Opinião

TPI tem de provar que não funciona apenas contra o Sul Global

Autor

  • Thiago Süssekind

    é advogado formado em Direito pela Uerj e membro do time de pesquisadores do grupo de pesquisa em Direito Internacional Nepedi da Uerj.

2 de fevereiro de 2024, 7h15

México e Chile representaram, conjuntamente, perante a Procuradoria do Tribunal Penal Internacional (TPI), pela investigação de crimes internacionais cometidos em território palestino. Em novembro de 2023, África do Sul, Bangladesh, Bolívia, Comores e Djibuti haviam feito o mesmo. O TPI, fundado após os genocídios em Ruanda e na ex-Iugoslávia, tem “jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional”, conforme o Estatuto de Roma. São eles: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e, a partir de 2018, sob determinadas condições, o crime de agressão.

O órgão não deve ser confundido com a Corte Internacional de Justiça (CIJ), que resolve litígios entre Estados. O TPI responsabiliza indivíduos criminalmente. A primeira exige o consentimento mútuo para fins jurisdicionais. Já o Estatuto de Roma demanda o de apenas um Estado, seja aquele em cujo território o crime foi cometido ou o de nacionalidade do autor.

Embora o Estado de Israel não aceite a jurisdição do TPI, a Palestina internalizou o Estatuto de Roma e se tornou membro do Tribunal a partir de 1º de abril de 2015.

Reputação em jogo
Em 2021, a Câmara de Pré-Julgamento I do TPI reafirmou a jurisdição do órgão sobre o território palestino ocupado desde 1967 – Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Para os juízes, independentemente do status da Palestina, o processo de adesão ao Estatuto de Roma seguiu os trâmites corretos, e não seria possível superar a Assembleia dos Estados-Partes, que concordou com o novo membro. Sendo assim, os crimes graves cometidos em Gaza estão sujeitos à jurisdição do TPI (artigo 4º do Estatuto de Roma).

O TPI tem de dar provas cabais de que não adota um padrão para o terceiro mundo e outro para o Norte Global.

Ele depende dos Estados-partes do Estatuto de Roma para que suas decisões sejam acatadas. Então sua reputação e sua credibilidade, abaladas por casos de aparente seletividade, precisam permanecer intactas em meio às ameaças de denúncia do Estatuto de Roma pelas nações do Sul Global.

A comunidade internacional é parte deste processo. Ela precisa assegurar a sobrevivência do órgão que criou para punir crimes contra a humanidade.

Investigação proprio motu
Só três pessoas já ocuparam o cargo de procurador-chefe dentro da instituição, uma posição com muito poder e mandato de nove anos: Luís Moreno Ocampo, argentino; Fatou Bensouda, de Gâmbia; e Karim Ahmad Khan, britânico que hoje chefia o gabinete.

Cada mandato representou uma nova realidade política no TPI. Compete à Procuradoria recolher qualquer tipo de informação fundamentada sobre crimes da competência do órgão, para as examinar, investigar e exercer a ação penal junto ao Tribunal (artigo 41 do Estatuto de Roma).

Seu maior poder está contemplado no artigo 16 do tratado: o procurador pode decidir pela abertura de um inquérito ainda que não provocado por nenhum Estado – uma investigação proprio motu, no latim. Nessa hipótese, contudo, precisa solicitar autorização prévia do Juízo de Instrução (artigo 15).

África e Guerra ao Terror
Fatou Bensouda assumiu em 2012, em meio à pressão de seu continente contra o tribunal. O TPI era acusado de racismo por decisões que miravam chefes de Estado de países da África, ao passo que a Guerra ao Terror seguia incólume. Nesse contexto, no fim de 2017, Bensouda solicitou às Câmaras de Pré-Julgamento que instaurassem investigação sobre o Afeganistão.

