Interesse Público

Sandbox regulatório e experimentação administrativa

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

1 de fevereiro de 2024, 11h33

No ano de 2018 as patinetes elétricas tomaram conta da Avenida Faria Lima, em São Paulo. A novidade surgiu sem disciplina regulatória prévia e foi adotada com rapidez e sem cautelas pelos usuários e empresas fornecedoras. O resultado foi um aumento imediato de 12,6% no número de acidentes de pedestres atendidos pelo Corpo de Bombeiros da cidade e motivou a atuação do regulador municipal mediante a edição do Decreto nº 58.907, de 9 de agosto de 2019, dedicado aos serviços de compartilhamento de patinetes elétricas acionadas por meio de plataformas digitais [1]. Depois disso, tão rápido quanto surgiram, as patinetes elétricas desapareceram da capital paulista. Em várias cidades do Brasil esse roteiro foi seguido.

Spacca

Cenário completamente diverso ocorreu em Fukuosa, no Japão. Em experimento controlado e circunscrito, avaliou-se por quatro meses a possibilidade da utilização de patinetes elétricas como solução para problemas de tráfego e estacionamento. Os dados coletados na experimentação foram usados como evidência sobre a segurança do uso das patinetes e indicaram as cautelas e alterações necessárias nas normas locais para o seu uso seguro, em escala geral [2]. Além dos mais de 18 mil quilômetros que distanciam as duas cidades citadas, a utilização do instrumento do “sandbox regulatório” separou o sucesso do caso japonês do resultado algo anárquico do caso paulistano.

Definição
Sandbox, em tradução literal, significa “caixa de areia”, uma referência à caixa de areia dos parques infantis, onde as crianças podem brincar, de modo protegido e isolado, enquanto os pais supervisionam à distância. De modo análogo, em informática emprega-se “sandbox” para referir o ambiente controlado e segregado onde testes de códigos novos podem ser executados de modo experimental sem afetar o sistema operacional ou outros programas. Em Direito, a expressão “sandbox regulatório”, surgida em 2015 na Inglaterra, é atualmente utilizada para referir um dos instrumentos centrais do Direito Administrativo da experimentação em mais de cinquenta países [3].

 

No Direito brasileiro, conforme enuncia a Lei Complementar 182, de 1/6/2021, que instituiu o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador, “sandbox regulatório” é sinônimo de ambiente regulatório experimental. A definição legal é detalhada  no artigo 2º, II, da Lei Complementar 182, que  define “ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório)” como o “conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado”.

Em síntese, sandboxes regulatórios são regimes normativos experimentais, segregados e de aplicação temporária, instituídos no âmbito administrativo para incentivar, viabilizar e supervisionar ações, produtos, modelos de negócio, técnicas ou serviços inovadores em áreas submetidas a controle, autorização ou regulação estatal.

Como funciona?
O conceito de inovação no Direito brasileiro é sabidamente amplo, conforme prescreve o artigo 2º, inciso IV, da Lei 10.973, de 2/12/2004, que define inovação como a “introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que compreenda a agregação de novas funcionalidades ou características a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho” (Redação alterada pela Lei nº 13.243, de 2016).

 

Em regra, após um processo de seleção público, os programas de sandbox oferecem a empreendedores um regime regulatório mais flexível, com menor carga de exigência burocrática, ou suspendem condicionalmente a aplicação de restrições gerais vigentes específicas, com vistas a testar o impacto do regime especial oferecido e os resultados de sua aplicação [4].

Esse desconto regulatório, ou desoneração condicionada de restrições, aplicada em ambiente de testes não assegura que as condições excepcionais admitidas ou as desonerações sob avaliação sejam convertidas em situações ou normas definitivas, pois a aplicação é feita em termos condicionais e individuais, porém assegura uma autorização temporária e precária para o desenvolvimento da inovação sujeita a requerimentos regulatórios.

