Opinião

Benefícios fiscais sobre a partilha de receitas de impostos segundo o STF

Autores

  • Diogo Luiz Cordeiro Rodrigues

    é procurador do Estado do Paraná doutorando em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e em Regulação Financeira e Comercial pela London School of Economics and Political Science (LSE).

  • Caio Gama Mascarenhas

    é doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP) mestre em Direitos Humanos (UFMS) procurador do Estado do Mato Grosso do Sul chefe da procuradoria judicial e membro do corpo editorial da Revista da PGE-MS.

16 de fevereiro de 2024, 6h06

O que diz o Supremo Tribunal Federal acerca dos impactos dos benefícios fiscais sobre a partilha de receitas de impostos? Teriam os entes federados recipientes da partilha direito ao recebimento do valor “total” sem os benefícios?

O STF tem desempenhado um papel crucial na análise dos impactos dos benefícios fiscais sobre a partilha de receitas de impostos no contexto federativo brasileiro.

Em diversas decisões, a Suprema Corte brasileira tem se debruçado sobre a questão da legalidade e da constitucionalidade desses benefícios, especialmente no que diz respeito à sua influência na partilha de recursos entre os entes federados.

Uma das questões centrais debatidas é se os entes federados destinatários da partilha teriam direito ao recebimento do valor “total” das receitas sem os benefícios fiscais. Adicionalmente, defendemos que, dentre outras normas, o artigo 113 do ADCT deve ser considerado pelo ente que concede o benefício fiscal.

A partilha de receita tributária
Sob o prisma do federalismo fiscal, a autonomia de cada ente federado é garantida mediante dois mecanismos básicos:

(1) atribuição de competência tributária própria, como uma fonte independente e regular de recursos (receitas próprias), e
(2) repartição direta e indireta de receitas tributárias (receitas transferidas), como forma de implementação do federalismo cooperativo, que visa à redução das desigualdades regionais e à adequada prestação dos serviços públicos titularizados por cada ente [1].

Ressalta-se que as receitas transferidas incluir-se-ão, como despesa, no orçamento da entidade obrigada a transferência e, como receita, no orçamento da que as deva receber (§1º, artigo 6º, Lei nº 4.320/1964).

Quanto às receitas transferidas mediante repartição indireta, os municípios, estados e o Distrito Federal fazem jus a quotas do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE), cujos recursos são formados por parcelas dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, ambos de titularidade da União, nos termos do artigo 159, inciso I, da Constituição.

Em relação às receitas transferidas por repartição direta, sem intermediação de fundos ou condicionantes outras, a Constituição republicana assegura aos entes subnacionais parcelas do produto da arrecadação de diferentes impostos titularizados pelos “entes maiores”.

Nessa linha, por exemplo, pertence aos estados, ao Distrito Federal e ao municípios o produto da arrecadação do imposto de renda retido na fonte (artigos 157, I e 158, I, da Constituição).

Quanto ao ICMS, os municípios são titulares de 25% do produto da arrecadação desse imposto estadual (artigos 158, IV, da Constituição).

Benefícios fiscais e “cortesia com chapéu alheio”
Dúvida surge quando um “ente maior” decide instituir benefício fiscal redutor de sua capacidade arrecadatória imediata, reduzindo, assim, a base de cálculo do percentual de receita tributária que caberia a um “ente menor”.

Cita-se a política de incentivos fiscais do ente central como uma “cortesia com chapéu alheio”, porquanto parte desse custo é transferida para o ente titular de parcela do produto de uma arrecadação que jamais será concretizada. Nesse contexto, há redução das receitas partilhadas suportada pelos entes beneficiários, sendo o assunto levado ao STF no RE nº 572.762/SC (Tese 42) e RE nº 705.423/SE (Tese 653) [2]

O conceito técnico de “arrecadação” revela-se fundamental para o exame de casos do tipo, já que os dispositivos constitucionais referentes à repartição de receitas tributárias literalmente asseguram aos entes beneficiários parcelas do “produto da arrecadação” dos tributos repartidos (não à toa, a repartição de receitas é um tema de Direito Financeiro, não de Direito Tributário [3].

A posição do Supremo Tribunal Federal
Inicialmente, ao julgar o Tema 42 da Repercussão Geral (recurso-paradigma: RE 572.762, rel. min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJe 05.09.2008), a Suprema Corte brasileira entendeu que o Programa de Desenvolvimento da Empresa Catarinense violara o artigo 158, IV, da Constituição republicana ao reduzir as quotas do produto da arrecadação do ICMS devidas aos municípios catarinenses.

De acordo com a ementa do julgado, “o repasse da quota constitucionalmente devida aos municípios não pode sujeitar-se à condição prevista em programa de benefício fiscal de âmbito estadual”.

