busca da vocação

'Exame nacional vai traçar perfil diferenciado para a magistratura brasileira'

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9 de fevereiro de 2024, 18h08

‘Criado pelo Conselho Nacional de Justiça no ano passado, o Exame Nacional da Magistratura (Enam) permitirá a uniformização do conteúdo técnico de que os juízes necessitam e o aumento da transparência da seleção para o cargo público. Além disso, com o Enam, será possível traçar um perfil diferenciado para o magistrado brasileiro.

Os aprovados no exame serão mais do que aqueles que desejam ter um emprego seguro e com estabilidade. A busca será pelos vocacionados ao exercício de uma função que carrega um ônus de conduta e comportamento. E isso sem impedir que os tribunais, em seus próprios concursos, refinem o processo para moldar os aprovados de acordo com as realidades locais.

Esse diagnóstico é de Mauro Campbell, ministro do Superior Tribunal de Justiça e diretor-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), a entidade responsável por organizar a primeira edição do exame.

Marcado para o dia 14 de abril, o Enam já tem as inscrições abertas e será composto de 80 perguntas de Direito Constitucional, Administrativo, Processual Civil, Civil, Empresarial e Penal, noções gerais de Direito, formação humanística e direitos humanos.

A prova será eliminatória e não classificatória. Os candidatos que acertarem pelo menos 70% das questões estarão habilitados a prestar concursos para os diversos tribunais brasileiros. Por determinação do CNJ, negros e indígenas terão percentuais próprios de classificação.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Campbell contou que a prova colocará os candidatos diante de casos da vida prática dos juízes, inclusive a necessidade sistêmica de manter a estabilidade e a previsibilidade da jurisprudência, o que evita oferecer ao cidadão falsas expectativas.

“A força da magistratura reside, primeiro, na capacidade moral do magistrado. Depois, no conteúdo técnico dele. Esse fato também é um dos elementos considerados pelo ministro Roberto Barroso (presidente do STF e do CNJ) para que tracemos, isonomicamente, um perfil diferenciado para a magistratura brasileira.”

Leia a seguir a entrevista completa:

ConJur — O que podemos esperar da primeira edição desse novo concurso?
Mauro Campbell — Como diretor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, um dos meus deveres de ofício é tratar de um acordo de cooperação técnica com as demais escolas de magistrados do mundo inteiro. Eles vêm aqui e eu vou até essas escolas também. E eu posso assegurar à população brasileira que o Brasil tem o melhor quadro de juízas e juízes do mundo. A começar pelo fato inexorável e incontestável de que nenhum país civilizado tem 80 milhões de processos em tramitação.

Por outro lado, nós temos a situação ainda de uma certa recalcitrância das instâncias ordinárias de cultivar um sistema de precedentes e, portanto, serem ciosas e conscientes de que, seguindo os precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho e do Superior Tribunal Militar, nós teremos, certamente, um risco menor de gerar falsas expectativas para o jurisdicionado, sobretudo o hipossuficiente.

Então, o Exame Nacional buscará, primeiro, uniformizar o conteúdo técnico que os juízes precisam ter em todos os ramos do Direito, em todo o país. E aí se pode, talvez, deixar para que os tribunais, regionalmente, façam os ajustes que queiram para moldar o perfil daquele juiz para a região onde ele vai atuar. Certamente o juiz que vai atuar no interior do Amazonas vai ter o mesmo conhecimento técnico, preambular, do juiz que vai atuar em São Paulo ou no Rio Grande do Sul, mas o Tribunal de Justiça poderá incluir disciplinas ou conteúdos para as provas no Amazonas, distintos, em razão das adversidades ainda existentes no Amazonas. O segundo ponto é a transparência.

ConJur — De que maneira?
Mauro Campbell — A força da magistratura reside, primeiro, na capacidade moral do magistrado. Depois, no conteúdo técnico dele. Esse fato também é um dos elementos considerados pelo ministro Roberto Barroso para que tracemos, isonomicamente, um perfil diferenciado para a magistratura brasileira. Com um realce muito importante: o Enam não vem para consertar nada. Nós não estamos a afirmar que há algo de errado nisso. Nós estamos criando uma nova etapa para, aí, sim, buscarmos uma transição para um perfil de magistrados distintos.

