Opinião

Elon Musk e a aldeia digital em chamas

Autor

  • Milton Pereira de França Netto

    é pesquisador do Legal Grounds Institute doutorando em Direito na linha de Cidadania Digital pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) mestre em Direito pelo Centro Universitário Cesmac e advogado.

8 de maio de 2024, 18h30

“It takes a village to raise a child”. Traduzível para o português como “é preciso uma aldeia para criar uma criança”, o provérbio de origem africana e bastante disseminado nos Estados Unidos alude à necessária conjugação de esforços sociais a fim de assegurar a adequada formação inicial de um indivíduo, que transcende o domínio da autoridade de seus pais e reclama a participação colaborativa de todos(as) aqueles(as) que o rodeiam [1].

Ao se conceber a democracia no âmbito das redes sociais como um ser infante, sujeito às “dores de crescimento” (growing pains) e mudanças fisiológicas típicas do período de transição para a adolescência, é possível perceber como uma abordagem holística entre os diversos atores políticos e econômicos envoltos à problemática de regulação da área se mostra indispensável.

Outrossim, a analogia oferece um vislumbre do cenário diametralmente oposto, eivado pela dissonância dos jogadores com voz significativa nos debates empreendidos. Em meio ao ruído comunicacional, a carta da liberdade de expressão irrestrita emerge como trunfo para a mobilização de grupos encapsulados em bolhas informacionais e destinatários de ecoantes visões pré-concebidas acerca do tema.

Usualmente importadas da experiência norte-americana, consagradora de um mercado de ideias (marketplace of ideas) sujeitas ao escrutínio público, estas percepções acabam por desconsiderar que, mesmo na “terra da liberdade”, vigoram limites em relação aos conteúdos verbalizáveis. Consoante preconiza a abordagem consequencialista de Oliver Wendell Holmes Jr., manifestações passíveis de originar perigos graves, nítidos e iminentes reclamam um olhar mais detido, em função do alarme que podem instaurar[2].

Coincidentemente, o pânico emerge como a ferramenta direcionadora dos rumos das tratativas do Projeto de Lei nº 2.630/2020, atrelado à restritiva alcunha de PL das Fake News. Em sua modalidade real, a sensação reforça os clamores por avanços nas votações parlamentares, justificados pelos fatídicos episódios de ataque aos três poderes (em 8 janeiro de 2023) e de violência armada nas escolas (nos meses de março e abril de 2023).

Já em sua versão fabricada, ela se manifesta sob a forma da resistência orquestrada por parte das big techs. Na sequência dos mencionados acontecimentos, o Telegram efetuou o disparo em massa de mensagens aos seus usuários alegando que o Brasil estaria próximo de “aprovar uma lei que irá acabar com a liberdade de expressão” e que se mostrará capaz de conferir ao governo “poderes de censura sem supervisão judicial prévia”[3].

Spacca

De maneira semelhante, o Google incluiu um link em sua página inicial intitulado “O PL das Fake News pode aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira no Brasil”[4], que direcionava ao artigo contrário à proposta legislativa confeccionado pelo diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas de sua filial brasileira, Marcelo Lacerda — também autor do texto “Como o PL 2.630 pode piorar a sua internet[5].

Abuso de poder econômico

Instada pela Procuradoria Geral da República (PGR) a investigar esses fatos, a Polícia Federal (PF) concluiu que a “atuação das empresas Google Brasil e Telegram Brasil não apenas questiona éticas comerciais, mas demonstra abuso de poder econômico, manipulação de informações e possíveis violações contra a ordem consumerista”[6].

Após um breve período de dormência, a pauta entrou novamente em evidência com a agitação promovida por uma notória figura incendiária: Elon Musk. Em uma série de postagens recentes, além de associar o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes a um ditador e afirmar que este mantém o presidente Lula sob uma coleira, o proprietário do X (antigo Twitter) retomou a ofensiva contra a regulação das redes, divulgando a sua plataforma como um ambiente resistente a amarras discursivas em meio a tweets com os dizeres “o povo quer a verdade”[7].

Para alguns, todavia, a verdade almejada pode doer. Sob a vigente ótica neoliberal, a dismorfia socioeconômica faz com que os emergentes se enxerguem mais próximos a olimpianos bilionários do que aos menos abastados em seus calcanhares. Insuflados pela persuasão das big techs, eles contribuem ao alastramento do fogo desinformante nos arredores da contemporânea aldeia digital. Em chamas, o ambiente vem sucumbindo à pressão do mercado em favor do adiamento das discussões já avançadas em relação ao PL 2.630/2020, engavetado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira,[8] a despeito dos clamores de inúmeros estudiosos da área.

Apesar de suscetível a melhorias, a versão mais recente do projeto, apresentado pelo deputado Orlando Silva, traz sólidos balizamentos ao estabelecimento de um dever de cuidado para as redes sociais. Como bem lembra Moraes, tal encargo advém da percepção de que esses ambientes não se configuram como meros depósitos de conteúdos gerados pelos usuários, já que os seus algoritmos têm o condão de impulsionar ou restringir o alcance de postagens[9].

