Segunda Leitura

Primeira fuga em 18 anos. Ainda é preciso confiar no sistema dos presídios federais

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

18 de fevereiro de 2024, 10h41

No último dia 14, Quarta-feira de Cinzas, dois presos do Presídio Federal de Segurança Máxima de Mossoró (RN), arrebentaram uma passagem de luz de suas celas, alcançaram o teto, utilizaram ferramentas e, superando todos os obstáculos, fugiram.

O fato gerou perplexidade, pois, em 18 anos de existência dos cinco presídios federais brasileiros, em Catanduvas (PR), Porto Velho (RO), Brasília e Campo Grande (MS), nunca houve uma fuga com sucesso.

A Lei 11.671 de 2008 criou as referidas unidades com o objetivo de receberem aqueles para quem a medida se justifique no interesse da segurança pública ou do próprio preso (artigo 3º).

No seu texto, a lei disciplinou todas as cautelas a serem tomadas, muito mais rigorosas do que as dos presídios comuns administrados pelos estados da federação.

Entre tais medidas mencionam-se o recolhimento de todos presos em cela individual, o monitoramento de áudio e vídeo no parlatório e nas áreas comuns e a participação de dupla fiscalização em todas as atividades.

Para que se possam compreender estas cautelas, dá-se um exemplo: todas as saídas da cela para o banho de sol são feitas por dois policiais penais (antigos agentes penitenciários) e o monitoramento por vídeo é feito no local e em Brasília.

Em que pesem estas e outras tantas cautelas que a Lei 11.671 determina e os rigorosos protocolos elaborados pelas autoridades penitenciárias, os dois condenados que cumpriam pena em Mossoró evadiram-se, superando os oito obstáculos que impedem o acesso de um preso à via pública.

Spacca

Para sair de suas celas, utilizaram barras de ferro que lhes permitiram arrebentar a parede (não o teto como alguns disseram), as quais foram parar em suas celas apesar das revistas diárias. E mais. Já no teto valeram-se de ferramentas que lá se encontravam sendo utilizadas para reparos no prédio.

Continuaram superando paredes, muros, não foram vistos pelos vigias nas guaritas, tudo de modo a fazer o que até então ninguém havia conseguido. Não foi uma fuga rocambolesca por meio de helicópteros, explosões ou uma asa delta motorizada a voar nos céus de Mossoró. Foi um plano milimetricamente calculado e que deu certo.

O corregedor do presídio, juiz federal Walter Nunes da Silva Júnior, em lúcida entrevista, reconheceu e enfatizou a existência de falha humana, porém registrou não se tratar de falha estrutural e insistiu na confiança que tem no sistema prisional federal, lembrando tratar-se da primeira e única ocorrência em 18 anos. [1]

Só falha humana?
A falha humana é  inquestionável, disto não há quem discorde. Mas é difícil crer que a falha tenha sido decorrência de mera desídia, pouco caso, irresponsabilidade.

Basta um argumento para excluir-se esta possibilidade. As barras de ferro que se valeram os fugitivos não surgiram em suas celas por obra do acaso ou de algo sobrenatural. Alguém permitiu que lá se encontrassem.

Consequentemente, se levará ao raciocínio lógico de concluir que houve um plano traçado por uma organização criminosa ou que foi fruto de um enorme poder estratégico dos presos, em ambas as hipóteses com o auxílio de pessoas da administração e/ou de funcionários da empreiteira que fazia obras no prédio. E estas pessoas teriam agido mediante pagamento ou sob ameaça de tal porte que lhes retirava a liberdade de decisão.

As apurações certamente chegarão a conclusões sobre a existência de responsáveis e em que situação agiram, através de quebra de sigilo bancário de suspeitos, apreensão de telefones celulares, investigação da vida pessoal e dos recursos econômicos dos investigados e outras ações similares.

Certamente sobrevirão denúncias por crimes de facilitação de fuga de preso (artigo 351 do Código Penal), corrupção passiva (artigo 317) e prevaricação (artigo 319).

No entanto, o mais importante é saber quais serão os reflexos, as consequências da fuga da penitenciária federal de Mossoró.

O primeiro deles será a descrença no sistema prisional federal. Infelizmente, a notícia que marca é sempre a ruim e não as boas e por isso a fuga é que será lembrada.

Além disto, o brasileiro tem baixa estima sobre as suas instituições e a fuga em Mossoró será um bom motivo para frases de desencanto e deboche.

Em um segundo momento sobrevirão os argumentos de sempre, expostos em artigos ou entrevistas, com frases de aparente sabedoria (p. ex., o Brasil prende muito e prende mal) ou críticas que não apontam soluções (p. ex., o sistema de combate à criminalidade mostrou-se ineficiente, é preciso mudar).

De nada servem tais afirmações genéricas, baseadas em estatísticas sem fonte de consulta, que nunca vem acompanhadas de soluções reais, concretas e de fácil compreensão.

Enquanto o palavreado supostamente erudito toma o espaço da mídia, as organizações criminosas crescem em poder, se internacionalizam e ocupam, como já tive ocasião de falar, território em áreas urbanas de municípios e na Amazônia.[2]

O fenômeno que não é brasileiro, alcança de diferentes formas mas igual gravidade, um bom número de países latino americanos, alguns sob domínio do tráfico, os chamados narcoestados, outros se debatendo para não chegar a tal ponto, como o Equador, onde recentemente um candidato a presidente foi assassinado. [3]

Voto de confiança
No caso dos presídios federais, será possível eliminar a possibilidade de futuras fugas? Sim, através da:

a) construção de uma muralha posterior ao muro, como as existentes em prisões norte americanas;
b)  aperfeiçoando o uso da tecnologia, inclusive com escuta ambiental no pátio,  como sugere o especialista Walter Maierovitch  em entrevista [4];
c) monitorando as celas, respeitado o espaço destinado às necessidades fisiológicas;
d) permitindo aos serviços de inteligência que, em caso de suspeita, acompanhem a situação econômica de servidores da penitenciária que atuam em posições estratégicas, bem como de seus familiares;
e) levantamento prévio minucioso de todos os que, a serviço de empresas contratadas, tenham acesso ao presídio.

Em suma, a fuga ocorrida deve ser acima de tudo uma lição para que procedimentos sejam revistos impedindo que o fato se repita. No mais, é preciso confiar no sistema, dando mais valor aos 18 anos de acerto das cinco penitenciárias existentes do que a um erro ocorrido em uma delas.

_____________________

[1]  Corregedor de Penitenciária fala ao vivo sobre fuga. Canal Uol no You Tube, 16 fev. 2023.

[2] FREITAS, Vladimir Passos de. A morte de Dom e Bruno, o crime organizado e a perda de território. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 19 jun. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-19/segunda-leitura-morte-dom-bruno-crime-organizado-territorio/. Acesso em 16 fev. 2024.

[3]  O Tempo. Presidente do Equador diz que cartel foi longe demais com morte de candidato, 9 ago. 2023. Disponível em https://www.otempo.com.br/mundo/presidente-do-equador-diz-que-cartel-foi-longe-demais-com-morte-de-candidato-1.3141420. Acesso em 16 fev. 2024.

[4]  You Tube UOL, 16 FEV. 2024. Maierovitch: Investir em tecnologia e inteligência é melhor e mais barato do que fazer muralhas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fvwf9iTBejk. Acesso em 16 fev. 2024.

 

 

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!