ConJur — Por que isso é necessário?
Mauro Campbell — O concurso público, como é posto, faz com que o candidato busque um emprego seguro, e não o exercício de um cargo de juiz de Direito ou de juíza de Direito, que carrega um ônus público diferente de qualquer outro, que vai exigir dele uma conduta pessoal, moral, hábitos diferentes, para que ele siga angariando cada vez mais respeito e confiança da população. Se ele conseguir mudar o perfil dele, repito, e tornar-se um cultivador de precedentes, ele fará ainda um plus. Fará com que as ações e as demandas judiciais decresçam na medida em que não mais poderão desafiar e nem buscar no Judiciário a solução daquilo que já foi solucionado há muito tempo.

ConJur — Esse concurso é uma bandeira antiga do ministro Barroso, para quem o objetivo é valorizar o raciocínio, a resolução de problemas e a vocação para a magistratura. Como essa parte mais prática e menos teórica será valorizada?
Mauro Campbell — Exatamente na forma como as questões serão elaboradas. O conteúdo delas será formado por casos existentes na vida prática, com os quais nós, juízes, nos deparamos cotidianamente. E aí as alternativas serão postas. Ou seja, serão problemas que naturalmente, no exercício da jurisdição, o magistrado terá de enfrentar. E aí, sim, saímos um pouco da mera memorização que o coach determina.

Note que, a rigor, não se está inventando a roda. Nós temos vários países pelo mundo afora em que o processo de formação do magistrado é muito mais delongado. O que nós vamos fazer preambularmente, eles fazem com mais tempo e com mais provas, exames e cursos, para que só ao fim e ao cabo o magistrado tenha a capacidade de ter uma autonomia julgadora. Como é o caso da França, em que membros do Ministério Público e da magistratura vão para a mesma escola e têm várias etapas a cumprir. Isso é algo a se pensar mais adiante. E, lembremos, a França, por exemplo, tem muito mais juízes do que o Brasil, considerando a população francesa.

ConJur — Em quanto tempo esses ganhos práticos poderão ser vistos pela população?
Mauro Campbell — A resposta absoluta a esse projeto do ministro Barroso e do Conselho Nacional de Justiça, delegado à Enfam, é que, seguramente, nos próximos dez anos tenhamos já um reflexo mais candente, efetivo, retilíneo e honesto daquilo que está sendo hoje essa pré-seleção. Nós já estamos com mais de seis mil inscritos em dois dias. Isso dá uma demonstração da confiabilidade que os candidatos ao exame estão lançando nesse projeto.

ConJur — Um concurso como esse tem potencial para minimizar os riscos de manipulação e favorecimento a oligarquias judiciais locais?
Mauro Campbell — O bacharel será certificado de forma absolutamente isonômica para qualquer concurso que acesse a magistratura desse país. Então, seguramente, onde eventualmente estiver ocorrendo ainda situações como tais postas aqui, isso vai cair por terra na medida em que, aqui na Enfam e na FGV (banca que vai aplicar a prova), com toda a certificação e o controle que nós temos, não há a mais remota possibilidade de haver qualquer tipo de fraude dessa natureza.

ConJur — O concurso será aplicado simultaneamente nas capitais brasileiras. Como a Enfam encara esse desafio logístico?
Mauro Campbell — O ministro Barroso, a certa altura, lá em dezembro, quando terminaram os trabalhos da comissão que estudava essa iniciativa, ele me perguntou se eu conseguiria colocar o concurso na praça até abril deste ano. E eu assegurei a ele que sim. A Enfam tem um quadro muito diminuto de servidores, mas a prova cabal da qualificação está no fato de que no dia 14 de abril, em todas as capitais deste país, nós teremos o primeiro exame nacional da magistratura. É um desafio, a meu sentir, gratificantemente vencido.

Se não fosse a colaboração dos 27 Tribunais de Justiça do Brasil, o concurso não se realizaria, porque nós temos as comissões que vão certificar, quando necessário, os candidatos lá na origem. E nós temos uma resolução do CNJ, recém-alterada, que deu nova feição a isso. Já baixei uma recomendação contatando pessoalmente cada presidente de Tribunal de Justiça, sabendo das dificuldades de gestão deles, para não criar uma outra dificuldade. E eles estão acreditando. Já há tribunais que analisam a possibilidade de suplantar o provão eliminatório e ir já para as provas objetivas.

