Direito da Insolvência

Consequências do impensado regime de urgência do PL 03/2024

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8 de abril de 2024, 10h48

No último texto desta coluna na ConJur, foram feitas algumas observações a respeito do PL 03/2024, que naquela ocasião havia acabado de ser encaminhado do Executivo para o Congresso.

Ficou demonstrada aqui a preocupação com o chamado gestor fiduciário e o plano de falência. Mas principalmente o regime de urgência imposto pelo governo, que deve ser absolutamente excepcional, o que tem afastado o debate democrático natural do processo legislativo.

Isso é injustificável para a reforma de uma legislação, cuja última modificação relevante ocorreu somente há três anos após amplo debate com os operadores do direito e do mercado.

Ocorre que, passadas poucas semanas, o projeto encaminhado ao Congresso ganhou contornos muito mais amplos dos arquitetados originalmente, a partir das alterações no texto propostas por sua ilustre relatoria.

A intenção original do Executivo, justificadora do regime de urgência, que era tornar mais efetivo o processo falimentar, sofreu uma guinada drástica para alterar elementos essenciais do processo de insolvência, passando a englobar não somente a falência, mas a recuperação judicial.

Após discussões que não ultrapassaram duas semanas, em razão do regime de urgência, o projeto foi aprovado e encaminhado ao Senado.

Spacca

A infinita maioria dos estudiosos do direito empresarial teceu duras críticas ao projeto e a forma como o processo legislativo relâmpago foi conduzido sem que houvesse um debate aprofundado a seu respeito e, mais do que isso, alijando a efetiva participação dos atores da área.

Não poucos juristas chegaram a afirmar que nada de útil foi proposto e que o projeto, se promulgado como se encontra, significará um retrocesso inimaginável no processo de insolvência brasileiro.

Particularmente, ao examinar o projeto aprovado, dá para identificar graves defeitos, mas, ao contrário da já citada infinita maioria que criticou de modo duro e ácido o projeto, também há algumas qualidades.

Pontos de qualidade

Com efeito, segue abaixo alguns pontos de grande qualidade que foram inseridos no projeto original do Executivo.

O primeiro é o carimbo no canto superior direito em que se identifica com absoluta clareza a data do protocolo. Não se pode negar que se trata de um grande avanço na medida em que, antes do processo digital, quantos recursos não foram conhecidos pelo carimbo não ser nítido.

O segundo é o código de barras, logo abaixo, no canto inferior direito também muito bem colocado, demonstrando quão informatizado se encontra o sistema legislativo brasileiro.

Finalmente, o terceiro, mas não menos relevante, a data constante do protocolo: 26/3/2024. Com efeito, este dia é dedicado à santa Lucia Filippini. Realmente, mais do que justa a homenagem feita pela Casa dos Deputados a essa santa que tanto se dedicou a educação de mulheres, em especial das meninas.

No mais, um retrocesso ao texto vigente e a jurisprudência construída por quase 20 anos.

Retrocessos

De fato, a proposta encaminhada ao Senado centrou sua atenção na atuação do administrador judicial e na sua remuneração, apresentando-o como o grande vilão do sistema e razão de sua ineficiência.

Sobre a questão da remuneração, existe legislação em vigor regulando a matéria e os casos em que esta restou violada. Os tribunais tiveram a oportunidade de analisar a questão.

Aliás, em relação a remuneração, esta não é fixada unilateralmente, mas com a garantia do contraditório para as partes e o Ministério Público, podendo as decisões de primeiro grau serem objeto de recurso.

Ou seja, a remuneração do administrador judicial sofre os mesmos controles de qualquer auxiliar do Juízo, com a vantagem de que os limites estão previstos na própria lei.

Assim, se o legislativo quiser alterá-la, pode fazê-la, desde que respeitado o ato jurídico e a coisa julgada, em nome da segurança jurídica.

