Opinião

Quem corrigirá o corregedor? Da impossibilidade do controle administrativo da jurisprudência

Autor

  • Marcos Neves Fava

    é juiz do Trabalho titular da 1ª Vara de Vitória da Conquista (BA) no TRT-5 mestre e doutor em Direito do Trabalho pela USP e professor da Faculdade de Direito da FGV-SP.

17 de abril de 2024, 17h17

O corregedor nacional de Justiça acaba de determinar aos tribunais do trabalho que indiquem “informações pormenorizadas” sobre as decisões proferidas contra determinada empresa brasileira.

Deu-se, a decisão, no âmbito de um “pedido de providências” (810-62.2024.2.00.0000) em que uma corretora requereu que o CNJ intervenha para “assegurar a aderência dos TRTs às decisões do STF” com a “emissão de orientações aos tribunais”.

Ler o pedido causaria surpresa a quem saiba que o sistema judiciário brasileiro ampara a liberdade de convicção do juiz, o que não deixa espaço para “orientação aos tribunais” em matérias de decisão.

A surpresa está na ausência de rejeição liminar dessa pretensão.

Existe um sólido arcabouço, indispensável para assegurar liberdade na jurisdição, que vai desde as garantias constitucionais da inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos, passa pelas vedações de atividades estranhas à magistratura, até chegar à proibição de punição dos juízes por suas decisões. Esta regra, contida na Loman desde 1979, literalmente fixa:

“Art. 41 – Salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir”.

Quanto às decisões com excesso de linguagem, o STF está a tratar, tendo deferido cautelar para sustar o andamento de processos que envolvem indenização do Estado por situações desse jaez, a ADPF 774.

A norma da Lei Orgânica veda o crime de hermenêutica, ideia tão antiga que foi combatida até por Rui Barbosa:

“Para fazer do magistrado uma impotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o Juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos. Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo, para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortesã. Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do Direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema dos recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo. (…)” [1].

Observe-se que a regra não excepciona a existência de precedentes, de “tendências” do STF ou de aderência ao que quer que seja. O juiz é absolutamente livre para julgar, exigindo a Constituição apenas que ele fundamente (artigo 93, X) suas decisões e não pode ser punido por elas.

O sistema recursal faz o resto: apara, corrige, revisa.

Para os casos de falta de aderência — não a uma ‘tendência’, como se cogita equivocadamente hoje em dia, mas real aderência aos precedentes vinculantes — existem remédios urgentes, como as reclamações constitucionais.

Nem atuação administrativa, nem poder disciplinar

O tema versado pelo corregedor não está, tampouco, no âmbito da gestão administrativa ou financeira do Judiciário, função importante do Conselho Nacional de Justiça, segundo o artigo 103-B, § 4º:

“Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”.

Nem, nem.

Nem é atuação administrativa, nem poder disciplinar.

Ninguém dispõe de um mecanismo de uniformização das decisões judiciais, mediante prévias “orientações aos tribunais” emanadas de quem quer que seja. Não há como retirar de um precedente vinculante a garantia da licitude abstrata de um “modelo negocial”. Os processos judiciais envolvem fatos e fatos variam caso a caso. Por isso existem as instâncias ordinárias, o juiz de primeiro grau e o tribunal regional (ou de justiça) a que esteja vinculado. Os fatos do processo são vistos e revistos. Apenas depois, se a tese jurídica adotada vilipendiar um precedente vinculante de tribunal superior, é possível correção.

Conceito de aderência

Os precedentes mencionados na decisão do corregedor, que apenas pelo fato de serem vários já deixam claro que não há como exigir aderência alguma, envolvem o Tema 725, da repercussão geral, a ADPF 324, a ADC 48, a ADI 3.961, a ADC 66 e a ADI 5.625.

Spacca

O Tema 725 da repercussão geral e a ADPF 324 do STF dizem respeito à licitude da terceirização de qualquer atividade. Para não aderir a elas, é preciso que a decisão reclamada negue essa possibilidade em abstrato. Algo como “não é autorizada a terceirização nesse ramo de atividade”. Fora disso, não há falta de aderência.

A ADC 48 e a ADI 3.961 tratam da constitucionalidade da Lei 11.442/2007, que rege a relação entre os motoristas autônomos de caminhões e seus contratantes. Para não aderir à tese por ela fixada, é preciso que a decisão negue a constitucionalidade, afastando a aplicação da regra por esse motivo. Fora disso, não há falta de aderência.

Já a ADC 66 confirma constitucional o artigo 129, da Lei nº 11.196/2005, que trata da tributação de pessoas jurídicas. Para negar aplicação aderente, seria mister que a decisão reclamada dissesse que é inconstitucional tal tributação. Fora disso, não há falta de aderência.

Finalmente, na ADI 5.625, fixou o STF a seguinte tese jurídica: “1) É constitucional a celebração de contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, nos termos da Lei 13.352, de 27 de outubro de 2016; 2) É nulo o contrato civil de parceria referido, quando utilizado para dissimular relação de emprego de fato existente, a ser reconhecida sempre que se fizerem presentes seus elementos caracterizadores”.

