Senso Incomum

Por que o STF e o STJ têm de conceder HC para furtos de baldes d'água?

Autor

15 de agosto de 2024, 8h00

Abstract desta coluna: Por que há processos em demasia? Ou, do que se queixam os tribunais? Ou “por que não se obedece ao artigo 926 do CPC”?

1. Há cerca de 80 milhões processos judiciais: nada há a fazer?

Seguidamente há queixas de autoridades judiciárias de que há processos em demasia — até emenda constitucional isso já provocou (EC 125, com novos filtros para recurso especial). Hoje há quase 350 mil de processos no Superior Tribunal de Justiça.  E só no recesso o STJ recebeu mais 10 mil.

Por exemplo, ministros do STJ dizem que há exagero de impetrações de habeas corpus. A resposta para isso é muito simples: se não houvesse prisões ilegais e denúncias (e recebimentos delas) ineptas ou sem o devido filtro e nas demais áreas as decisões fossem exaradas seguindo o artigo 926 do CPC e obedecendo o artigo 489 do CPC (e o 315 do CPP), não haveria tantos pedidos de Habeas Corpus no crime e tantos embargos, agravos, apelações e recursos nas outras áreas. Aí entra a velha questão: o que é isto — o precedente? O que é isto, a divisão arbitrária (criterialista) em persuasivos e qualificados (ver aqui) [1]?

Isto é, permitindo-me uma pieguice e/ou platitude benfazeja, não nos queixemos das bravas águas do rio; observemos melhor as margens que oprimem o seu leito. Se o STJ tem de conceder habeas para situação já consolidada em termos jurisprudenciais, é porque o “sistema” não está cumprindo o artigo 926 do CPC. O problema é que o próprio STJ não se preocupa suficientemente com o descumprimento desse dispositivo. A simples aplicação do artigo 926 já seria um forte componente para dar racionalidade ao “sistema”.

Mais: se há embargos em demasia, talvez seja porque os juízes (e tribunais) não estejam observando os seis incisos dos artigos 489 e CPC e 315 do CPP. E nem o 926 do CPC. Isso é facilmente constatável. Não faz muito, vi um agravo decidido monocraticamente (e fulminado) no STJ, cuja decisão descumpriu frontalmente o artigo 315 do CPP. Uma espécie de violação de segundo nível. Um paroxismo sistêmico. Fica difícil, não?

Esses dispositivos — 489, 926, 988 do CPC e 315 do CPP — foram incluídos nos códigos para dar racionalidade ao sistema. Para diminuir e não para aumentar o número de feitos.

2. De como há uma indevida fabricação de processos: a lógica é fácil – menos fundamentação, mais recursos; menos cumprimento da lei e da jurisprudência, mais recursos

Vou dar um exemplo de como o Judiciário “fabrica processos”, na linha, mutatis mutandis, da fabricação de crise que ocorre quando alguém é preso por porte de maconha porque é mal enquadrado como traficante (aliás, é a maioria dos presos no Brasil). Fosse feito corretamente, nem processo haveria.

Spacca

O exemplo (de área não criminal): alguém ingressa com ação anulatória buscando a declaração de decadência de crédito tributário. Com pedido de tutela de urgência. Tudo com base na lei. O autor tem a seu favor precedentes claros dos tribunais superiores. Basta que o juiz faça algo simples: siga a institucionalidade. Basicamente, é uma questão muito simples: é o juiz que tem um dever institucional de aplicar a lei. Julgar de acordo com o direito vigente. E não fora dele. E seguir o que a institucionalidade diz. Isso não é um legalismo raso-rasteiro que aposta em textualismos ingênuos e/ou exegetismos e subsunção. É simplesmente uma questão republicana. Numa democracia, cumprir a lei não é feio. Cumprir precedentes, desde que se saiba identificar a ratio decidendi, é obrigação (ver texto sobre isso aqui anexo) No mínimo para que haja uma certa igualdade. Bom para todos, ruim para todos. Mas é para todos.

2.1. Por que uma decisão equivocada causa tantos problemas e multiplica demandas indevidamente

E aí começa a fabricação de decisões rumo ao caos. O juiz decide ignorando os precedentes e negando o pedido de tutela na ação anulatória. Isso gera, como reação defensiva da parte, embargos de declaração com efeitos modificativos (portanto, mais um processo). Se o juiz nega (e é provável que isso ocorra), à parte, em face da clareza do direito e da indevida negação, manejará novos embargos. Depois, se a parte escapou da multa, novo processo — agravo ao tribunal.

