Direito Civil Atual

Primeiro Código Civil brasileiro é fruto de proveitosa solidariedade histórica

Autor

  • Augusto Cézar Lukascheck Prado

    é professor de Direito Civil. Assessor de ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

19 de fevereiro de 2024, 9h22

O Codificador e o Código Civil (parte 1)
A elaboração do primeiro Código Civil brasileiro é fruto de uma proveitosa solidariedade histórica [1].

A versão final aprovada veio a lume após quatro projetos que não lograram êxito, dos quais se extraiu farto material utilizado para a elaboração do primeiro Código Civil brasileiro.

Entre esses trabalhos, o de Teixeira de Freitas foi o mais significativo.

Não por outro motivo, Pontes de Miranda afirma que “breve estatística poderia dizer-nos que foi, ainda em 1900-1915, Teixeira de Freitas, o codificador de 1860, quem mais criou no Código” [2].

A literatura acerca do Código Civil de 1916 não é pequena. Abundam os livros, artigos e todo tipo de trabalho que aborda este importante diploma legislativo.

Não seduz, desse modo, reeditar, em dessorado escorço, acriticamente, aquilo que já foi exposto na literatura nacional mais difundida.

ConJur

Muito embora não seja possível escapar completamente de anotações fundamentais, pretende-se abordar, nesta coluna, em duas partes, especificamente, o perfil do Codificador de 1916 e o tormentoso processo legislativo a que foi submetido o projeto.

O perfil de Clóvis Bevilaqua
Clóvis Bevilaqua nasceu a 4 de outubro de 1858 na cidade de Viçosa (CE). Segundo de uma prole composta por seis filhos, pode ter sua vida dividida a partir de dois momentos de sua personalidade.

Na juventude, um inquieto revolucionário agressivo na defesa da causa dos escravos e da República. Na fase adulta, um homem dedicado à família, tão apegado ao lar a ponto de requisitar ao então ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco, que lhe fosse permitido trabalhar em seus pareceres para o Ministério de sua casa, na rua Barão de Mesquita [3].

Em 1872, mudou-se para a capital do Estado, Fortaleza, para estudar no afamado Ateneu Cearense, transferindo-se, logo a seguir, para o Liceu do Ceará.

Por volta deste período fundou O Livro, primeiro de inúmeros periódicos que viria a criar, acontecimento que já vaticinava uma missão que o acompanharia por toda a vida: a de fundar jornais, revistas e todo tipo de periódicos [4].

Em 1876, transfere-se para o Rio de Janeiro para estudar no Externato Jasper e no Mosteiro de São Bento, época em que veio a fundar, com outros colegas, um pequeno jornal intitulado Labarum Literário, cuja primeira edição contava com uma apresentação de sua lavra na qual podia-se vislumbrar a essência do jovem Clóvis Bevilaqua, que exclamava, do auge de seus 17 anos: “eis porque aparece hoje à luz da publicidade mais um campeão da liça literária e jornalística!” [5]

Neste período, literatura e filosofia — ainda não o Direito — ocupavam suas inquietações intelectuais [6].

Em 1878, matriculou-se na Faculdade de Direito de Recife, onde viria a ocupar diversos cargos, de bibliotecário a professor [7].

Na Escola de Recife, foi influenciado pelos trabalhos de Tobias Barreto, que introduzia novas ideias no cenário jurídico-filosófico nacional, sobretudo a partir de obras alemãs. Daí sua já clássica afirmação: “incitado pelo ensino de Tobias e guiado por Jhering, vi o Direito à luz da Filosofia, da Sociologia e da História” [8].

A chamada Escola de Recife, a partir de um viés crítico, convergia para o pensamento alemão oitocentista, para o cientificismo e para o evolucionismo darwiniano [9].

Neste período, a ideia da Sociologia — ainda incipiente como ciência — possuía grande influência sobre o pensamento do autor. Não por outro motivo, as Escolas de Direito eram denominadas de “Faculdades de Ciências Jurídicas e Sociais”, muito embora não existisse, ainda, o que hoje se considera, propriamente, Sociologia.

