Direito da Insolvência

Gestor fiduciário e conflito de interesses no PL 03/2024: tergiversando a boa-fé objetiva

Autores

  • Jorge Tosta

    é doutor em Direito pela PUC-SP. Juiz Substituto em 2º Grau no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) atuando na 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial.

  • Leonardo Fernandes dos Santos

    é mestre em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo). Juiz de Direito designado para a 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo.

15 de fevereiro de 2024, 8h00

No início deste ano foi amplamente noticiado o envio, pela Presidência da República, do projeto de lei 03/2024, cujo objetivo autodeclarado seria o de acelerar os processos de falência.

A mensagem encaminhando o referido projeto foi enviada à Câmara dos Deputados em regime de urgência constitucional, tolhendo, portanto, a oportunidade de um debate mais aprofundado sobre as premissas do projeto, mormente considerando o fato de que sua elaboração foi, do ponto de vista da publicidade, um tanto quanto restrita, somente vindo a público o teor do texto após o seu envio àquela Casa Legislativa.

Já tivemos a oportunidade de abordar uma visão geral a respeito do PL 03/2024, em texto em coautoria com a doutora Clarissa Somesom Tauk [1].

Igualmente, excelente artigo a respeito do tema foi elaborado pela doutora Maria Rita Rebello Pinho Dias, juíza titular da 3ª Vara de Falências e Recuperação Judiciais de São Paulo, e pelo desembargador Cesar Ciampolini Netto, integrante de uma das Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo [2].

Conflito e interesses
Neste artigo, buscaremos esmiuçar um ponto específico do projeto de lei referente ao eventual conflito de interesses entre o gestor fiduciário e seus eleitores-credores e a ausência, no projeto, de qualquer mecanismo eficaz para combater este tipo de conflito.

Jorge Tosta

Apesar da falha técnica do projeto de deixar de conceituar o que seria o gestor fiduciário, simplesmente lhe atribuindo funções, pode-se dizer que o gestor fiduciário, nos moldes propostos, atuaria como uma espécie de administrador judicial eleito pela assembleia geral de credores (AGC).

O primeiro problema se encontra exatamente neste ponto, uma vez que o projeto (artigos 35,§1º e 42, caput, do projeto) permite que o gestor seja eleito levando em consideração tão somente o valor dos créditos sujeitos ao procedimento falimentar, sem considerar, como ocorre com a votação do plano de recuperação judicial, a classe dos credores.

Vê-se, portanto, que, a partir do projeto, basta que, por exemplo, um credor possua cinquenta por cento dos créditos mais um para que possa, a partir de então, escolher, de maneira praticamente isolada, aquele que ocupará a figura do gestor fiduciário.

O exemplo parece exagerado, mas na prática tem sido comum que instituições financeiras representem valor significativo do passivo concursal, de modo que bastaria eventual união de votos de credores de uma determinada classe, ainda que em números (por cabeça) não expressivos, para que pudessem controlar os rumos do processo falimentar, em detrimento de outros credores e tergiversando o princípio da boa-fé objetiva, o qual pressupõe, entre outras coisas, os deveres anexos de lealdade, transparência e colaboração.

Leonardo Fernando dos Santos

Boa-fé objetiva
Outro ponto a ser observado é que o projeto de lei não permite qualquer controle pelo magistrado dos eventuais conflitos de interesse entre os votantes na AGC e o gestor fiduciário a ser eleito, violando, portanto, a ideia de boa-fé objetiva [3].

Há possibilidade, por exemplo, de que o próprio falido, por interposta pessoa, adquira mediante cessão de crédito valores suficientes para que possa atingir o quórum necessário à eleição do gestor fiduciário, sem que o projeto preveja qualquer forma de controle jurisdicional sobre a escolha do gestor.

E a praxe forense mostra que tal situação é até mesmo comum nos procedimentos falimentares, nos quais o falido busca adquirir créditos visando o encerramento da falência.

Ainda que a redação do projeto preveja a possibilidade de destituição, pelo magistrado, do gestor fiduciário (artigo 31), verifica-se que a disposição é tímida e envolta de conceitos jurídicos indeterminados que podem abrir margem a uma judicialização mais acentuada do processo falimentar, atrasando mais ainda seu encerramento.

Ademais, a consequência da destituição do gestor é a convocação de uma nova assembleia geral de credores para eleger seu substituto (artigo 31, §1º), da qual participarão, como votantes, os mesmos que já elegeram o gestor e na qual poderá ter ocorrido o conflito de interesses.

Mais uma vez, peca a proposta legislativa por uma adequada solução de efetiva governança do processo falimentar, deixando margem a duvidosos interesses e, mais uma vez, atentando contra o princípio da boa-fé objetiva.

Nota-se, portanto, que o projeto possui graves deficiências em relação à adequada governança, eficiência e transparência do processo falimentar, contrariando, inclusive, as justificativas que acompanharam o projeto de lei.

A eleição do gestor, nos moldes propostos, falha de maneira acentuada na prevenção de eventuais conflitos de interesses entre credores e gestor, o que poderá gerar mais judicialização e morosidade, além de danos efetivos aos credores menos qualificados.

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[1] https://www.conjur.com.br/2024-jan-12/gestor-fiduciario-um-retrocesso-necessario/

[2]https://www.conjur.com.br/2024-jan-22/a-profunda-alteracao-ao-procedimento-falimentar-proposta-pelo-pl-3-2024/

[3] Segundo Rosenvald e Cristiano Chaves, a boa-fé objetiva seria uma “confiança adjetivada”. Desse modo: “A boa-fé objetiva pressupõe: (a) uma relação jurídica que ligue duas pessoas, impondo-lhes especiais deveres mútuos de conduta; (b) padrões de comportamento exigíveis do profissional competente, naquilo que se traduz como bônus pater famílias; (c) reunião de condições suficiente para ensejar na outra parte um estado de confiança no negócio celebrado. (in Teoria Geral e Contratos em Espécie, 6ª ed., Editora Jus Podivm, pág. 174/175).

Autores

  • é doutor em Direito pela PUC-SP. Juiz Substituto em 2º Grau no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), atuando na 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial.

  • é mestre em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo). Juiz de Direito designado para a 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo.

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