Opinião

Descentralização da segurança pública: a ascensão das guardas municipais

Autor

  • David Pimentel Barbosa de Siena

    é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

5 de abril de 2024, 19h33

A descentralização dos serviços policiais, ou seja, a transferência de responsabilidades para a execução das políticas de segurança pública para níveis de governo mais próximos à comunidade, tem sido objeto de amplo debate tanto no âmbito acadêmico quanto no político. Nos Estados Unidos, os debates acerca do tamanho e da fragmentação das forças policiais tiveram início na década de 1930, porém só ganharam relevância em termos de estudos empíricos no final da década de 1960 (Ostrom & Parks, 1973). O sistema policial dos Estados Unidos é amplamente conhecido por sua descentralização acentuada, contando com mais de 15.500 agências policiais operando sob jurisdições locais (Bayley, 1992).

A discussão em torno da fragmentação das forças policiais estadunidenses emergiu a partir de preocupações relacionadas à ineficiência, à falta de capacidade e aos desafios de coordenação na execução da lei, sobretudo nas áreas metropolitanas (Ostrom & Parks, 1973). Críticos sustentavam que a fragmentação policial resultava em sobreposição de jurisdições, rivalidades entre as agências, lacunas nas redes de comunicação e deficiências no treinamento policial (Reuss, 1970). Contudo, em meio às objeções levantadas contra a descentralização da polícia, estudos conduzidos na década de 1970 constataram que as forças policiais de menor porte nos Estados Unidos demonstravam uma eficiência superior às suas contrapartes maiores, levando em consideração o número de policiais em cada uma delas (Ostrom, 1976, Ostrom & Parks, 1973, Ostrom & Smith, 1976, Ostrom & Whitaker, 1973).

Com base na estrutura organizacional e nas atribuições de serviços, os sistemas policiais são categorizados em dois principais sistemas: centralizados e descentralizados (Bayley, 1992; Kurtz, 1995; Terrill, 2009; UNAFEI, 2003). Um sistema policial centralizado ou nacional refere-se a um modelo no qual o governo nacional assume a responsabilidade por todas as atividades de aplicação da lei. Países como a Irlanda e a Tailândia adotam esse sistema. Já um sistema policial descentralizado é caracterizado pela divisão de responsabilidades entre vários níveis de governo, com atribuições de tarefas e coordenação claramente definidas, assemelhando-se ao modelo dos Estados Unidos.

De acordo com Kurtz (1995), a escolha entre uma organização policial centralizada ou descentralizada é uma das decisões mais cruciais enfrentadas pelas nações em todo o mundo, uma vez que cada alternativa apresenta vantagens e desvantagens potenciais. Houve casos de descentralização dos sistemas policiais no Brasil e na Venezuela em 1988 e 1999, respectivamente (S. Johnson, Forman, & Bliss, 2012), enquanto o México adotou uma abordagem mais centralizada em sua polícia em 2010 (Esparza, 2012). Nas Filipinas, algumas funções administrativas e políticas foram descentralizadas para os governos locais no início da década de 1990 (Das, 2006). Adicionalmente, a Coreia do Sul está atualmente avaliando a possibilidade de implementar um modelo de polícia descentralizada (Park & Johnstone, 2013).

A descentralização, quando aplicada à área de segurança pública, frequentemente se traduz na municipalização, ou seja, na transferência de responsabilidades e competências da esfera estadual ou federal para o nível municipal. Esse processo de municipalização busca aproximar a administração da aplicação da lei das comunidades locais, permitindo que governos municipais assumam um papel mais ativo na formulação e execução das políticas de segurança. A municipalização da polícia implica na criação ou fortalecimento das guardas municipais, órgãos responsáveis pela preservação da ordem pública em nível local. Esse movimento tem sido observado em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, como parte de uma estratégia mais ampla de descentralização, visando a melhorar a eficácia, a eficiência e a capacidade de resposta das forças de segurança às necessidades específicas das comunidades locais.

Estatuto Geral das Guardas Municipais

A Lei nº 13.022, de 8 de agosto de 2014, que instituiu o Estatuto Geral das Guardas Municipais, é percebida como um verdadeiro marco legal da descentralização da organização policial brasileira. Entre as competências das guardas municipais, o artigo 5º estabelece que cabe aos referidos órgãos: colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social (inciso IV); garantir o atendimento de ocorrências emergenciais, ou prestá-lo direta e imediatamente quando deparar-se com elas (inciso XIII); encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário (inciso XIV). Com efeito, o Decreto nº 11.841, de 21 de dezembro de 2023, regulamentou os mencionados dispositivos legais, estabelecendo diretrizes para a cooperação das guardas municipais com os órgãos de segurança pública da União, dos estados e do Distrito Federal.