Em contrapartida, o regime aplicado pode ser adaptado e ajustado ao longo do processo de experimentação ou simplesmente extinto. Nessa experimentação administrativa regulatória predomina a singularidade e não a padronização; a regulação é customizada e avaliada em cada caso com base em elementos fatuais e critérios de utilidade, segurança e viabilidade.

Ambiente controlado
Esse regime especial e flexível oferece a empreendedores — públicos e privados — a segurança jurídica mínima necessária para validarem em ambiente real iniciativas em descompasso com a disciplina geral ou ainda sem a cobertura suficiente da normatividade vigente. Reduz barreiras de entrada ou barreiras regulatórias. Para a administração pública, o regime do sandbox cria um ambiente de testes com aplicações no mundo real e um ambiente de aprendizado colaborativo formado pela interação constante com os agentes regulados selecionados, a partir do qual desenvolve o monitoramento da repercussão e da funcionalidade da nova disciplina em termos concretos, viabilizando tanto a análise de impacto normativo ex ante da generalização quanto a identificação dos riscos e benefícios de iniciativas em produtos e serviços inovadores.

A peculiaridade dos programas de sandbox regulatório é que viabilizam a comparação de normas no interior de um único sistema administrativo de referência (um peculiar pluralismo normativo, de natureza setorial), a análise de impacto normativo ‘ex ante’ (das normas gerais) e a supervisão empírica de projetos ou iniciativas inovadoras ainda não disponíveis aos usuários em geral, viabilizadas por autorizações precárias, temporárias e circunscritas, válidas sob as condições previamente estabelecidas pelo regulador. Em outro dizer: as sandboxes regulatórias instituem um ambiente normativo limitado, isolado e supervisionado (ambiente regulatório controlado) e diferenciado do regime jurídico ordinário geral (regime de exceção temporário).

Interesses da administração e do empreendedor
Essas características são muito exigentes para ambas as partes. Reclamam equipes preparadas e recursos tanto nos órgãos e nas entidades reguladoras quanto nas entidades reguladas: planejamento, monitoramento, conferência de resultados são tarefas que demandam pessoal qualificado, recursos e tempo. Para a administração pública, os sandboxes regulatórios não interessam apenas por fomentarem a inovação; o interesse reside sobretudo na melhoria da regulação, isto é, na aprendizagem regulatória.

Para os empreendedores regulados, interessa superar ou atenuar barreiras regulatórias, viabilizar serviços e produtos antes de outros competidores, com menor risco de entrada, porém com maior rapidez na implementação de seus modelos de negócio [5]. Logo, não devem ser admitidos em programas de sandbox regulatório empreendedores cujas iniciativas já se ajustam às exigências regulatórias ordinárias ou que sequer identificam quais isenções regulatórias consideram essenciais para o ambiente regulatório experimental [6].

Riscos e vantagens
Esses encargos incentivam que os reguladores sejam seletivos e reduzam fortemente o número de pedidos atendidos de empreendedores para admissão em sandboxes regulatórios. A análise do atendimento aos critérios de elegibilidade é geralmente rigorosa. Ainda assim, há riscos: (a) risco de captura do regulador pelo regulado, tendo em conta o diálogo regulatório prolongado e estreito; (b) risco para os usuários, dada a atenuação das exigências regulatórias; (c) riscos para a igualdade na concorrência, dada a aplicação de regime especial com flexibilidades regulatórias ou vantagens competitivas não extensíveis a todos os empreendedores; (d) riscos de vazamento de dados estratégicos do regulado durante o processo de sandbox regulatório, tendo em conta o número de pessoas envolvidas no acompanhamento e fiscalização dos programas.

Todos esses riscos não afastam as vantagens dos sandboxes regulatórios, nomeadamente na acelerada sociedade da inovação em que vivemos. Porém, como nos parques infantis, onde caixas de areia isoladas e protegidas não garantem por si a ausência de problemas, nos sandboxes regulatórios o olhar atento dos supervisores, da academia, da sociedade civil e dos usuários parece essencial para que tudo corra bem e como planejado. A transparência administrativa permanece fundamental como ingrediente necessário da experimentação.