Então, no tribunal, se o relator fizer a mesma coisa, fabrica-se mais um feito: agravo interno. Se o órgão fracionário concordar com o relator, novo recurso. Para o STJ. Na inadmissão — 99% dos casos — agravo. E no STJ, começa tudo de novo, com embargos e agravos. Moral da história: fosse cumprida a lei e a jurisprudência, tudo poderia ter terminado com um processo apenas (aliás, se o Estado não estivesse atrás de honorários, nem mesmo o processo necessitaria, porque o próprio declararia o direito da parte). Repito a pergunta: onde fica a “cultura de precedentes”? Quantos processos foram “fabricados” nesse caso? E, pior — e isso se torna dramático: o pobre do utente corre o risco de, mesmo tendo a seu favor precedentes, cair em armadilhas sistêmicas e, no meio do caminho, tropeçar na Súmula 7 (ou em outra jurisprudência defensiva). Isto é, o não cumprimento da institucionalidade pode levar até mesmo à negativa de um direito claro. O utente corre o risco de correr sozinho e chegar em segundo lugar.

3. A minha insistência pelo cumprimento do artigo 926 do CPC

Quando me esforcei para introduzir o artigo 926 do CPC, pensei nisso: coerência e integridade dão estabilidade (discuti isso à época com Marcelo Cattoni, Dierle Nunes e Fredie Didier — e com o relator Paulo Teixeira). Um dispositivo que fortaleceria o Judiciário. Some-se a isso o inciso VI do paragrafo primeiro do artigo 489 e, pronto. Seguir decidindo como está. Se o julgador não concorda, deve fazer um distinguishing fundamentado. Isso está na lei! O ônus passa a ser invertido. A AMB queria o veto do artigo 489. Lutei junto ao governo de então para que não vetasse (ver aqui). Lamentavelmente, parece que nem o artigo 926 e nem o 489 (e também o artigo 315 do CPP) caíram no gosto da magistratura brasileira.

O objetivo com os artigos 489 e 926 era (e é): tenho o direito, sustento ele na lei e na jurisprudência e o ônus de dizer que não tenho esse direito é do Judiciário (inciso VI, além da exigência de coerência e integridade). Uma simbiose perfeita para buscar racionalidade.

O grande Ovídio Araújo Baptista da Silva dizia que decisões bem fundamentadas poderiam desestimular os recursos. O tipo de fundamentação utilizada em nossa experiência jurídica concorre, ao revés, para o aumento do número de recursos.

4. A ‘fabricação de processos penais’ por meio de ações temerárias e recursos daí decorrentes: por que o STJ e o STF têm de conceder tantos habeas corpus e anular inúmeros processos?

Vamos ver um caso penal? Pensemos em uma denúncia por furto de baldes de água (sim, é um caso que aconteceu — baldes de água aqui serve como alegoria de processos irrelevantes e teratológicos, incluindo as indevidas prisões por tráfico quando é caso de consumo). Pode ser também de furto de sabonetes em supermercado (há muitos). Ou pensemos no caso de Edmilson, que passou três anos preso, condenado a 170 anos, fruto de má apreciação do Direito (não esqueçamos que o TJ-SP disse que isso é assim mesmo, afinal os juízes decidiram com livre convencimento). Ou prisão por portar um projétil em um pingente, tendo o MP invertido o ônus da prova nos tribunais superiores.

A produção em série: MP ingressa com denúncia; essa é contestada e (quase sempre) recebida. Instrução. Condenação. Se no meio do caminho o réu tiver sido preso, habeas corpus. Se negado, embargos. Na sequência agravo (sem considerar no meio a superação — ou não — da sumula 691). E quem sabe agravo do agravo. Voltando: da condenação, cabem embargos. Negados, apelação. No tribunal, 2 a 1, embargos infringentes (julgamento estendido). Mantida a condenação, REsp e RExt. Inadmissão e negativa de seguimento, agravos para as cortes superiores e agravo interno para o tribunal originário. No tribunal, embargos da decisão denegatória do agravo interno. Nos tribunais superiores, agravos, embargos e quem sabe mesmo um novo RExt.

Moral da história: milhares de processos poderiam ter sido evitados, se o Ministério Público (e o juiz) tivesse examinado a fundo o inquérito e o processo (no caso do pingente que chegou até o STF, o MP defendeu a inversão do ônus da prova). Por vezes há prova em favor do réu e o MP ignora, descumprimento a doutrina Brady, constante até mesmo no Estatuto de Roma, incorporado ao direito brasileiro em 2002 (artigo 54, I). Ainda assim, mesmo que convencido de que há provas, poderia aplicar a insignificância. Afinal, três baldes de água ou três sabonetes… E o juiz poderia ter impedido a formação de dezenas de recursos (que são novos processos). E o que dizer de prisões preventivas em audiências de custódia em que o MP se posiciona contra e mesmo assim o juiz decreta?