Spacca

Em outros termos, o decreto regulamenta as atividades desempenhadas pelas guardas municipais, abrangendo tanto a prevenção do crime, como o patrulhamento preventivo, quanto a repressão à criminalidade, que envolve prisões, conduções em flagrante e atos de preservação de locais de crime. Essas competências estão de acordo com o que está estabelecido no Estatuto Geral das Guardas Municipais, e na Lei do Susp, com foco especial na defesa da vida, integridade das pessoas e proteção do patrimônio público e privado.

Em meio às discussões sobre a descentralização versus centralização na aplicação da lei penal, muitas vezes negligenciamos uma questão mais sutil: quais aspectos dos serviços policiais se beneficiariam de uma abordagem descentralizada e quais não? Essa indagação levanta uma questão normativa crucial relacionada a quais serviços públicos devem ser atribuídos ao governo centralizado e quais devem ser entregues à jurisdição do governo descentralizado, uma consideração fundamental na teoria do federalismo fiscal (Anderson, 2010; Oates, 1972, 1999). A abordagem convencional do federalismo fiscal se concentra na organização vertical do setor público com o objetivo de determinar quais funções e ferramentas são mais adequadas para centralização e quais devem ser gerenciadas pelos níveis descentralizados do governo (Oates, 1999).

Um sistema policial engloba uma ampla gama de serviços, desde a fiscalização de infrações de trânsito até a repressão de complexas redes de tráfico de drogas em âmbito nacional. A alocação criteriosa dessas responsabilidades em diferentes esferas de governo pode resultar em aprimoramentos significativos na prestação desses serviços à comunidade. Portanto, a análise ponderada das características específicas dos serviços policiais em relação à centralização ou descentralização é essencial para otimizar sua eficiência e eficácia, considerando as nuances de cada contexto governamental (Anderson, 2010; Oates, 1972, 1999). Um sistema policial engloba uma ampla gama de serviços, desde infrações penais de menor potencial ofensivo até a repressão a crimes transnacionais, que podem ser atribuídos a diferentes níveis de governos para obter melhores resultados.

Nesse sentido, o Decreto federal nº 11.841, de 21 de dezembro de 2023, optou por alguns serviços policiais., De acordo com o seu artigo 2º, as guardas municipais, órgãos operacionais do Sistema Único de Segurança Pública, nos termos do disposto no inciso VII do § 2º do artigo 9º da Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018 — Lei do Susp, têm permissão para realizar patrulhamento preventivo. No entanto, essa atividade deve ser realizada de forma a não prejudicar as competências de outros órgãos de segurança pública federais, estaduais e distritais. Em outras palavras, as guardas municipais podem atuar na prevenção, mas não devem interferir nas investigações ou atividades de outras forças de segurança.

Atuação integrada com órgãos de segurança

As guardas municipais devem atuar de maneira integrada com os órgãos de segurança pública da União, dos estados e do Distrito Federal, sendo que sua atuação deve estar pautada, especialmente, em três princípios previstos no artigo 3º, do Decreto nº 11.841, de 21 de dezembro de 2023: a garantia do respeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição; a contribuição para a paz social, a prevenção e a pacificação de conflitos; e a garantia do atendimento de ocorrências emergenciais.

Uma parte crucial desse decreto é a definição das “ocorrências emergenciais”, conforme estabelecido no §1º do artigo 3º do decreto. Isso significa que a atuação das guardas municipais como órgãos parapoliciais é justificada sempre que ocorrerem emergências que exigem ação rápida e imediata dos órgãos de segurança pública, envolvendo risco grave à vida, à segurança das pessoas e ao patrimônio. Para lidar com as ocorrências emergenciais, as guardas municipais devem seguir procedimentos iniciais, acionar os órgãos de segurança pública competentes e oferecer apoio para a continuidade do atendimento. Isso implica em uma abordagem coordenada e colaborativa com outros órgãos de segurança para garantir uma resposta eficaz e eficiente diante de situações de urgência.

Esse decreto tem o potencial de influenciar decisões de órgãos fracionários do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, em alguns casos, têm restringido a atuação das guardas municipais na prevenção e repressão de infrações penais. Vale ressaltar que essa regulamentação está em conformidade com uma decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 995, cujo relator foi o ministro Alexandre de Moraes e julgada em 28 de agosto de 2023. Nessa ADPF, o STF reconheceu as guardas municipais como órgãos operacionais do Susp, o que implica que são consideradas órgãos de segurança pública. Portanto, a partir dessa decisão, qualquer interpretação judicial que desconsidere as guardas municipais como parte do sistema brasileiro de segurança pública passa a ser considerada inconstitucional.