A Procuradoria concluíra que o Talibã, ao lado da sua afiliada Rede Haqqani, havia cometido crimes contra a humanidade e crimes de guerra, enquanto as forças do Governo Afegão, em especial suas agências de inteligência e polícia nacional, haviam incorrido em crimes de guerra de tortura e maus tratos. E foi além, atribuindo responsabilidade por crimes de guerra de tortura e maus tratos a indivíduos das “forças militares dos EUA enviadas para o país” e àqueles que atuaram “em centros de detenção secretos operados pela CIA”. Era a primeira marca de uma gestão africana na Procuradoria.

Como o governo de transição do Afeganistão havia internalizado o Estatuto de Roma em 2003, um crime internacional cometido em solo afegão poderia recair sobre o TPI (inclusive os cometidos por nacionais de Estado não-Membro). A Rússia de Vladimir Putin, assim como os EUA, não reconhece a jurisdição do TPI – o que não impede que a ordem de detenção contra Putin siga intacta.

Já em dezembro de 2019, Fatou Bensouda concluiu que havia informação suficiente para atender a todos os critérios de instauração de um inquérito. Ao solicitar que os juízes do TPI se manifestassem sobre a jurisdição do Tribunal na Palestina, assinalou que havia base razoável para crer que crimes de guerra foram cometidos no contexto das hostilidades de 2014, que atingiu, em especial, Gaza. Ela citou tanto delitos cometidos pelo Hamas quanto por grupos armados palestinos, mas não deixou de falar sobre a suspeita de crimes praticados pelas Forças de Defesa de Israel (“IDF”, na sigla em inglês). Uma investigação permitiria alcançar responsáveis pelos delitos, denunciá-los e torná-los réus.

Bensouda acusou o Hamas e grupos armados palestinos de dirigirem ataques contra civis e bens civis, utilizar escudos humanos, privar o direito de pessoas protegidas a um julgamento justo, além de homicídio doloso, tortura e tratamento desumano e de ultraje contra a dignidade pessoal.

Quanto aos membros da IDF, a Procuradoria do TPI listou vários crimes cometidos em Gaza. O primeiro foi desferir, em pelo menos três oportunidades, ataques desproporcionais. O Estatuto de Roma, no seu artigo 8º, parágrafo 2, alínea “b”, inciso IV, tipifica a seguinte conduta: “Lançar intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causará perdas acidentais de vidas humanas ou ferimentos na população civil, danos em bens de caráter civil ou prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e direta que se previa”. Soa familiar em 2024.

Além disso, foram listadas condutas de homicídio doloso, de “causar intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde” e, por último, de atacar bens ou pessoas usando “os emblemas distintivos das Convenções de Genebra”, em referência a ataques contra ambulâncias e médicos do Crescente Vermelho.

Também havia elementos para crer que crimes de guerra foram cometidos por militares israelenses na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Fez-se referência ao inciso “VIII”, alínea “b”, do parágrafo 2 do artigo 8º do Estatuto de Roma, que tipifica o ato de “transferência, direta ou indireta, por uma potência ocupante de parte da sua população civil para o território que ocupa”. Ou seja, fez-se referência aos assentamentos ilegais de civis israelenses em solo palestino sob ocupação desde 1967.

Os inquéritos sobre a situação no Afeganistão e na Palestina não tiveram desdobramentos concretos desde então. E a retaliação do Ocidente está entre os principais motivos.

A resposta ao pedido da Procuradoria do TPI da administração de Benjamin Netanyahu não foi nada positiva. Em pronunciamento, ele disse que o TPI havia se transformado numa “ferramenta política para a deslegitimação do Estado de Israel”. Lembra reações recentes à ação da África do Sul na CIJ. Se no primeiro pronunciamento o Governo de Israel acusou os sul-africanos de funcionarem como o “braço jurídico do Hamas”, ao se defender na Corte, a defesa também acusou a África do Sul de estar deslegitimando a existência do Estado de Israel desde o seu estabelecimento em 1948.