Max Weber e Émile Durkheim, dois dos principais fundadores da Sociologia moderna, ou não haviam ainda escrito obra sociológica sequer — caso do primeiro — ou não eram ainda amplamente divulgados — caso do segundo [10].

De acordo com José Reinaldo de Lima Lopes, “tratava-se menos de observação e interpretação das relações sociais do que um genérico e vago evolucionismo, de inspiração em Herbert Spencer, e a pretensão cientificista de Herman Post, tudo temperado com alguma convicção do progresso e do determinismo, de matiz comtiana” [11].

Clóvis Bevilaqua formou-se em 1882 e, aos poucos, o civilista suplantou o panfletário [12].

Em 1889, foi nomeado professor de filosofia do Curso Anexo, submetendo-se a concurso para o qual Virgínio Marques era o preferido dos monarquistas e do qual saiu vitorioso o republicano. Com efeito, o próprio imperador do Brasil, dom Pedro 2º, solicitou as provas antes de mandar lavrar a nomeação, nomeando, então, Clóvis Bevilaqua [13].

O republicanismo do Codificador tem origem em seus dias de convivência no Liceu Cearense e no Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro, germinando, portanto, em seus anos de juventude. Em 1881, publica escrito no qual acusava o imperador dom Pedro 1º de ser o “farsante do Ipiranga” [14].

Também merece menção a faceta abolicionista do autor, muito embora esse fato não seja comumente ressaltado. Após o próprio Teixeira de Freitas deixar de mencionar a situação dos escravos tanto em sua Consolidação das Leis Civis quanto em seu Esboço, José de Alencar ter se posicionado contra a abolição e Tobias Barreto jamais proferir uma palavra a respeito, Clóvis Bevilaqua era um fervoroso defensor da causa abolicionista [15].

Em 1891, foi nomeado por Deodoro da Fonseca para o cargo de Lente da Terceira Série do Curso de Ciências Sociais da Faculdade de Direito de Recife [16]. No mesmo ano, passou a lecionar a matéria de Direito Comparado, publicando, em 1893, o clássico “Lições de Legislação Comparada” [17].

Moreira Alves destaca a multiplicidade de conhecimentos dominados pelo autor, que foi criminalista, sociólogo, filósofo, romanista, historiador, crítico literário, internacionalista, comercialista e civilista [18].

Ponto fundamental de sua biografia foi a publicação, em 1896, na Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, do artigo intitulado “O problema da Codificação do Direito Civil Brazileiro”, no qual trata das linhas fundamentais do que pensava para um Código Civil, abordando experiências codificadoras estrangeiras, examinando tentativas brasileiras anteriores e discutindo o que seria, no seu entender, indispensável para um código.

Na oportunidade, apontava que “todos os povos, em um dado período de sua civilização, têm visto erguer-se deante de si, barrando-lhes a estrada por onde têm de seguir, este problema da codificação” [19].

Ao final, concluía que um código deveria satisfazer certos requisitos sociológicos e jurídicos. Deveria, ao mesmo tempo, conter e estimular as atividades de um povo, “e é preciso saber, ao certo, qual o cravo que deve ser apertado, qual a valvula que dever ser aberta, para que o mechanismo assente em bases seguras funccione e possa conter a vida sob as suas variadas formas” [20].

Para além da boa distribuição das matérias, da clareza dos preceitos, da largueza das sínteses de cada dispositivo e da concatenação harmoniosa do todo — ditames elementares —, seria essencial, ainda, na elaboração de um Código Civil, considerar a tradição nacional — que representa a estabilidade do Direito – e a doutrina científica, de onde exsurge o elemento progressivo [21].

