Restrição a comunicação de advogados é equívoco grave, dizem criminalistas
10 de fevereiro de 2024, 9h52
O trecho da decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que proíbe o contato entre investigados por tentativa de golpe de Estado, “inclusive por meio de seus advogados”, foi fortemente criticado pelos criminalistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
A restrição consta na decisão de quinta-feira (8/2), em que Alexandre autorizou ação da Polícia Federal e medidas cautelares contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), militares e ex-ministros de Estado suspeitos de planejar um golpe.
Em um trecho, Alexandre afirmou: “A proibição de manter contato com os demais investigados, inclusive por meio de seus advogados, é necessária para garantia da regular colheita de provas durante a investigação, sem que haja interferência no processo investigativo por parte dos mencionados investigados”.
A determinação do magistrado gerou reações imediatas da advocacia. O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Beto Simonetti, disse que advogados não podem ser proibidos de interagir, “nem confundidos com seus clientes”.
“A OAB apresentou ao STF, na manhã desta sexta-feira, uma solicitação para que seja derrubada a proibição de comunicação entre advogados. Tomamos essa medida porque é necessário assegurar as prerrogativas. Advogados não podem ser proibidos de interagir, nem confundidos com seus clientes.”
No pedido de habilitação e acesso aos autos enviado ao Supremo, a OAB afirma que a decisão representa “violação flagrante de prerrogativa estrutural da advocacia” e pressupõe “genericamente” que as defesas atuarão “à margem da legalidade”.
“A medida cautelar não pode, em nenhuma hipótese, atingir o direito de defesa dos investigados, tampouco ferir de morte a atuação profissional dos seus advogados”, diz a entidade.
A Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) enviou manifestação ao STF pedindo para Alexandre rever o trecho da decisão. O documento é assinado por Sheyner Asfóra, presidente da diretoria nacional da entidade.
“Trata-se de um flagrante desrespeito ao exercício profissional da advocacia, já que não se pode impedir a comunicação entre advogados, nem presumir que ela seja de cunho embaraçoso às investigações”, diz o documento.
“Ademais, é importante informar que as medidas cautelares podem recair apenas sobre as pessoas investigadas, o que não é o caso de seus advogados — profissionais que nem sequer estão sendo alvo de investigação”, prossegue.
“Uma infelicidade”
O advogado e professor da USP Pierpaolo Cruz Bottini disse compreender a necessidade de preservar as investigações. No entanto, defendeu ele, o trecho sobre a comunicação entre advogados precisa ser revisto.
“Proibir conversas entre profissionais que não são investigados afeta o direito de defesa e as prerrogativas dos advogados. Esse trecho da decisão merece ser revisto, com urgência.”
Para ele, também não faz sentido proibir a comunicação só entre os advogados. “Por que não proibir os médicos (dos investigados), as secretárias? Por que apenas os advogados não podem?”, questionou.
Daniella Meggiolaro afirma que a decisão é dúbia e precisa ser melhor explicada. “Parece que ele não proíbe propriamente que os advogados se comuniquem entre si. Se for isso, é de fato um absurdo e cerceia a atividade e as prerrogativas profissionais.”
De acordo com ela, uma interpretação possível é a de que o ministro pretende “impedir que os advogados levem recados de seus clientes a outros investigados”. Ela destaca, no entanto, que mesmo que os advogados decidissem combinar defesas, isso não poderia ser vedado.
Celso Vilardi, por sua vez, diz que o trecho envolvendo os causídicos é “uma infelicidade” e confunde advogados com clientes.
“Um erro. Uma infelicidade. Medida que não deve prevalecer. E, o que é pior, confunde os advogados com seus clientes.”
Para André Luís Callegari, os advogados “não são investigados”. Por isso, não poderia haver proibição de qualquer tipo de conversa entre eles. “Além disso, há o pleno direito ao exercício da advocacia, que consiste na livre comunicação entre clientes e advogados.”
Medida cautelar indireta
Segundo Priscila Pamela, a decisão impõe, ainda que indiretamente, uma medida cautelar contra os advogados dos investigados.
“A decisão fere o princípio da ampla defesa e as prerrogativas da defesa. Se os réus podem até mentir em seus interrogatórios, como sustentar que não podem se comunicar? Essa premissa está equivocada. No mais, como serão monitorados os advogados? Os advogados são colegas, amigos e conversam entre si. Então quer dizer que se um conversar com o outro é para levar recado e combinar versões sobre o caso? Isso é perigoso e fere muitas prerrogativas.”
“Haverá um monitoramento indireto de alguma forma. Caso contrário, como será possível atestar que estão combinando versões?”, conclui Priscila.
Paula Sion concorda: “No Brasil não existe crime de perjúrio. Se é direito do acusado em sua defesa ficar em silêncio ou apresentar a versão que bem entender sobre os fatos, sem prestar compromisso com a verdade, proibir o contato entre os advogados dos acusados fere, sem dúvida, o direito de defesa e o livre exercício da advocacia”.
Inversão de narrativa
Para o constitucionalista Lenio Streck, as críticas direcionadas ao ministro Alexandre partem de uma “inversão discursiva”, deixando em segundo plano ações do governo anterior que buscavam minar a democracia.
“Para além da defesa das prerrogativas advocatícias, o que me perturba é o risco de uma inversão discursiva, em que o ponto central (tentativa de golpe e tudo o que o ex-presidente fez para minar a democracia) fique relegado a um ponto secundário. A contradição principal se transforma em contradição secundária. O vilão se transforma em vítima”, diz Lenio.
Para o constitucionalista, a “inversão discursiva” cai em uma armadilha bastante propagada por setores bolsonaristas, que tentam transformar pessoas “fundamentais para o salvamento da democracia”, que é tarefa enérgica, em integrantes de uma espécie de “ditadura de toga”.
“Não me parece adequada essa comparação feita em alguns veículos de comunicação, redes sociais e até mesmo em círculos advocatícios. Em síntese, não é a mesma coisa ‘golpe e golpistas’ e ‘STF e decisões Alexandre de Moraes’. Mas não é, mesmo. Os democratas não podemos cair em qualquer armadilha discursiva.”
“Sou um intransigente defensor da democracia e das prerrogativas dos advogados. Minha história mostra isso. Meu receio é exatamente essa inversão discursiva. O principal fica obscurecido pelo secundário. Esquece se a razão ou as razões que levaram a tudo isso”, afirma Lenio.
O constitucionalista recorre à literatura para exemplificar o que diz. Na peça Henrique IV, de Shakespeare, o filho de Henrique IV agride o Lorde Chefe da Corte da Inglaterra. Como consequência, o juiz que foi esbofeteado prende o príncipe.
Mais adiante na obra, o agressor, agora já rei, reencontra o juiz e diz não ter esquecido da prisão. O Lorde Chefe da Corte da Inglaterra, então, explica: se o juiz representa o rei e o Estado, a agressão foi também, e principalmente, contra o rei e o Estado.
“Shakespeare talvez tenha compreendido melhor o papel institucional de um Poder de Estado do que muita gente hoje. Shakespeare explica melhor que os juristas os ataques ao STF. O príncipe não esbofeteou o lorde juiz. Esbofeteou o reino da Inglaterra. O resto é muito simples. Muito”, conclui Lenio.
Clique aqui para ler o pedido da OAB
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