Os EUA, sob investigação pela tortura no contexto da Guerra do Afeganistão, foram muito além. Em 2018, John Bolton, Conselheiro de Segurança Nacional no Governo Trump, ameaçou os juízes do TPI de prisão. Em 5 de abril de 2019, poucos dias antes da Câmara de Pré-Julgamento II tomar uma decisão sobre o pedido de instauração de inquérito acerca da situação no Afeganistão, a Casa Branca revogou oficialmente o visto concedido à Procuradora-Chefe do TPI, Fatou Bensouda, em virtude da tentativa de investigar os crimes de guerra cometidos por norte-americanos.

Coincidência ou não, em abril de 2019, a Câmara de Pré-Julgamento II proferiu decisão considerada “atípica”. Sob o fundamento de que a investigação não serviria aos “interesses da justiça” – valendo-se do que é praticamente uma nota de rodapé do Estatuto de Roma –, decidiu-se de modo contrário à instauração de um inquérito para apurar os crimes cometidos no Afeganistão.

A Câmara reconheceu que a situação no Afeganistão atendia aos requisitos relevantes de jurisdição e admissibilidade, tendo anuído com alegações de gravidade dos crimes e reconhecido a persecução criminal das vítimas, mas rejeitou o pedido de instauração de inquérito.

A maior parte da fundamentação do decisum discorria sobre elementos práticos, ressaltando a falta de perspectiva de cooperação por parte do Afeganistão – ainda não tomado pelo Talibã – e dos EUA, seja a respeito da investigação em si mesma ou para que suspeitos fossem entregues à Justiça. Apontava ainda o caráter limitado dos recursos financeiros e humanos do TPI, que levariam a um remanejamento indesejado e poriam em risco investigações com maior chance de êxito.

Concluiu-se que o TPI não seria capaz de “honrar os desejos e a aspiração das vítimas de que a justiça seja feita” e criaria “frustração e possivelmente hostilidade em relação ao Tribunal”, afetando negativamente “sua própria capacidade de perseguir com credibilidade os objetivos para os quais foi criado”.

A ordem contra Vladimir Putin
A mesma Câmara de Pré-Julgamento II voltou aos holofotes em 2023 como o órgão com competência para decidir sobre a situação na Ucrânia. Formada por três magistrados, apenas um deles deixou de compor a Câmara no caso ucraniano.

Chama atenção a incoerência entre as decisões em relação à situação no Afeganistão e à ordem de detenção expedida em face de Vladimir Putin. Não é razoável acreditar que algum Estado-parte do Estatuto de Roma prenderia o presidente da maior potência nuclear do planeta, mas os motivos pragmáticos não foram levantados quando o alvo era a Rússia – numa decisão cuja fundamentação jurídica, contrariando o que o TPI costuma fazer, permanece sob sigilo.

Após muitas críticas por recuar frente à Casa Branca, o TPI enfim mudou de postura. No dia 5 de março de 2020, sua Câmara de Apelações deu provimento ao recurso da Procuradoria para reformar a decisão da Câmara de Pré-Julgamento II e autorizar abertura do inquérito relativo à situação no Afeganistão.

A decisão não agradou aos EUA, que, ainda sob Trump, impuseram novas sanções e retaliações ao TPI, incluindo investigações duvidosas, bloqueio de propriedades e suspensão de vistos. A fundamentação se baseou no fato de os EUA e o Estado de Israel não serem Estados-partes do Estatuto de Roma.

A retaliação lembra a resposta atual do Kremlin. O Governo Putin anunciou, após a expedição do mandado de prisão em desfavor do presidente, a abertura de uma investigação criminal na Rússia – outro Estado não-parte – contra o Procurador-Chefe do TPI e os juízes da Câmara de Pré-Julgamento II.

A lei precisa valer para todos, mas dentre EUA, Israel e Rússia, apenas um foi alvo de ordem de detenção contra um de seus nacionais.