Em síntese, sustentava que “o elemento tradicional, si é fundamental, não deve ser exclusivo (…)” “Dos monumentos juridicos legados pelo passado deve o legislador manter a parte solida, afastar o decrepito e desenvolver o que, merecendo viver, jazia, até então, atrophiado pelo regimen anterior. Difficil empreza ser-lhe-á por certo, e mais difficil ainda, talvez, sobre essa base tradicional implantar innovações impostas pelas condições da sociedade no momento da codificação [22].”

Segundo Silvio Meira, principal biógrafo de Clóvis Bevilaqua, este artigo aliado à vasta obra do autor, que cobria praticamente toda a disciplina do Direito Civil, sugestionou Epitácio Pessoa, então ministro da Justiça do presidente Campos Sales e que também fora professor em Recife, a entregar-lhe, em 1899, a elaboração do projeto do primeiro Código Civil brasileiro [23].

Além disso, as características pessoais do codificador são apontadas como motivos — talvez coadjuvantes — para a escolha. O autor é apontado sempre como uma pessoa sem jaça, de grande modéstia e cordura [24], características que transparecem, por exemplo, no fato de ter saído em defesa de seu projeto somente em 1906 por meio da publicação do trabalho intitulado “Em defeza do projeto do Código Civil”, opinando sobre o Diploma apenas dez anos depois, uma vez já recebida a sanção presidencial, por meio da obra “Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado” [25].

De fato, tal escolha não era tarefa fácil para o Ministro da Justiça. A comunidade jurídica do Rio de Janeiro contava com diversos nomes de vulto, dentre os quais se destacavam o de Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira e Rui Barbosa.

Conforme esclarece San Tiago Dantas, é compreensível a escolha de Epitácio Pessoa ao ir buscar o talento provinciano de Clóvis Bevilaqua, que não teria que elaborar um código à altura de uma glória já adquirida, como seria o caso de Conselheiro Lafayette, “tendo antes a oportunidade de fundar no projeto, que apresentasse, o seu renome” [26].

Interessante passagem dá conta da incipiente repercussão nacional do nome daquele que viria a ser o codificador do primeiro Código Civil brasileiro, a despeito de já possuir o título de Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Recife e vasta obra.

Em manuscrito do período encontrado na Fundação Casa de Rui Barbosa, o signatário, dirigindo-se à Rui Barbosa e comentando a decisão de Epitácio Pessoa, apontava, surpreso: “Foi escolhido um tal de Clóvis”.

Escolhido o nome, Clóvis Bevilaqua chegou ao Rio de Janeiro em 27 de março de 1899 e finalizou os trabalhos de elaboração do projeto em fins de outubro, em sete meses.

O tal Clóvis “morreu como Rudolf von Jhering: com a pena na mão, escrevendo um parecer jurídico, na madrugada do dia 26 de julho de 1944” [27].

Clóvis Bevilaqua, cidadão cearense que honrou as melhores tradições jurídicas brasileiras, soube conduzir — sobre ombro de gigantes, como admitiria mais tarde [28] — o tormentoso processo de elaboração do Código, enfrentando as vicissitudes da empreitada, destacando-se, entre elas, as censuras formuladas por Rui Barbosa. O embate travado colocou em lados opostos duas figuras de invulgar brilhantismo.

Na segunda parte desta coluna, abordaremos esse tormentoso processo legislativo, verificando se as críticas dirigidas ao primeiro Código Civil brasileiro merecem, de fato, prosperar.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

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[1] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 91.

[2] Ibid., p. 91.

[3] MEIRA, Silvio. Clóvis Bevilaqua, abolicionista e republicano. Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros, v. 23, n. 73/74, p. 34, jul./jun., 1989/1990.

[4] MEIRA, Silvio. O jurista Clóvis Beviláqua e a República. Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros, v. 24/25, n. 75/78, p. 24, 1991/1992.

[5] Ibid., p. 23.

[6] CHACON, Vamireh. Clóvis Beviláqua jurista e escritor. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 178, n. 473, p. 182, jan./mar. 2017.