Destaque cuidadoso a essa ressalva contida no item 2: é lícito, mas se for para dissimular relação de emprego, não será. Para rejeitar a aderência, mister uma decisão que dissesse ser inconstitucional, em abstrato, contratar por meio de outra espécie de  modelo jurídico, que não o emprego, os profissionais em salões de beleza. Fora disso, não há falta de aderência.

Isso é aderência. Verificação da razão de decidir e cotejo entre o contexto fático da nova decisão com aquele assumido pelo tribunal emissor do precedente na oportunidade do julgamento original. Não há aderência a uma tendência, nem a uma ideia, nem a uma certeza política, nem a uma convicção filosófica ou, ou a um modelo negocial. A nova decisão adere ou não à anterior — e essa é uma árdua tarefa de todo magistrado —, conforme haja o encaixe preciso e limitado da ratio decidendi. Aos juízes, nesse plano, é dado, ainda, considerar o precedente superado ou enxergar dele distinção (artigo 489, § 1º, VI, do CPC).

Quem corrigirá o corregedor?

Qual o modelo negocial da requerente, que teve acolhida sua pretensão pelo corregedor com tão prudente receptividade? Uma corretora de seguros que vende os seguros por meio de corretores pessoas jurídicas franqueadas. Ele é lícito ou ilícito? Impossível dizer, em abstrato. Será lícito, se o franqueado não for um empregado disfarçado, e, do contrário, ilícito.

Os precedentes vinculantes têm força por sua ratio decidendi, sua razão de decidir. Com cuidado extrai-se uma ratio dos tantos precedentes mencionados pelo corregedor, que é a de que não há vedação abstrata a alguma forma de contratação da prestação de serviços. Em abstrato. Relembremos da ressalva na tese dos salões de beleza: contratos civis são lícitos, desde que não disfarcem contratos de emprego.

Esse o busílis.

A decisão judicial não pode ser aparada à distância do remoto mundo (quase sempre abstrato) de Brasília. Se o juiz olhou o caso concreto e disse que, em lugar de um contrato lícito de franquia, houve um de emprego disfarçado, a parte prejudicada, então, recorre e demonstra o contrário. Por exemplo, no julgamento da reclamação 1001702-86.2019.5.02.0043, publicado em 21/11/2022, o tribunal de São Paulo decidiu:

“Vendedor de seguros. Falso contrato de franquia. O Direito do Trabalho possui, entre seus princípios, aquele apelidado de Primazia da Realidade, pelo qual se considera que vale o que é observável na prática da execução contratual, e não o que está previsto formalmente em contrato. No caso, o contrato de franquia, à toda evidência, mascarava efetiva relação de emprego, com subordinação estrutural e hierárquica, onerosidade, continuidade e pessoalidade, descaracterizando totalmente a franquia prevista. Recurso Ordinário provido.”

Não violou nenhum dos precedentes da longa lista da decisão do corregedor. Não disse ser proibida a terceirização, ser inconstitucional permissivo de contratação de PJ ou qualquer outro fundamento da ratio daqueles precedentes. Para dizer que o acórdão assim procedeu, teria o julgador extraordinário que revolver fatos e provas, o que não está fora de sua competência. A revisão dessa decisão mediante reclamação constitucional já é, em si, irregular, porque exige o reexame dos fatos por juiz não investido desse poder. É farta, firme e certa a jurisprudência histórica do STF, que, embora venha de ser, nos últimos tempos, infelizmente, rareada, ainda subsiste, como se extrai de recente decisão do ministro Flávio Dino (Reclamação Constitucional 66.517, 5/4/24), que trata de “prestação autônoma de atividades de corretagem”:

“Sendo a via reclamatória excepcional, a jurisprudência desta Corte considera como indispensável para o cabimento da reclamação, a aderência estrita entre o ato reclamado e o conteúdo do paradigma apontado como violado, o que não se verificou na espécie. 7. O Tribunal Regional do Trabalho considerou, em sua decisão, que a prestação de serviços firmada entre as partes, configurava-se como verdadeira relação empregatícia. A decisão reclamada não merece reforma, uma vez que o reconhecimento do vínculo empregatício não se deu em razão da constatação de licitude ou ilicitude da terceirização da atividade-fim, mas sim pela verificação, nocasoconcreto, dos elementos caracterizadores da relação de emprego, impondo-se, por isso, o reconhecimento da relação de emprego entre as partes” (grifado).

Se nem o Supremo Tribunal Federal pode, mediante análise individual dos casos, por meio de reclamação constitucional, desconstituir as decisões que preocupam a corretora requerente, menos ainda podem ocorrer prévias “orientações” para que os juízes julguem de uma ou outra forma.

É preciso corrigir o corregedor.

 


[1] Barbosa, Rui. Obras completas. Vol. XXIII, Tomo III. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, 1948,  p 228.

Autores

  • é mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo, professor da Faculdade de Direito da FGV-SP (FGVLAW), co-coordenador do Grupo de Pesquisas Trabalho e Desenvolvimento (FGVLAW) e juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Vitória da Conquista (BA).

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