Nessa oportunidade, o ministro relator qualificou sua posição ao frisar que, da análise do acórdão recorrido, ficara claro que “o tributo em tela já havia sido efetivamente arrecadado”.

O fato, no entanto, é que o STF, ao julgar o Tema 42, ampliou em demasia a expressão “produto da arrecadação” para nela compreender a totalidade dos percentuais das receitas tributárias repartidas, como se pertencessem de pleno direito aos municípios, a despeito do estágio ou fase em que a receita se encontrasse.

Para que se compreenda o equívoco desse entendimento, é necessário ressaltar que o conceito de “arrecadação” possui um sentido técnico amplamente aceito no Direito Financeiro. Em verdade, a receita pública orçamentária sujeita-se a diversos estágios, nomeadamente: previsão, lançamento, arrecadação e recolhimento.

A arrecadação corresponde à entrega dos recursos devidos ao Tesouro pelos contribuintes ou devedores, por meio dos agentes arrecadadores ou instituições financeiras autorizadas pelo ente. Esse é o momento em que se reconhece a receita pública orçamentária, nos termos do artigo 35, I, da Lei nº 4.320, de 1964.

O recolhimento em si consiste em fase posterior, que se dá no momento em que o produto da arrecadação é efetivamente transferido para conta específica do Tesouro, responsável pela administração e controle da arrecadação e programação financeira, nos termos do artigo 56 da Lei nº 4.320, de 1964 [4].

Não menos importante nesse caso é perceber que, segundo uma conhecida diretriz hermenêutica (hoje transformada técnica legislativa por força do artigo 11, I, a, da Lei Complementar nº 95/1998), as disposições normativas devem “usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando”.

Na interpretação constitucional, deve-se privilegiar o sentido técnico de “arrecadação” na análise dos dispositivos que tratam da repartição de receitas tributárias.

Nesse contexto, o uso da expressão “produto da arrecadação” por parte do Constituinte é determinante: se o benefício fiscal antecede a fase de arrecadação, evitando a própria previsão da receita no âmbito do ente titular da competência tributária (como ocorre na isenção), nada pode ser alegado pelo ente beneficiário da receita transferida.

Caso já tenha ocorrido a arrecadação da receita tributária orçamentária, no entanto, o benefício fiscal não pode reduzir a base de cálculo do repasse, preservando-se, desse modo, a transferência do percentual do produto da arrecadação previsto constitucionalmente.

Tal entendimento, além de preservar o conceito técnico de “arrecadação”, é o que concilia de maneira mais adequada e isonômica a autonomia dos entes subnacionais (reforçada no âmbito fiscal pela garantia do recebimento de receitas transferidas) com a competência tributária do ente titular da receita, que também possui status constitucional.

O STF acolheu essa posição no julgamento dos Temas 653 e 1.172 da Repercussão Geral. Ao apreciar o Tema 653 (leading case: RE 705.423, rel. Edson Fachin), o STF concluiu que as regras constitucionais de repartição de receitas não limitam o exercício da competência tributária própria de cada ente, o que inclui tanto a prerrogativa de instituir e arrecadar tributos quanto a de conferir benefícios fiscais.

Ressaltou, ademais, que a expressão “produto da arrecadação” prevista no artigo 158, I, da Constituição da República, não permite interpretação constitucional de modo a incluir na base de cálculo do FPM os benefícios e incentivos fiscais devidamente realizados pela União em relação a tributos federais, à luz do conceito técnico de arrecadação e dos estágios da receita pública.”

O ministro Teori Zavascki, em seu voto, argumentou:  espera-se que, a médio prazo, as desonerações fiscais promovam desenvolvimento econômico local, com subsequente aumento da arrecadação direta dos entes federativos subnacionais (uma externalidade positiva que, no entanto, carece de confirmação empírica).

Em verdade, segundo a jurisprudência do STF, a alegação de ofensa à regra de repartição de receitas prevista no artigo 158, IV, da Constituição por parte dos municípios será procedente se houver a prévia arrecadação da correspondente receita pelo estado, a despeito do benefício fiscal, já que, segundo a literalidade do dispositivo constitucional, os municípios fazem jus a parcela do “produto da arrecadação” do imposto.

Contudo, quando a receita chega à fase de arrecadação, o benefício fiscal concedido pelo Estado não pode acarretar a diminuição da base de cálculo da parcela cabível ao município. Foi o que o STF decidiu no RE 1.288.634 (Tema 1172 da Repercussão Geral) em caso de diferimento do pagamento de ICMS, segundo o qual:

Os programas de diferimento ou postergação de pagamento de ICMS — a exemplo do FOMENTAR e do PRODUZIR, do Estado de Goiás – não violam o sistema constitucional de repartição de receitas tributárias previsto no art. 158, IV, da Constituição Federal, desde que seja preservado o repasse da parcela pertencente aos Municípios quando do efetivo ingresso do tributo nos cofres públicos estaduais.”

