bevilaqua. Giuffrè, 1982, p. 371.

[17] LIRA, Ricardo Pereira. Rui, o legislador em face do projeto de Código. Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros, v. 34, n. 94, p. 70, out./dez. 2000.

[18] BEVILAQUA, Clovis. Em defeza do projecto de Codigo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906, p. 452.

[19] DANTAS, San Tiago. Rui Barbosa e o código civil. Revista forense, v. 46, n. 126, p. 338, nov./dez. 1949.

[20] NERY, Fernando. Ruy Barbosa e o Código civil ou o Código civil brasileiro: Lei n. 3071, de 1 de janeiro de 1916, com as correcções ordenadas pela Lei n. 3725, de 15 de janeiro de 1919: com apostillas de Ruy Barbosa, Clovis Bevilaqua, Carneiro Ribeiro e outros: crítica e defesa. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1931, p. 3-4.

[21] NERY, Fernando. Ruy Barbosa e o Código civil ou o Código civil brasileiro: Lei n. 3071, de 1 de janeiro de 1916, com as correcções ordenadas pela Lei n. 3725, de 15 de janeiro de 1919: com apostillas de Ruy Barbosa, Clovis Bevilaqua, Carneiro Ribeiro e outros: crítica e defesa. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1931, p. 3.

[22] BEVILAQUA, Clovis. Em defeza do projecto de Codigo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906, p. X.

[23] DANTAS, San Tiago. Rui Barbosa e o código civil. Revista forense, v. 46, n. 126, p. 345, nov./dez. 1949.

Autores

  • é professor de Direito Civil Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

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