Opinião

Pré-juízos (in)autênticos: trabalhador rural agora precisa ser magro?

Autor

  • Diego Henrique Schuster

    é advogado professor doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

5 de junho de 2023, 11h12

O alerta de Mashall B. Rosenberg sobre o linguajar do "errado", do "deveria" e do "tenho de" ajusta-se com perfeição ao nosso artigo: "quanto mais se for levado a pensar segundo juízos morais que implicam que algo é errado ou ruim mais se recorrerá a instâncias exteriores  as autoridades  para saber a definição de certo, errado, bom e ruim" [1].

Assim, alguns juízes julgam com base em razões pessoais, vale dizer: a partir do que eles consideram certo, errado, bom ou ruim. Entram, aqui, pré-conceitos (ou falácias, e.g.: dizer que o gaúcho trabalha mais do que outros  o que me deixa muito constrangido) que interferem na tomada de decisão. É algo como "eu penso desse modo", no interior do qual não se identifica uma linguagem pública (conforme o Direito), perdendo-se exatamente nessa "subjetividade assujeitadora" (expressão utilizada pelo professor Lenio Streck).

Lenio explica que os pré-juízos, sejam eles autênticos ou inautênticos, são condição de possibilidade da compreensão e "operam conosco no momento em que nos aproximamos de um texto" [2]. Os pré-juízos falsos (inautênticos) precisam ser desmascarados. Como exemplo, pode-se referir a decisão proferida pela 9ª Vara Criminal de São Paulo, que arquivou uma queixa-crime (do jogador de futebol Richarlyson), afirmando, em síntese, que "futebol é viril, varonil, não homossexual" [3]. Fica claro que o argumento utilizado como "fundamentação" não passa de um juízo moral — distante do objeto/lei.

No Direito Previdenciário, a maior vítima dos pré-juízos (inautênticos) são os segurados especiais, isto é, os trabalhadores rurais. Assim, por exemplo, decisões vêm gerando polêmica, na medida em que o julgador analisa se o agricultor é magro ou gordo para decidir sobre seu direito ao benefício de aposentadoria por idade rural. Vale transcrever a fundamentação utilizada:

"Ainda sobre características físicas, o segurado especial goza de tratamento legal favorecido, mediante a concessão de benefícios previdenciários, no valor de um salário mínimo, independentemente de pagamento de contribuições, porque o exercício de agricultura de subsistência não permite lhe [sic] sobra financeira, isso implica diretamente a restrição à aquisição e, consequentemente, consumo de alimentos, o que reduz a ingestão calórica diária. Isso, aliado ao exercício de extenuante trabalho físico, acarreta baixo índice de massa corporal  IMC (decorrente da razão entre peso e altura) nesse tipo de trabalhadores."

Com efeito, criou-se a ideia de que o segurado especial precisa ser miserável, perdendo-se o juiz em discussões que, cada vez mais, dizem respeito às características físicas do trabalhador, o que acarreta graves prejuízos hermenêuticos. O julgador simplesmente aposta em estereótipos ou caricaturas: "Não há qualquer demonstração idônea de atividade rural por parte da requerente que aliás tem uma aparência nada fustigada pelo sol, e por que não dizer, bem cuidada. Isto à vista das verdadeiras trabalhadoras rurais que aqui acedem, e têm as peles manchadas do sol, e as mãos grossas como lixas".

Sobre o segurado especial, Jane Lucia Wilhelm Berwanger há muito vem denunciando: "[…] é comum encontrarmos elementos completamente subjetivos com relação ao segurado especial, o que aponta para a interferência, no processo de interpretação da lei, de certos pressupostos e descrições que claramente não condizem com o conteúdo da norma". 

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Segundo a advogada: "Em nome da 'subsistência', ignora-se tudo o mais que a lei diz sobre o segurado especial, deixando-se de considerar que a lei não contém termos isolados, mas que tudo faz parte de um sistema; diz-se, por exemplo, que o trabalhador rural não pode ser proprietário de imóvel urbano, utilizar maquinário, criar gado…" [4].

Esse subjetivismo encontra espaço, até mesmo, na equivocada aplicação das "regras de experiência" (CPC, artigo 375). Acreditamos que as regras de experiência podem, sim, aproximar o Direito do mundo prático, auxiliando na apuração dos fatos e valoração das provas. Agora, as regras de experiência não podem se sobrepor à lei. Entendidas dessa forma, vale dizer: sem ter o juiz nenhum critério objetivo, não passam de juízos solipsistas. Confere-se ao juiz o poder de dizer o que é "certo" ou "errado". A resposta sempre encontra respaldo no "livre convencimento motivado", na "verdade real", entre outros tipos de chicanas. Como ter acesso às vivências anteriores do juiz?