5. E o que dizer do maior litigante, o INSS? O melhor direito é o não direito?

O Brasil consegue fazer algo surpreendente. Possui uma máquina administrativa gigante, com procuradorias e equipe qualificada de servidores. Todavia, com tudo isso, a administração proporciona uma litigância em outra máquina gigantesca, a justiça federal. Só para ficar no âmbito do INSS, em que uma causídica sozinha já ingressou com 28 mil ações (deu na TV!), temos que, se a administração fizesse o exame cuidadoso do pedido do usuário, não geraria tantos processos. Uma negativa malfeita no INSS (parece que a regra é negar!) é como uma prisão indevida ou uma denúncia mal formulada no crime ou uma negativa de um pedido no cível com jurisprudência favorável: essas práticas geram novas ações e recursos e mais recursos. E mais recursos. Obs.: os artigos 489 e 926 do CPC se aplicam aos litígios do INSS — só para lembrar.

Na justiça, a negativa de um benefício pode representar uma privação perpétua de proteção social, por fazer a decisão judicial coisa julgada contra o segurado. Imaginemos um benefício de aposentadoria por idade rural negado sob o fundamento de que o cidadão produziu demais [2] ou, ainda pior, porque o trabalho da mulher é dispensável, considerando a remuneração do marido [3].

5.1. O risco de ‘enterrar vivo’ o direito em face de decisões equivocadas

Mais grave, se for pleiteado, por exemplo, o reconhecimento de tempo especial, o qual, na maioria dos casos, vai depender de perícia complexa (afinal, o juiz depende do conhecimento especial de técnico). O grande problema, contudo, é o autor conseguir a prova pericial, vale dizer: indispensável para a demonstração do labor especial. Em muitos casos, o judiciário se apresenta como uma verdadeira “extensão” da via administrativa, isto é, quando ele toma o formulário PPP — produzido fora do processo — como prova absoluta da não exposição a agentes nocivos — mesmo sabendo que as empresas insistem em disponibilizar as melhores informações sobre o meio ambiente de trabalho, em razão dos reflexos disso nas esferas trabalhista, tributária etc.

O que acrescenta gravidade a esse comportamento é, justamente, o fato de a decisão judicial “enterrar vivo” o direito do usuário. Da réplica o processo segue concluso direto para a sentença, sem instrução, com o julgamento antecipado da lide — o que serve de parâmetro de observação do respeito ao devido processo legal e representa não apenas uma restrição ao direito de prova, mas de acesso à justiça. Entrementes, o INSS, que tem o dever de fiscalizar os empregadores, a fim de verificar o correto preenchimento dos formulários, deixa de exercer seu poder de polícia na via administrativa para, nos autos da ação judicial, acenar com falhas e dúvidas, numa tentativa de se beneficiar da própria torpeza e/ou induzir em erro o judiciário (venire contra…). O benefício da dúvida em favor do INSS e, sobretudo, da celeridade e da economia processual!

5.2. Por que não surpreende que o INSS seja o maior litigante: o grave problema da duplicidade de estruturas

Não surpreende que o INSS seja o maior litigante. Após defender uma orientação institucional abusiva e protelatória desde a via administrativa, ao INSS ainda é dado o direito de “concordar” com o preenchimento dos requisitos ensejadores do benefício no curso da ação, para afastar sua responsabilidade pelos honorários sucumbenciais (Tema 995). E paga-se honorários porque o mesmo Estado não examinou bem o pedido na entrada…! Além de duas máquinas enormes, ainda haverá despesa com honorários em favor da parte que tem o direito, foi-lhe negado e, finalmente, concedido via judicial. Não há modo de atalhar o sistema?

Não, não respondam. A pergunta é retórica. E no campo dos litígios do Estado? Mesmo o utente tendo razão, em regra o Estado, por seus agentes jurídicos, negará e insistirá até mesmo em grau de recurso. Aqui a questão dos honorários coloca o utente como inimigo-adversário do Estado (este é um assunto que causa desconfortos…). O que, na via inversa, aumenta a despesa da Viúva. E o número de litígios. Por isso talvez tenhamos cerca de 80 milhões.

Observe-se como inverter a ordem das proposições pode causar confusão e, ao mesmo tempo, uma ótima reflexão. Uma anedota de pesquisa médica: “Segundo as estatísticas, doenças do pulmão aumentam o consumo de cigarro”. Inverte-se causa e consequência. Agora no PL 6.160/19 [4] (uma das maiores ameaças ao acesso à justiça): “a judicialização aumenta a atuação descomprometida do INSS”. Fosse só uma piada! A iniciativa legislativa, de fato, colocou como causa do problema o acesso à justiça, poupando o principal responsável pelo elevado número de ações [5]. Qual foi a solução proposta? Dificultar o acesso à justiça… como? A ideia era acabar com a gratuidade da justiça, inclusive nos juizados especiais federais, o que acarretaria altos custos para o cidadão [6]. O remédio seria pior que a doença!

