Opinião

Urgência, debate e democracia: dilema do PL 03/24 sobre falências empresariais

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26 de março de 2024, 12h21

Com o objetivo de “aperfeiçoar o instituto da falência do empresário e da sociedade empresária”, o Projeto de Lei 03/2024 foi encaminhado pela Presidência da República ao Congresso, com pedido de tramitação em regime de urgência constitucional.

Sob a relatoria da deputada Dani Cunha, o PL encontra-se em sua quinta versão e está pautado para votação nesta terça-feira (26/3).

A tramitação do PL em regime de urgência, em teoria, implicaria em limitações quanto a alterações profundas ao texto original. No entanto, mesmo que seu conteúdo realmente demandasse a imposição de rito procedimental de urgência, o que é questionável frente ao conteúdo do projeto, o regime de urgência tornou-se incompatível devido às significativas mudanças apresentadas pela relatoria do projeto.

Vejamos, o PL foi submetido ao Plenário da Câmara dos Deputados em 10/1/2024. A relatora foi designada em 3/2/2024 e apresentou seu primeiro Relatório Substitutivo em 15/3/2024, ou seja, no 42º dia de tramitação, resultando numa alteração profunda e significativa do projeto original.

Nos três dias seguintes, foram apresentadas 49 emendas, 4 destaques que resultaram em quatro versões diferentes do primeiro Relatório Substitutivo apresentado. Até o momento, é de conhecimento público a quinta versão do Substitutivo.

Como inúmeras emendas parlamentares sequer foram analisadas nas versões anteriores, certamente será apresentada a sexta versão do substitutivo, no dia da votação, pautada para hoje.

Tramitação

Tecnicamente, o prazo constitucional de 45 dias para a apreciação de um projeto de lei em regime de urgência constitucional está sendo desrespeitado, posto que foi reduzido a questão de horas, considerando que, a cada momento, nos três dias finais do prazo regimental, uma nova versão do projeto de lei foi apresentada.

mindandi/Freepik

Essa prática, sem dúvida, fere de morte a possibilidade de um debate democrático entre os representantes do povo sobre o projeto de lei tão relevante para a economia nacional, como revela o grande número de emendas parlamentares apresentadas, que totalizam mais de cinco dezenas, todas com o objetivo de corrigir as imperfeições de um projeto de lei surpresa.

Ao violar o princípio fundamental da tramitação legislativa, que é a oportunidade de uma discussão democrática abrangente sobre os projetos de lei, essa prática suscita questionamentos quanto à sua constitucionalidade.

Não se contesta, outrossim, a plena autonomia do Poder Legislativo para realizar debates criteriosos e responsáveis sobre as propostas legislativas, decidindo por sua aprovação ou rejeição. O tempo necessário para discussão de uma proposta é influenciado por diversos fatores, como a agenda das comissões, a conclusão da análise pelos relatores, requerimentos apresentados, entre outros.

No entanto, em nosso ordenamento jurídico, não existem prazos estabelecidos em horas para a análise de projetos de lei. Mesmo as medidas provisórias, que têm vigência inicial de 60 dias, prorrogáveis por mais 60 dias, são submetidas a análises que respeitam o prazo razoável de discussão com a sociedade.

A ausência de oportunidade para discussão enfraquece os pilares da nossa democracia, causando insegurança jurídica. Além disso, essa falta de debate pode ter o efeito oposto ao desejado, já que a insegurança jurídica geralmente é resolvida por meio da intervenção do Poder Judiciário, que é provocado por questionamentos e recursos, o que certamente atrasará a obtenção de soluções rápidas nos processos de recuperação judicial e falência.

Um breve levantamento das principais dificuldades decorrentes da imediata aplicação do PL 3/2024, feita por institutos especializados, revela diversas questões preocupantes. Primeiramente, a ausência de distinção entre casos grandes e os demais pode agravar as distorções existentes.

Além disso, não houve uma análise adequada do impacto que uma mudança tão radical pode causar no sistema como um todo. A escassez de Administradores Judiciais (AJs), especialmente diante do novo rodízio estabelecido (quatro processos de recuperação judicial/falência para cada AJ), representa outra preocupação significativa.

A criação de um mecanismo de quarentena que impede os AJs atuantes atualmente de assumirem novos processos pode resultar em um risco de travamento do sistema.

A falta de tempo adequado previsto na norma de transição para os ajustes à nova realidade dificultará a adaptação dos envolvidos, sem mencionar o impacto que haverá nas ações correlatas em andamento.

A quantidade de trabalho adicional dos cartórios para regularizar a representação processual, que ocorrerá a cada três anos não foi considerado e certamente não trará a tão almejada celeridade. Além disso, em múltiplos processos, os Administradores Judiciais serão substituídos ao longo do ano, o que exigirá dos cartórios mudanças frequentes quanto ao representante legal da massa falida, inclusive nos processos com prazos em curso.

Os institutos demonstram que o impacto direto na substituição dos Administradores Judiciais, em breve levantamento feito com dados públicos disponíveis no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e nos sites dos Tribunais de Justiça Estaduais, sinaliza para a medida da dificuldade a ser enfrentada caso aprovado o PL 3/2024.

Informações sobre processos de falência e administradores judiciais
Dados de 31/01/2024

 

Tribunal* Falências em andamento no Tribunal** AJs cadastrados Média de falências por AJ  Número de AJs segundo PL
(4 processos por AJ)
% aumento (déficit de Ajs)
TJ-SP 5.279 177 30 1.320 646%
TJ-RS 1.610 106 15 403 280%
TJ-PR 920 64 14 230 259%
TJ-SC 558 55 10 140 154%
TJ-MG 553 26 21 138 432%

 

*Informações disponíveis nos sites dos tribunais pesquisados
**Segundo os dados do CNJ – “Justiça em Números” – processos pendentes líquidos

O déficit sinalizado ilustra as profundas dificuldades pelas quais passaremos se não houver atenção dos legisladores para a realidade do dia a dia dos processos judiciais.

Espera-se, com essas ponderações, engrossar as vozes que pretendem sensibilizar nossos parlamentares sobre a necessidade de abrir o debate democrático na tramitação do PL 3/2024.

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