[1] Cf. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/06/04/sao-paulo-registra-125-acidentes-com-patinetes-este-ano-diz-levantamento.ghtml [acesso em 30/01/2024].

[2] Cf. Harvard Business Revies (HBR). 2021. Disponível em <https://hbr.org/sponsored/2020/02/how-the-japanese-governments-new-sandbox-program-is-testing-innovations-in-mobility-and-technology>. [acesso em 30/01/2024].

[3] Em documento de 2020, Key Data from Regulatory Sandboxes across the Globe, o Banco Mundial mapeou 57 países com iniciativas de sandbox regulatórias, sobretudo na área financeira. Cf. https://www.worldbank.org/en/topic/fintech/brief/key-data-from-regulatory-sandboxes-across-the-globe [acesso em 30/01/2024]. O Brasil figura entre os países que adotam a iniciativa, sendo que os primeiros programas de sandbox regulatórios nacionais foram lançados em 2020, pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), pela Superintendência de Seguros Privados (Susep) e pelo Banco Central do Brasil (BCB), sendo direcionados principalmente a fintechs, insurtechs e bancos digitais. Logo, como na origem inglesa, no Brasil os primeiros sandboxes regulatórios foram do setor financeiro. Depois a iniciativa alcançou as agencias reguladoras de energia, telecomunicações, transportes e petróleo. Essa evolução é descrita em detalhe no profundo documento “Relatório de Análise de Impacto Regulatório sobre o Sandbox Regulatório da ANTT”, disponível em https://portal.antt.gov.br/documents/3116054/3118105/AIR+-+Sandbox+p%C3%B3s+AP.pdf/946f8fe2-3271-08a0-3e12-cb91da24ca75?t=1669149853010 [acesso em 30/01/2024].

[4] Essa autorização é enunciada expressamente no Art. 11 da Lei Complementar 182/2021: “Art. 11. Os órgãos e as entidades da administração pública com competência de regulamentação setorial poderão, individualmente ou em colaboração, no âmbito de programas de ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório), afastar a incidência de normas sob sua competência em relação à entidade regulada ou aos grupos de entidades reguladas.”

[5] Há autores que diferenciam sandbox regulatório (regulatory sandbox)  e sandbox setorial (industry sandbox). Estas últimas não contemplariam a suspensão de exigências regulatórias ou a sua atenuação, isto é, a criação de um ambiente regulatório customizado, por cuidarem de iniciativas testadas em ambiente virtual antes de serem ofertadas no mercado ou a consumidores. O Laboratório de Inovações Financeiras e Tecnológicas (LIFT), iniciativa conjunta do BCB e da Fenasbac, assim se autodefine. Considera ser seu papel o de “facilitador da inovação” e recusa para si o conceito de sandbox regulatório. Cf. SIQUEIRA, André Henrique de (et al): LIFT – Laboratório de Inovação Financeiro e Tecnológico,  LIFT Papers, Vol.  1, n. 1, março 2019, p. 6-26, disponível em: https://revista.liftlab.com.br/lift/issue/view/14 [acesso em 30/01/2024].

[6] Esse aspecto foi particularmente enfatizado no relatório de 2021 do Comitê de Sandbox da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), referente ao 1º Processo de Admissão, disponível em https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/menu/investidor/30062021__Documento_de_Consideracoes_do_CDS.pdf [acesso em 30/01/2024]. Conferir, por igual, sobre o processo de seleção, as etapas indicadas no detalhado estudo Sandbox Regulatório e Marco Legal das Startups, de setembro de 2023, de Rafael Carvalho de Fassio, disponível em: https://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8A81881E8A58908F018BBA65BDD62CB3 [acesso em 30/01/2024].

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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