A expressão "subsistência" não designa algo totalmente independente, fechado em si. O conceito só tem significado no contexto, ou seja, na frase que diz: "Entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes". A relação das palavras (à luz do caso concreto) determina o sentido. A frase não tem nenhuma espécie de quantidade. Então, como ela se adapta à realidade?

O tribunal nega o benefício de aposentadoria por idade rural sob o fundamento de que o segurado produziu demais: "as notas fiscais em comento envolvem comercialização de quantidade expressiva de cabeças de gado e sementes, o que denota que a parte autora não era segurada especial". Dentre as notas juntadas aos autos, destacou-se: "20 novilhas e 21 vacas; 11 cabeças de gado  2006; 14 cabeças de gado  2008; 5334 Kg de semente bruta, no valor total de R$ 80.010,00  2011". Cumpre perguntar: e se fossem 10 novilhas e 11 vacas; seis cabeças de gado? Existe uma teoria sobre a quantidade de semoventes? Afinal, qual é o critério?

Abre-se aqui um parêntese para refletir sobre a dificuldade de comprovação do tempo de serviço rural antes dos 12 anos de idade. Não há dúvidas de que o julgador espera algo a mais. É inevitável a associação do trabalho antes dos 12 anos de idade com o trabalho escravo e, talvez por isso, alguns juízes estejam esperando da prova algo parecido com o trabalho em minas de carvão ou coisa parecida. Daí se segue com exigências, no mínimo, criativas: "autor não tinha compleição física nessa idade", não consta no boletim algo no sentido de a escola dispensar o autor da educação física por trabalhar e assim por diante. Alguns procuradores do INSS, nas audiências, só faltam perguntar se a criança era quem sustentava os pais  uma total inversão das coisas.

Convenhamos, a questão de ser o trabalho "indispensável para a subsistência do núcleo familiar" é um minus em relação ao fato de se admitir que uma criança foi obrigada a trabalhar – devemos contentar-nos com o menor dos males, como se costuma dizer. Por outras palavras, ao invés de brincar e estudar, a criança ajudava a sua família na agricultura. Era uma criança, logo, qualquer exigência deve ser proporcional ao tamanho e força de uma criança! 

Isso tudo representa um problema no processo de comunicação, já que não se consegue ter acesso às impressões de quem julga. Como prever o que não tem critério nem limite? Em última análise, os "critérios" utilizados são uma realidade inteiramente privada (individual). Aqui reside o solipsismo  objeto da crítica de muitos filósofos. No fim das contas, o trabalhador é punido por produzir demais, sem sequer ter um quadro de referência intersubjetivo no qual pudesse pautar sua conduta — como saber o quanto é possível produzir e/ou a partir de quanto devo passar a contribuir para a Previdência Social? Lembrando que essa decisão transita em julgado e faz coisa julgada: uma restrição perpétua!

É importante deixar claro que as únicas limitações impostas pela Lei de Benefício versam sobre o tamanho da terra e a utilização de empregados permanentes. A Lei não prevê qualquer limite de produção à caracterização do segurado especial, enquanto que a Constituição Federal (artigo 195, §8º) estabelece que a contribuição previdenciária deste tipo de trabalhador será por meio de uma alíquota sobre a comercialização. Em tese, quanto mais o trabalhador produzir, melhor. Neste nível, o benefício de aposentadoria por idade rural não visa apenas proteger o agricultor, mas implementa um programa de combate ao êxodo rural, com vistas à segurança alimentar e à redução da pobreza. Isso não deve reforçar o caráter assistencial do benefício  outro prejuízo inautêntico.

O artigo 109 da própria Instrução Normativa INSS 128/2022, no seu §1º, não deixa ressaibo de dúvida, a atividade do segurado especial é desenvolvida em regime de economia familiar quando o trabalho dos membros do grupo familiar é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico, "independentemente do valor auferido pelo segurado especial com a comercialização da sua produção". Mesmo se não estivesse expresso, ficaria muito claro de qualquer forma, pois nem a Lei de Benefício nem a Constituição sugerem qualquer restrição à produção.

O texto da lei será sempre ponto de partida (ou retorno). O que há de comum nessas decisões? Cada juiz cria seus próprios critérios. O problema está no fato de se tentar conhecer de modo definitivo o que é segurado especial. A crítica contra a criação de critérios não previstos na lei não significa que a palavra "subsistência" não possua sentido. O problema é que se tenta encontrar uma "essência"  a ser captada pelo juiz. E isso não é apenas uma discussão semântica. Cumpre perguntar: posso decidir arbitrariamente que a palavra "subsistência" significa que o segurado especial precisa ser miserável, vale dizer: de forma totalmente desvinculada da própria lei?