Aliás, como já escrevi tratando do sistema de custas no estado de São Paulo, o fundamental é que tenhamos plena consciência que a qualidade do serviço está diretamente relacionada a contraprestação financeira. Não se queira no futuro pelo preço de um Chevette ter a qualidade de uma Cayenne.

Mandato do administrador judicial

Se o processo não se encerrar no prazo fixado pelo PL, o administrador judicial não somente será substituído como também será punido com a proibição de nova nomeação pelo prazo nele fixado.

Em relação ao mandato, parece estranho o administrador judicial perder o cargo porque o processo não se encerrou no prazo sonhado pela proposta, vez que, na infinita maioria das hipóteses, o mesmo não tem controle algum sobre o seu cumprimento.

A tese legislativa é que o administrador judicial teria interesse e vantagem na demora do processo. Mas a remuneração é fixada em percentual sobre os créditos concursais (na recuperação judicial) e sobre a venda dos ativos (no caso da falência), sem qualquer vinculação com a duração do processo.

Desta maneira, o resultado é diametralmente oposto ao afirmado: quanto mais rápido o processo, maior a remuneração proporcional tempo/ganho do administrador judicial.

Na recuperação judicial, as causas do atraso são as sucessivas suspensões das assembleias de credores, nas quais, por óbvio, o administrador judicial não vota, e a recente exigência de CND como condição para homologar o plano, tema sobre o qual ele também não exerce qualquer ingerência.

Não há dúvida que, no mundo ideal, uma recuperação judicial deveria se encerrar em 30 meses. Todavia, existem prazos a serem cumpridos, as decisões judiciais estão sujeitas a recursos e a aprovação ou não do plano depende da vontade dos credores, temas que fogem, repita-se, do controle do administrador judicial.

No caso da falência, o atraso é causado, por exemplo, pelas sucessivas tentativas de venda infrutíferas (sem qualquer interferência do administrador judicial) e pela demora natural no julgamento das habilitações (aliás, se o prazo decadencial para a habilitação é de três anos, não faz o menor sentido se esperar que o processo falimentar inteiro termine nesse prazo).

Mais do que isso, no exercício da função, o administrador judicial deve, se estiverem presentes os requisitos legais, ingressar com incidentes de desconsideração de personalidade jurídica, demandas revocatórias e condenatórias em benefício da massa.

Todas essas demandas duram muito mais de três anos e tal fato é de conhecimento pleno por quem tem o mínimo conhecimento do sistema processual civil. Ou seja, por exercer seu dever, perderá o mandato. Além disso, não podemos esquecer das reservas para que se tornem passíveis de pagamento dependem do julgamento em questão.

Aliás, as sucessivas mudanças de administrador judicial em razão do decurso do prazo conduziriam não somente a redução da efetividade (é natural que a substituição conduz a paralisação do processo até que o novo tome pleno conhecimento do caso), mas também a elevação do custo do processo, vez que o novo administrador judicial teria que ser remunerado, independente daquilo que já foi pago ao anterior que, obviamente, não pode ter que devolver qualquer valor se não deu causa a extrapolação do tempo de duração do processo.

Aliás, para arrematar, pela literalidade do texto, em razão do decurso do prazo, ao qual não deu causa, o administrador judicial ficaria impedido de nova nomeação, consoante proposta legislativa. Em síntese, o texto legislativo impede o indivíduo de exercer sua profissão por fato que não é da sua responsabilidade.

Com todo o respeito, o nosso saudoso Stanislaw Ponte Preta tinha que estar vivo ….

A verdade é que, mais uma vez, corremos o risco de nos deparar com duas consequências cada vez mais comuns no país.

A primeira, a necessidade do ativismo judicial para corrigir os vícios redacionais das leis.

A segunda, a necessidade dos juízes ignorarem o texto legislativo em razão da sua inutilidade e descompasso com a realidade.

Ou seja, se o texto entrar em vigor na forma como se encontra, teremos um processo mais custoso e menos eficiente, com a necessidade de forte intervenção judicial para afastar as distorções propostas, tudo em razão um regime de urgência flagrantemente inconstitucional.

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