Um britânico na Procuradoria
O governo Biden removeu as sanções contra o TPI em meio a mudanças na situação política do Tribunal. Em fevereiro de 2021, um representante do Norte Global foi eleito para o cargo de Procurador-Chefe: o britânico Karim Ahmad Khan. Uma das suas primeiras medidas foi mudar o escopo da investigação sobre o Afeganistão. A solicitação de reabertura do inquérito veio acompanhada da decisão de retirar a prioridade dos crimes de guerra cometidos por americanos para focar somente nos crimes cometidos pelo Talibã e pelo autoproclamado Estado Islâmico na província de Khorasan. O ato foi visto como uma capitulação à pressão americana.

A Câmara de Pré-Julgamento II decidiu por autorizar a retomada das investigações, mas enfatizou que, “não obstante a declaração (…) na qual se referiu a uma mudança de foco”, sua autorização dizia respeito a todos os supostos crimes e atores que foram objeto do pedido original, autorizado pela Câmara de Apelações.

Em que pese a autorização para investigar todos os delitos listados em 2017, ficou claro que a Procuradoria não vai buscar a responsabilização dos americanos pela tortura sistemática cometida na Guerra ao Terror. É o mesmo Gabinete que, após ir atrás do presidente da Rússia, tem em mãos um difícil caso envolvendo um grande aliado dos EUA e de todo o Ocidente.

O ataque do Hamas e a reação israelense
Desde o ataque terrorista perpetrado pelo Hamas no dia 7 de outubro de 2023, o Estado de Israel passou a conduzir uma ofensiva que muitos criticam como punição coletiva contra os mais de 2 milhões de palestinos que vivem na Faixa de Gaza. Entre outubro de 2023 e janeiro de 2024, 25 mil pessoas morreram na região, 70% das quais crianças e mulheres.

Cerca de 70% das casas em Gaza foram destruídas, sem contar dezenas de milhares de desaparecidos e o fato de 85% da população ter precisado deixar as próprias casas para trás. Há denúncias de uso de fósforo branco em áreas civis densamente povoadas e de ataques à infraestrutura civil da Palestina, como universidades.

Segundo a relatora especial da ONU sobre os Direitos Humanos das Pessoas Deslocadas Internamente, existe a intenção de “deportação em massa da população civil (…), frustrando qualquer perspectiva de os deslocados regressarem às suas casas”. Seja como for, a falta de compromisso com o dever de evitar causalidades civis está fartamente comprovada pelo número sem precedentes de agentes da ONU e de jornalistas mortos.

Karim Khan apareceu em público logo após o dia 7 de outubro, quando o atentado terrorista do Hamas deixou mais de mil israelenses mortos, oportunidade na qual expressou que o ataque recairia sob a jurisdição do TPI. A partir do início dos bombardeios de Israel, porém, silenciou por dias. Em dezembro, visitou áreas atacadas pelo Hamas, mas recusou o convite de grupos palestinos para comparecer a um dos mais de 100 assentamentos ilegais israelenses na Cisjordânia. Para piorar, foi impedido de adentrar a Faixa de Gaza.

Há uma intersecção com a ação da África do Sul contra Israel na CIJ. Dentre as várias medidas cautelares requeridas pelos sul-africanos para obrigar Israel a “tomar todas as medidas à disposição para prevenir a ocorrência de um genocídio”, roga-se pela obrigação de “prevenir a destruição e assegurar a preservação de provas” com a determinação de não proibir, negar ou restringir “o acesso de missões de apuramento de fatos, mandatos internacionais e outros organismos a Gaza para ajudar a garantir a preservação e retenção de tais provas”.

O desafio de Karim Khan envolve a sobrevivência do TPI. O órgão criado para que genocidas e criminosos de guerra respondam por seus crimes é a única instituição capaz de responsabilizar criminalmente tanto os líderes do Hamas quanto os de Israel. É preciso agir com coragem, provando que Haia não funciona apenas contra o Sul Global

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!