O artigo 113 do ADCT e a mudança de paradigma
Em nossa opinião, o tema deve ser contextualizado também à luz da Emenda Constitucional 95/2016, que instituiu o então “Novo Regime Fiscal” no país.

Ressalta-se um dispositivo em específico: o artigo 113 do ADCT. Com base nessa norma, toda proposição legislativa (federal, estadual, distrital ou municipal) “que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”, em linha com a previsão do artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A escolha do Constituinte de regular esse assunto reflete o princípio da responsabilidade fiscal, especialmente ao lidar com a concessão de benefícios tributários que resultam em renúncia de receita.

Essa decisão decorre da percepção de que a elaboração de tal estudo concede ao Poder Legislativo a autoridade para examinar não apenas os objetivos constitucionais buscados por meio desses benefícios, mas também para fiscalizar a viabilidade financeira dessa decisão política.

A concessão de benefícios fiscais, ao impactar a receita do ente, afeta os recursos financeiros usados pelo Estado (em sentido amplo) para financiar suas operações. Portanto, uma decisão política informada do legislador requer uma compreensão abrangente da questão, especialmente no que diz respeito aos efeitos financeiros resultantes.

Acredita-se que a política de isenções de tributos sujeitos à partilha deve igualmente se submeter a tal preceito. Desse modo, poder-se-ia pensar na regularidade das isenções de impostos sujeitos à partilha, desde que atendidas as normas constitucionais e legais pertinentes, notadamente o artigo 113 do ADCT [5] e o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal, entre outros [6].

Isso porque a obediência a essas prescrições contribui para a maior qualidade da renúncia de receita – tanto pelo prisma fiscal quanto pelos resultados sociais e econômicos gerados, compensando eventual impacto interfederativo da renúncia de receita sobre os entes menores. Aliás, foi justamente o que o STF decidiu na ADI 2.238 ao considerar válido o artigo 14 da LRF [7].

Em suma, a decisão do ente central que concede benefícios fiscais sobre a partilha de receitas de impostos deve observar os seguintes parâmetros:

1) Conforme o caso, há a necessidade de editar lei específica, como exige o artigo 150, §6º, da Constituição; 2) Em se tratando de benefício fiscal de ICMS, deve-se obter autorização mediante convênio celebrado no âmbito do Confaz (artigo 155, § 2º, XII, g, da Constituição);
3) Cumpre estimar o impacto orçamentário e financeiro da renúncia de receita no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes (artigo 113 do ADCT [8] e artigo 14, caput, da LRF);
4) Atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias (artigo 14, caput, da LRF); 5) Demonstrar que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do artigo 12 da LRF, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias (artigo 14, I, da LRF) ou estar acompanhada de medidas de compensação; e, além disso,  o projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente do benefício fiscal (artigo 165, § 6º, da Constituição).

 


[1] CONTI, José Maurício. Federalismo fiscal e fundos de participação. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p. 10-20.

[2] HORVATH, Estevão; PINHEIRO, Hendrick. Federalismo e Guerra Fiscal do ICMS: cortesia com chapéu alheio. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p . 50.

[3] CONTI, José Maurício. O planejamento orçamentário da administração pública no Brasil – 1. ed. – São Paulo: Blucher Open Access, 2020, p. 36.

[4] Conferir BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP). 9ª ed. Brasília: 2022, p. 61.

[5] Segundo o STF, o art. 113 do ADCT, que demanda estudo de impacto orçamentário e financeiro para a criação de despesas obrigatórias e renúncias de receita, aplica-se a todos o entes da Federação (cf. ADI 6.303, rel. min. Luís Roberto Barroso, DJ 18/03/2022)

[6] Em relação da benefícios fiscais relacionados ao ICMS, por exemplo, exige-se prévia autorização mediante convênio interfederativo celebrado no âmbito do Confaz (art. 155, § 2.º, XII, g, da Constituição).

[7] Cf. ADI 2.238, rel. min. Alexandre de Moraes, DJ 15/09/2020, p. 59-60.

[8] Segundo o STF, o art. 113 do ADCT aplica-se a todos o entes da Federação (cf. ADI 6.303, rel. min. Luís Roberto Barroso, DJ 18/03/2022)

Autores

  • é procurador do Estado do Paraná, doutor em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e em Regulação Financeira e Comercial pela London School of Economics and Political Science (LSE).

  • é doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP), mestre em Direitos Humanos (UFMS), com extensão em federalismo comparado pela Universität Innsbruck, e procurador do estado do Mato Grosso do Sul.

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