À luz do crescente apoio à descentralização, torna-se imperativo avaliar os seus desfechos, particularmente no contexto da aplicação do Estatuto Geral das Guardas Municipais e o seu decreto regulamentar. A intensidade policial, que reflete o grau de presença e atividade das forças de segurança, surge como uma métrica relevante para medir o impacto das políticas descentralizadoras nas estratégias de policiamento. Embora pesquisas anteriores sobre intensidade policial tenham se concentrado predominantemente nos Estados Unidos, onde a descentralização é um traço proeminente, as comparações internacionais podem lançar luz sobre padrões mais amplos e identificar exceções. Ao examinar a intensidade policial em nações com diferentes graus de descentralização, este estudo almeja proporcionar uma compreensão mais abrangente da relação entre a descentralização e os resultados alcançados na aplicação da lei.

Bayley (1992) observou que a pesquisa acerca dos efeitos das estruturas institucionais — nomeadamente, policiamento centralizado versus descentralizado — sobre o desempenho policial ainda estava em sua fase embrionária, com predominância de estudos de caso descritivos e uma escassez de estudos comparativos. Bayley propôs que as estruturas institucionais fossem incorporadas como variáveis independentes em modelos estatísticos, um enfoque que, desde então, tem ganhado aceitação. Embora tenham surgido diversos estudos comparativos transnacionais sobre o tema desde então, a maioria ainda se mantém descritiva, apresentando argumentos normativos e/ou enfocando um conjunto restrito de países (como exemplificado por de Millard & Savage, 2012; Park & Johnstone, 2013; Reichel, 2013; Reiss, 1995; Terrill, 2013; UNAFEI, 2003).

Infelizmente, a situação parece estagnar, com a literatura em estudos policiais comparativos ainda carecendo de pesquisas passíveis de generalização sobre os impactos dos diferentes sistemas policiais. Dois desafios inter-relacionados continuam a persistir nesse campo. Em primeiro lugar, as classificações adotadas na literatura policial não possuem uniformidade e não se fundamentam em uma estrutura teórica relacionada à descentralização de bens e serviços públicos. Em segundo lugar, a ausência de uma classificação padronizada dificulta a realização de estudos quantitativos comparativos transnacionais para avaliar os efeitos dos sistemas policiais. Portanto, o entendimento abrangente dos impactos da descentralização nas operações policiais requer uma abordagem mais sistemática e comparativa, que contemple uma variedade de contextos nacionais e locais, a fim de identificar tendências gerais e peculiaridades específicas de cada realidade.

 


Referências

Park, J., & Johnstone, P. (2013). A comparative study of a centralized and a decentralized police system: The plan for adopting a decentralized police system in South Korea. In M. C. de Guzman, A. M. Das, & D. K. Das (Eds.), The evolution of policing: Worldwide innovations and insights (pp. 405-429). Boca Raton, FL: CRC Press.

Das, D. K. (Ed.) (2006). World police encyclopedia. New York, NY: Routledge.

Esparza, D. (2012). Police centralization and public security in Mexico. Paper presented at the Western Political Science Association 2012 Annual Meeting, Portland, OR.

Kurtz, H. A. (1995). Criminal justice centralization versus decentralization in the Republic of China. Journal of the Oklahoma Criminal Justice Research Consortium, 2, 7.

Johnson, S., Forman, J. M., & Bliss, K. (2012). Police reform in Latin America: Implications for U.S. policy. Washington, DC: Center for Strategic and International Studies

Anderson, G. (2010). Fiscal federalism: A comparative introduction. Don Mills, Ontario: Oxford University Press.

Oates, W. E. (1972). Fiscal federalism. New York: Harcourt Brace Jovanovich.

Oates, W. E. (1999). An Essay on Fiscal Federalism. Journal of Economic Literature, 37(3), 1120–1149. http://www.jstor.org/stable/2564874

Bayley, D. H. (1992). Comparative organization of the police in English-speaking countries. In M. Tonry & N. Morris (Eds.), Modern policing (pp. 509-545). Chicago: University of Chicago Press.

Ostrom, E. and R.B. Parks (1973) “Suburban police departments: too many and too small?” pp. 367-402 in L. H. Masotti and J. K. Hadden (eds.) The Urbanization of the Suburbs. VoL 7 in Urban Affairs Annual Reviews. Beverly Hills: Sage.

Reuss, H. S. (1970). Revenue-sharing: Crutch or catalyst for state and local government? New York, NY: Praeger Publishers.

Ostrom, E. e D.C. Smith. (1976). “On the Fate of ‘Lilliputs’ in Metropolitan Policing.” Public Administration Review, 36(2), 192-200.

Ostrom, E. e G.P. Whitaker. (1973). “Does Local Community Control of Police Make a Difference? Some Preliminary Findings.” American Journal of Political Science, 17(1), 48-76.

Terrill, R. J. (2009). World criminal justice systems: A comparative survey (7th ed.). New Providence, NJ: Matthew Bender & Company.

UNAFEI. (2003). Annual report for 2001and resource material series No. 60 (K. Sakai Ed.). Tokyo, Japan: Asia and Far East Institute for the Prevention of Crime and the Treatment of Offenders.

Autores

  • é professor de Criminologia, Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol), da Strong Business School (Strong FGV) e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

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