É inequívoco que a atuação do ministro, tida como arbitrária ou excessiva em múltiplas ocasiões, também carece de prementes aprimoramentos, que passam, sobretudo, por uma maior transparência nas decisões tomadas, a fim de se evitar a adição de combustível à pirotecnia até aqui narrada. Ainda assim, essas válidas críticas não justificam o temor cultivado pelas big techs e veiculado por políticos de extrema direita em torno do risco de uma censura iminente no Brasil.

Com uma clareza ímpar, Ricardo Campos leciona como as modernas plataformas se tornaram meios de comunicação híbridos, que, para além de interações individuais (um para um), permitem o diálogo com as massas (um para muitos) — o que justificaria a sua regulação aos moldes do previamente realizado com o rádio e a televisão[10]. Superada tal noção basilar, parece óbvio que avanços significativos na área reclamam o fair play dos diversos atores envolvidos no debate (usuários, big techs, universidades e poder público), eliminando-se discursos falaciosos alicerçados a subjacentes interesses econômicos.

Prestes a adentrar a transformadora fase de adolescência — tecnicamente atrelada às descobertas no campo da inteligência artificial generativa —, a democracia digital carece do somatório de esforços de seus aldeões para prosperar, refratando incêndios voluntários à sua estrutura. Apenas assim, desfrutaremos de um espaço verdadeiramente democrático, em que o exercício da liberdade de expressão se coadune aos ditames constitucionais brasileiros.


[1] REUPERT, A., Straussner, S. L., Weimand, B., & MAYBERY, D. It Takes a Village to Raise a Child: Understanding and Expanding the Concept of the “Village”. Frontiers in public health10, 756066, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.3389/fpubh.2022.756066. Acesso em: 1 maio 2024.

[2] CATÃO, Adrualdo de Lima; NETTO, Milton Pereira de França. A crise tecnológica da democracia liberal: ameaças à liberdade de expressão pelo discurso de ódio digital. Revista Brasileira de Direitos Humanos, Porto Alegre, v. 10, n. 39, p. 35-55, out./dez. 2021.

[3] GALF, Renata. Telegram distorce PL das Fake News e fala em censura e fim da liberdade de expressão. Folha de São Paulo, São Paulo, 9 maio 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/05/telegram-distorce-pl-das-fake-news-e-fala-em-censura-e-fim-da-liberdade-de-expressao.shtml. Acesso em: 1 maio 2024.

[4] GOOGLE inclui texto contra PL das fake news na página inicial do buscador. Poder 360, [S.l.], 3 maio 2023. Disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-tech/tecnologia/google-inclui-texto-contra-pl-das-fake-news-na-home-do-buscador/. Acesso em: 1 maio 2024.

[5] LACERDA, Marcelo. Como o PL 2630 pode piorar a sua internet. Blog do Google Brasil, [S.l.], 27 abr. 2023. Disponível em: https://blog.google/intl/pt-br/novidades/iniciativas/como-o-pl-2630-pode-piorar-a-sua-internet/#:~:text=O%20PL%202630%20coloca%20em,monitoramento%20e%20regula%C3%A7%C3%A3o%20da%20internet. Acesso em: 1 maio 2024.

[6] FALCÃO, Márcio. PF vê abuso de poder econômico e manipulação de dados em campanha de Google e Telegram contra PL das Fake News. G1, Brasília, 31 jan. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/01/31/pf-ve-abuso-de-poder-economico-e-manipulacao-de-dados-em-campanha-do-google-e-telegram-contra-pl-das-fake-news.ghtml. Acesso em: 1 mai. 2024.

[7] As postagens em comento podem ser visualizadas no perfil @elonmusk no X. Disponível em: https://twitter.com/elonmusk. Acesso em: 1 mai. 2024.

[8] LIRA anuncia grupo para propor nova versão do PL das Fake News. Agência Brasil, Brasília, 9 abr. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2024-04/lira-anuncia-grupo-para-propor-nova-versao-do-pl-das-fake-news. Acesso em: 1 mai0 2024.

[9] NETTO, Milton Pereira de França. FICO, Bernardo S. D. Liberdade de expressão, limites e alternativas em tempos de pós-verdade. Conjur, [S.l.], 1 mai. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-18/direito-digital-liberdade-expressao-limites-tempos-pos-verdade/. Acesso em: 1 mai. 2025.

[10] FRONTEIRA Digital #07: Regulação das Plataformas no Brasil. Entrevistado: Ricardo Campos. Entrevistadores: Milton Pereira e Tatiana Bhering. [S.l.]: Fronteira Digital, jun. 2023. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/5XDNfebJlAlvq05Dog5kcA?si=a077e054d82249a6. Acesso em: 1 mai. 2024.

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