ConJur — O concurso vai tratar de diversos temas pré-definidos pelo CNJ. Esses temas representam bem tudo o que um magistrado precisa saber?
Mauro Campbell — Na minha concepção, dois desses temas — formação humanística e direitos humanos — não vão se circunscrever às questões respectivas. Eles vão contaminar todo o concurso. Para quê? É preciso contaminar todas as perguntas, os problemas, com essa convicção de que nós não estamos selecionando servidores públicos qualificados somente. Nós estamos selecionando juízes. E quem se habilita a se submeter ao exame tem de ter isso em consideração.

ConJur — Por tudo o que já foi dito e pelas transformações pelas quais o Brasil vem passando, com a criação de uma cultura de precedentes, fica clara a necessidade de mudança de mentalidade dos atores do sistema judicial, a magistratura inclusive. Como diretor da Enfam, como o senhor avalia essa evolução?
Mauro Campbell — Neste momento, nós estamos com 95 magistrados aqui, na sala de aula, que acabaram de tomar posse e não sabem nem a comarca que vão assumir ainda. Desde que assumi a direção da escola, o curso de formação é inaugurado por mim. Eu procuro estimular esses jovens e essas jovens para que primeiro compreendam que aqui estão para começar o molde de construção de um juiz. Eles já são juízes, mas com experiência nenhuma. Nenhuma. Eu faço questão de, pessoalmente, estar aqui com eles e tratar diretamente de temas muito cotidianos.

ConJur — Quais temas?
Mauro Campbell — Entre eles, postura, conduta, falar do recato do magistrado, do cuidado com redes sociais, da formação absoluta, de que ele não pode ser protagonista de problemas. Ele é um sujeito que vai resolver os problemas. E não de uma forma rigorosa, mas com um rigor técnico. Ele tem de ser sereno. Ele não precisa ser um fiscalista, nem um garantista, porque se ele for taxado, ele perdeu o equilíbrio. Basta que ele tenha rigor técnico, e ele vai buscar a virtude no meio disso. E falando coisas muito cotidianas.

Eu digo a eles para observarem quando voltarem para casa, no almoço de domingo, quando surgir algum tema que esteja na mídia brasileira. Todos vão falar: “O fulano é o juiz”. “Fulano, qual é a sua opinião?”. E todos vão silenciar. Por esse motivo, sua palavra tem um peso diferenciado. Então, por favor, cuidado com o que vocês falam e onde vocês falam. São coisas basilares.

ConJur — E sobre os precedentes?
Mauro Campbell — Eu explico o quanto é deficitária essa relação para a imensa maioria dos jurisdicionados que vão receber o serviço que ele presta se ele não seguir precedentes. Porque às vezes há uma súmula editada para resolver uma questão, mas na sentença ele defende uma tese de doutorado dele que contraria tudo isso. Isso acontece no Brasil. E ele publica isso, dá entrevista, aulas e corre o mundo falando da bela sentença que ele deu, contra tudo o que se fala nos tribunais superiores. Só para, anos mais tarde, o tribunal superior cassar essa sentença. E aí temos de ver se conseguimos reparar os danos causados. A capacidade que ele terá de franquear a ocorrência de problemas será diminuta se ele seguir os manuais. E também dou exemplo próprio, inserindo-se na comunidade onde ele vai atuar.

ConJur — Estando presencialmente na vara, por exemplo…
Mauro Campbell — Não seja um juiz TQQ — um juiz só de terça, quarta e quinta. Quem está falando aqui nunca foi. Eu não sou hoje, e eu nunca fui aos 22 anos, promotor de Justiça TQQ. É resolver conflitos e mudar o estado de coisas erradas da comarca, com as decisões. E, portanto, é dar decisões exequíveis. Não decisões em metaverso de um mundo sem contexto real com o que você está lidando na sua comarca. Que você tenha absoluta convicção e noção do efeito econômico e social da sua decisão, para não fazer com que chegue ao Superior Tribunal de Justiça um processo com cifras trilionárias porque houve um juiz despachante, não alguém que foi um resolvedor de conflitos.

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