O juiz deve suspender seus preconceitos e considerar o contexto socioprático, ou melhor, a forma de vida das pessoas e a própria lei. Jane Lucia Wilhelm Berwanger lembra: "Se o próprio legislador acrescenta o desenvolvimento no núcleo familiar, já admite que subsistência era um elemento restritivo, mas que se relativiza com essa ampliação. Da mesma forma, todas as autorizações expressas de rendas, atividades e condições, servem para ampliar o conceito de segurado especial" [5].

O dispositivo supramencionado traz duas possibilidades muito claras, quais sejam, o trabalho indispensável para a "própria subsistência" e ao "desenvolvimento da família". As modalidades não excluem uma à outra; suplementam-se mutuamente e podem, além disso, reforçar uma à outra. Uma das fontes de erro consiste, precisamente, em isolar expressões do contexto em que elas surgem, o que significa não compreender toda a dimensão da gramática da linguagem. Numa leitura sistemática, tem-se que o segurado especial pode ser vereador, sócio de empresa, etc. Ele pode contribuir para o sistema da Previdência Social (até o teto), sem que isso implique a perda da qualidade de segurado especial [6].

De um "é" não se deve tirar um "deve" ser contra o destinatário das normas previdenciárias. Neste nível, não importa mais o que diz a lei, mas, sim, aquilo que o juiz acredita ser a "vontade do julgador". Ao fim e ao cabo, a "vontade do legislador" nada mais é do que aquilo que o juiz diz que é. E aí está o problema: na cabeça de muitos juízes, não é permitido ao trabalhador da roça melhorar suas condições de vida, adquirir qualquer item de conforto, enfim, sob pena de perder a qualidade de segurado especial e, consequentemente, o direito ao benefício que "caridosamente" é concedido pela Previdência Social.

É pertinente a crítica que Bentham, com sua ironia peculiar, fazia à common law, chamando-a de dog law. Para Bentham, o direito sob o common law só funcionava retrospectivamente, ou seja, assim como quando se quer modificar determinado comportamento de um cão: espera-se que o cão faça aquilo para, somente então, puni-lo. Streck resume que Bentham dizia que o cidadão inglês aprendia as regras do direito inglês "do mesmo modo que um cachorro aprendia a não fazer algo: apanhando" [7]. Isso não é mera curiosidade. De fato, falta uma comunicação clara à população, como acontece com os trabalhadores rurais que se casam com alguém da "cidade" e, na justiça, veem seu trabalho desconsiderado sob o argumento de que "dispensável à subsistência".

Waldron trabalha com a ideia de autoaplicação, no sentido de tornar possível a (auto)aplicação voluntária das normas, pois isso é uma questão de respeito com os jurisdicionados e sua capacidade de agir [8].

Os pré-juízos fazem a interpretação incorrer em erro. Por isso Lenio Streck defende que "apenas quem suspende os próprios pré-juízos é que interpreta corretamente. Um julgador que não consegue suspender seus pré-juízos está incapacitado para a sua tarefa" [9]. Os pré-juízos causam mal-entendidos, prejudicando o destinatário das normas previdenciárias.

Michel Moore sustenta que antirrealistas devem sempre qualificar seus próprios juízos morais com proposições do tipo "Eu acho que…", "Eu penso que…", "…mas, é claro, isso é apenas a minha opinião"; e que, por isso, para evitar a óbvia arbitrariedade que subjaz a esse tipo de afirmações, os juízes devem acreditar na objetividade. Um juiz cético é o juiz que impõe sua "opinião" aos "desafortunados litigantes" [10].

Este artigo tem como finalidade provocar o juiz a tomar consciência dos seus pré-juízos (a partir dos quais ele projeta sentido), pois a ele cabe mostrar que sua subjetividade não está se sobrepondo àquilo que deveria ser interpretado. As regras são a única coisa que nós temos contra a arbitrariedade.

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[1] ROSENBERG, Marshal. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2021. p. 42.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 233.

[3] SÃO PAULO. Nona Vara Criminal da Capital. Queixa-crime nº 936/07.

[4] BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm. Segurado especial  novas teses e discussões. 3. Ed. Curitiba: Juruá, 2020. p. 68-69.

[5] BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm. Segurado especial  novas teses e discussões. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2020. p. 80.

[6] Aqui caberia a máxima: "Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus", ou seja: "Onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir''.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 169.

[8] WALDRON, Jeremy. The Concept and the Rule of Law. New York University School of Law Public Law & Legal Theory Research Paper Series, Working Paper nº 08-50, set. 2008, pp. 24-29. Disponível em <https://ssrn.com/abstract=1273005>.

[9] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 364.

[10] "Hapless ligigants". Cf. MOORE, Michael S. Moral reality. Wisconsin Law Review, nº 06, nov./dez. 1982, pp. 1061-1156.

Autores

  • é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

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