Opinião

Os advogados e o poder extralegal dos juízes

Autor

  • Luciano Feldens

    é advogado sócio do escritório Feldens Advogados especialista mestre e doutor em Direito Constitucional e professor de Direito e Processo Penal.

11 de fevereiro de 2024, 12h15

Em operação policial recentemente deflagrada, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes determinou, entre outras medidas restritivas impostas aos investigados, “a proibição de manter contato com os demais investigados, inclusive por meio de advogados. Parece pesar uma dúvida sobre o real alcance da proibição: se ela afetaria os contatos entre o advogado de um investigado e outro investigado – este na presença ou com o conhecimento de seu advogado, pressupõe-se, em razão da ética profissional – ou se, além disso, atingiria contatos dos próprios advogados entre si. Seja como for, a diferença é apenas de intensidade: a limitação judicial não tem base legal, contraria a Constituição e desafia até mesmo o senso prático das coisas.

O quadro geral
Para termos uma dimensão das consequências dessa decisão, proponho abandonarmos o caso concreto – um caso que por todas suas nuances se apresenta, de A a Z, como uma situação que coloca à prova os limites do sistema, senão o próprio sistema – e projetarmos a aplicabilidade desse modelo decisório ao universo dos casos criminais, balizando a ação dos mais de 13 mil juízes brasileiros (considerando que o precedente vem do STF, não é desconsiderável que isso venha a ocorrer, logo ali na frente). Se o panorama assusta, não podemos, professores e advogados, nos demitir de nossas funções: devemos trazer o assunto à mesa, jogar luz sobre esse modelo decisório, escrutinar seus fundamentos e perquirir sobre a fonte do poder do qual emana.

Do ponto de vista prático, a replicação desse modelo de limitação judicial da atividade profissional criaria complicações que iriam desde sua operacionalidade até sua inocuidade. Afinal, agora o Estado passaria a monitorar o convívio profissional (em escritórios, antessalas de audiências ou tribunais) ou mesmo social (almoços, jantares, congressos) dos advogados? O investigado X, casuisticamente médico do advogado do investigado Y, poderá seguir tratando-o? E como se obedeceria a proibição na situação de dois ou mais investigados (por exemplo, pai e filho) representados pelo mesmo advogado? Nesta hipótese, a restrição ainda produziria uma desigualdade processual entre investigados que possuem uma representação profissional comum e aqueles que não a têm: a restrição pesaria apenas sobre parte dos investigados.

Direito de defesa
Mas, ainda que desconsideradas essas questões nada irrelevantes, é no ambiente jurídico onde os problemas se acentuam. E eles são diversos. Primeiro, porque desde o momento em que encilhamos o Leviatã, optando pelo caminho da civilização, fixamos que o poder não é absoluto. E que esse poder – agora dividido – estaria limitado, essencialmente, pelos direitos individuais. Segundo, porque em matéria penal eventuais restrições a direitos e a correlatas prerrogativas profissionais são matérias reservadas à lei; não podem ser criadas judicialmente. E terceiro, porque lei com esse propósito, que até então não existe, apenas poderia ser editada com respeito ao conteúdo elementar dos direitos e garantias fundamentais implicados.

Neste momento, precisamos convidar para entrar em cena o direito de defesa, de cuja essência se deriva, entre tantos outros, o legítimo direito de investigados e advogados de silenciarem diante do Estado, de comunicarem-se reservadamente – ou seja, longe dos ouvidos das autoridades – e, em sendo o caso, de alinhar uma estratégia de resistência à ação persecutória do Estado, no que designamos direito de estratégia, um corolário da liberdade a da independência profissional legal e constitucionalmente asseguradas ao advogado [1].

A advocacia é atividade com significativo nível de regulação. Observadas as normas de orientação do exercício profissional (Constituição, Estatuto e Código de Ética), a defesa está autorizada a desenvolver em juízo – ou perante o órgão de investigação – uma atuação estratégica. Eventual postura de oposição pacífica e discreta à ação muitas vezes ostensiva e surpreendente (e até mesmo violenta) do Estado talvez venha a ser, naquele momento, o conteúdo mínimo de uma defesa em face de um Estado que não é pequeno, que não é dócil, que detém o monopólio da força e que se apresenta, no contexto de “operações policiais”, na fisionomia de diversas instituições investidas de poder, muitas vezes unidas em forças-tarefa.

O poder extralegal dos juízes
Abramos nossos olhos: ao aceitarmos a difusão desse modelo decisório, estaremos dando um largo passo para que se passe a considerar movimentos defensivos dessa natureza como “embaraço” da investigação – logo, crime de obstrução de Justiça, tipificado em lei. Será fundamental que o STF se manifeste a respeito, como já prenunciara que assim ocorreria o ministro Gilmar Mendes (STF – HC 141.478-MC, relator: ministro Gilmar Mendes, j. 5/4/2017), oportunidade em que o tribunal poderá reafirmar: “compreende-se no direito de defesa estabelecerem os corréus estratégias de defesa” (STF – HC 86.864 MC, relator: ministro Carlos Velloso, j. 20/10/2005).

Spacca

Sob a perspectiva da percepção da sociedade, é bem possível que não haja consenso acerca do perímetro da liberdade de ação dos advogados, alguma ou outra vez figurados como meros entraves ao poder penal do Estado. Descontado o adjetivo, e o preconceito que o cultiva, é isso mesmo o que devemos ser diante do abuso de poder. Do contrário, seremos substituídos por um critério de eficiência diretamente associado ao incremento do poder extralegal dos juízes, em relação ao qual, a propósito, a sociedade também tem manifestado suas desconfianças.

 

Sobre isso, ainda valeria uma palavra final: é inegável que uma maior restrição de direitos representaria um ganho estatístico de condenações criminais. No exemplo limite da tortura, física ou moral, ninguém duvidaria que pessoas sujeitas a tais circunstâncias estariam mais suscetíveis de confessar a prática de crimes, mesmo que não os tenham cometido – assim como pessoas desassistidas juridicamente estão mais sujeitas ao infortúnio em julgamentos criminais (aqui, uma breve lembrança dos pobres de tão pretos e pretos de tão pobres [2]). Ocorre que em similar proporção estaríamos elevando o índice de condenações não apenas injustas, mas degradantes à condição humana.

O ponto está aqui: ou reconhecemos o investigado como sujeito de direitos e a advocacia como função essencial à Justiça, na exata configuração que lhes dão a Constituição e a lei, ou passaremos gradativamente a ceder ao avanço de um poder penal extralegal, ditado a golpes de sentença, oferecendo contexto de realidade à hipótese daquela famosa produção hollywoodiana: “Afinal, o que significam 10 mil advogados acorrentados no fundo do mar?”.  E o interlocutor responde: “um bom começo”.


[1] FELDENS, Luciano. O Direito de Defesa – A Tutela Jurídica da Liberdade na Perspectiva da Defesa Penal Efetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 4ª ed. 2024, pp. 179-183.

[2] Expressão contextual e simbolicamente utilizada por Reinaldo Azevedo, em comentário crítico à execução de políticas de segurança que acabam apontando sua ação a grupos vulneráveis (reinaldoazevedo.blogosfera.uol.com.br/2019/08/13/0-e-da-coisa). Adaptação, também, da letra de Haiti, de Caetano Veloso.

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