É claro que o tema é amplo e complexo. Não falei de outras áreas como a justiça laboral (por exemplo, de como o TST, ao editar OJs e súmulas, abarca as funções de legislador e aplicador — e porque isso é um problema para a própria democracia). Abordar o tema em todas as suas vertentes nos levaria muito longe deste título. Esse não é um assunto que se possa vencer ou perder por meio de razões únicas. Certo é que, do ponto de vista do advogado, a atuação de muitos causídicos desponta como um fator que contribui para esses números — é só ver a comercialização de ações de massa, kits de modelos de petição e quejandices mil.

6. Por que insisto na construção de um coeficiente mínimo de racionalidade por meio da coerência e da integridade (artigo 926 do CPC)?

Não quero brigas epistêmicas com ninguém. Talvez esteja malhando em ferro frio. Reconheço. Com toda lhaneza — invocando o princípio da caridade (Davidson e Blackburn) — não pretendo ser rude em minhas críticas. Trago dados empíricos e teóricos. Quase todas as semanas.

O que ocorre é que, com um mínimo de coerência e integridade, essa discussão toda seria inócua. O que os tribunais não percebem é que apostaram na tese errada. Discute-se precedentes “persuasivos” e “qualificados” e, até hoje, não se fomentou um debate rigoroso sobre o que forma a ratio de um precedente. Isso é fato. Há alguns anos, eu diria que compraram o DVD sem ter a televisão. Claro, hoje essa brincadeira não funciona mais. Sou um jurássico, afinal. Vai ver é esse o problema: insisto ainda em coisas como respeito à lei, autoridade dos textos e da doutrina, democracia representativa, defesa ferrenha da institucionalidade, enfim. Essas coisas de velho.

Mas, de novo, insisto. E já que rejeitam a coerência e integridade, aceito jogar no campo do adversário. Se minha insistência é coisa de gente ultrapassada, que insiste nessa coisa de “república”, que ao menos entendam que é uma questão de análise econômica. Por quê? Simples. Porque cumprir a lei é sempre mais barato. Inclusive em relação aos dois lados da Viúva. Uma pena que esse debate não se aprofunde e fiquemos andando em círculos falando de uma cultura que não existe e nunca existiu.

Como dizia o poeta, quando as águas da enchente cobrem a tudo e a todos, é porque de há muito choveu na serra.

Nós é que não nos demos conta…

 


[1] Enquanto isso, multiplicam-se os livros e artigos exaltando a ”cultura de precedentes” como uma espécie de Batalha do Itararé, sem que sequer tenhamos, stricto sensu, precedentes, pela simples razão de que “perdemos — ou dispensamos — o caso concreto” (ver aqui). Há até revista especializada em precedentes, sem dizer o que é um precedente (ver aqui). No Brasil a “cultura de precedentes” virou uma espécie de wokismo jurídico. Quem criticar e exigir mais fundamentos da tese corre o risco até de ser cancelado.

[2] https://www.conjur.com.br/2023-jun-05/diego-schuster-trabalhador-rural-agora-magro/

[3] https://www.conjur.com.br/2024-jan-11/questao-de-genero-em-favor-da-trabalhadora-rural-do-discurso-a-pratica/

[4] A proposta tinha como finalidade endurece as regras e dificulta o acesso dos segurados às ações judiciais, restringido a concessão de assistência judiciária gratuita e propondo o pagamento de custas em todas as demandas contra o INSS. O constrangimento epistemológico promovido pela comunidade jurídica à época acabou freando a sanha do governo. A reforma da previdência social também trabalhou com a mesma lógica. Diante do paradoxo: quando mais direitos; mais direito violados, a solução só poderia ser: acabar com direitos!

[5] SCHUSTER, Diego Henrique. Aposentadoria especial e a nova previdência: os caminhos do direito (processual) previdenciário. 2. ed. – Curitiba: Alteridade, 2022.  p. 602.

[6] O constrangimento epistemológico promovido pela comunidade jurídica à época acabou freando a sanha do governo. A reforma da previdência social também trabalhou com a mesma lógica. Diante do paradoxo: quando mais direitos; mais direito violados, a solução só poderia ser: acabar com direitos! É a tese do paradoxo do queijo: o melhor queijo é o suíço; que têm furos; então, mais furos, melhor o queijo; mais furos, menos queijo; conclusão: menos queijo, melhor o queijo. Moral da história: o melhor queijo é o não queijo.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!