[7] VELASCO, Ignacio M. Poveda. Três vultos da cultura jurídica brasileira: Augusto Teixeira de Freitas, Tobias Barreto de Menezes e Clóvis Beviláqua. BITTAR, Eduardo C. B. (Org.). História do direito brasileiro: leituras da ordem jurídica nacional. 2. ed., rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2010, p. 17.

[8] MOREIRA ALVES, José Carlos. Depoimento: um aspecto que me impressionava em Clóvis Beviláqua é a multiplicidade de conhecimentos, especialmente na área jurídica, em que ele, além de exímio civilista, era também destacado cultor do Direito Internacional Público e Privado filósofo do Direito e comparatista In Clóvis Beviláqua: um senhor brasileiro. São Paulo: Lettera.doc, 2010, p. 174-178.

[9] TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O legado do Código Civil de 1916. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 111, p. 89, jun., 2017.

[10] LOPES, José Reinaldo de Lima. Código Civil e ciência do direito entre sociologismo e conceitualismo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 178, n. 473, p. 88, jan./mar. 2017.

[11] Ibid., p. 88.

[12] MEIRA, Silvio. Clóvis Bevilaqua, abolicionista e republicano. Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros, v. 23, n. 73/74, p. 36, jul./jun., 1989/1990.

[13] MEIRA, Silvio. O jurista Clóvis Beviláqua e a República. Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros, v. 24/25, n. 75/78, p. 31, 1991/1992.

[14] Ibid., p. 30.

[15] MEIRA, Silvio. Clóvis Bevilaqua, abolicionista e republicano. Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros, v. 23, n. 73/74, p. 35, jul./jun., 1989/1990.

[16] MEIRA, Silvio. Romanismo e universalidade na obra de Clóvis Bevilaqua. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, v. 30, n. 2, p. 26, jul/dez. 1989.

[17] Houve uma segunda edição, em 1897. Cf. BEVILAQUA, Clóvis. Resumo das Licções de Legislação Comparada sobre o Direito Privado. 2. ed. rev. e augm. Bahia: Livraria Magalhães, 1897.

[18] MOREIRA ALVES, José Carlos. Depoimento: um aspecto que me impressionava em Clóvis Beviláqua é a multiplicidade de conhecimentos, especialmente na área jurídica, em que ele, além de exímio civilista, era também destacado cultor do Direito Internacional Público e Privado filósofo do Direito e comparatista In Clóvis Beviláqua: um senhor brasileiro. São Paulo: Lettera.doc, 2010, p. 174-178.

[19] BEVILAQUA, Clóvis. O problema da codificação do direito civil brazileiro. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, v. 6, n. 1, p. 3, 1896.

[20] Ibid., p. 13.

[21] Ibid., p. 13.

[22] Ibid., p. 15.

[23] MEIRA, Silvio. Romanismo e universalidade na obra de Clóvis Bevilaqua. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, v. 30, n. 2, p. 27, jul/dez. 1989; MEIRA, Silvio. O Código civil do Brasil de 1917: o Projeto Bevilaqua. Giuffrè, 1982, p. 352.

[24] MEIRA, Silvio. O Código civil do Brasil de 1917: o Projeto Bevilaqua. Giuffrè, 1982, p. 353.

[25] VELASCO, Ignacio M. Poveda. Três vultos da cultura jurídica brasileira: Augusto Teixeira de Freitas, Tobias Barreto de Menezes e Clóvis Beviláqua. BITTAR, Eduardo C. B. (Org.). História do direito brasileiro: leituras da ordem jurídica nacional. 2. ed., rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2010, p. 17.

[26] DANTAS, San Tiago. Rui Barbosa e o código civil. Revista forense, v. 46, n. 126, p. 334, nov./dez. 1949.

[27] MEIRA, Silvio. O jurista Clóvis Beviláqua e a República. Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros, v. 24/25, n. 75/78, p. 33, 1991/1992.

[28] BEVILAQUA, Clovis. Em defeza do projecto de Codigo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906, p. 26.

Autores

  • é professor de Direito Civil Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

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