Opinião

Afinal, é mesmo necessário um novo Código de Mineração?

Autor

  • Pedro Rezende de Magalhães

    é advogado especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC Minas (pós-graduação lato sensu) coautor da obra Direito Ambiental em Desenvolvimento (Editora D'Plácido) e ex-procurador-geral da Câmara Municipal de Guaxupé (MG) no biênio 2019-2020.

30 de abril de 2024, 18h23

Vem de algum tempo a discussão sobre a necessidade de reformulação do arcabouço jurídico minerário brasileiro, que muitos hoje apontam como arcaico e obsoleto, afinal o principal diploma da área é um decreto-lei editado no longínquo ano de 1967, qual seja, o de número 227, de 28 de fevereiro.

A cada novo episódio relevante no setor — geralmente negativo, infelizmente —, como os desastres de Mariana e Brumadinho ou a crise no território Yanomami, o tema parece ganhar novo fôlego e movimentar o noticiário nacional, com clamores justificados de maior segurança jurídica e atuação legislativa.

Um novo Código de Mineração?

Consequentemente, de tempos em tempos surgem novas propostas com conteúdo que vão desde simples alterações pontuais em determinados regimes, como a Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), mais em voga atualmente, até uma reformulação mais ampla do sistema como um todo, o que foi objeto, por exemplo, de grupo de trabalho instituído no âmbito da Câmara dos Deputados em 2021, denominado GT Minera.

É possível, do relatório final [1] do colegiado supracitado, extrair uma síntese desse sentimento: “As reformas pelos quais o normativo [Decreto-Lei nº 227/1967] passou no decorrer do tempo (…) foram suficientes para modernizá-lo apenas em parte, pois não eliminaram anacronismos que até hoje interferem no bom funcionamento do setor. (…) muitos problemas crônicos são observados, e o tratamento conferido para essas anomalias nem sempre é o que resulta no melhor interesse público. (…) É necessário prover o setor de instrumentos mais ágeis (…). A atratividade do setor ao capital internacional depende de estabilidade jurídica e de um ambiente de negócios transparente e desburocratizado”.

Mas, para isso, é mesmo necessário um novo Código de Mineração?

À primeira vista, ao menos epistemologicamente, uma reforma ampla não é necessariamente garantia de maior segurança jurídica. Pode ser, antes, seu exato oposto. Em tese, o tempo é aliado da norma. Quanto mais ela vigora, mais é aplicada — e, portanto, reiterada — ao longo de determinado interstício. Logo, as “regras do jogo” se estabilizam e ostentam, cada vez mais, a previsibilidade almejada, o que é, grosso modo, em última instância, sinônimo de segurança.

Os tempos mudam e com eles também as práticas e costumes, evidentemente. Entretanto, no caso da atual codificação, que vige por quase seis décadas, não há indícios inequívocos da imperiosidade de uma modificação essencial, i.e., que atinja o próprio núcleo da norma. Os regimes minerários são bem consolidados, o direito de prioridade satisfatoriamente reconhecido, os prazos procedimentais relativamente estáveis, os deveres do titular robustos, o limite de ingerência estatal bem delimitado.

Legislação esparsa e sucateamento da ANM

Com efeito, uma característica indesejável do Direito Minerário brasileiro é sua forte ramificação em legislação esparsa e, até pouco tempo atrás, ainda à época do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), sua exacerbada dependência de atos normativos infralegais, os quais, prolíficos, abundavam no sistema. Eis, isso sim, um grande estorvo à segurança jurídica, que começou a ser superado, com maior ênfase, a partir da Portaria nº 155, de 12 de maio de 2016 (Consolidação Normativa do DNPM).

Não se pode olvidar, outrossim, que o projeto contido na Lei nº 13.575, de 26 de dezembro de 2017, qual seja, a criação de uma autarquia especial vinculada ao Ministério de Minas e Energia, nos moldes da Agência Nacional de Energia Elétrica e da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, jamais fora de fato implementado.

É notória a inexistência de equiparação real entre as demais agências reguladoras e a ANM. Conforme amplamente noticiado, seu orçamento é diminuto, o quadro de pessoal não tem a mesma remuneração de cargos equivalentes na estrutura administrativa federal, sequer possuindo o número mínimo de integrantes necessário para consecução de suas finalidades, e seus sistemas estão defasados, não entregando a eficiência atualmente exigida pelo setor.

Não à toa, muitos se referem a esse panorama como um estado de sucateamento do órgão, o que se reflete em incapacidade fiscalizatória e perda de arrecadação, esta última, segundo projeções [2], da ordem de até R$ 153 bilhões nos últimos cinco anos.

Consolidação das leis

Destarte, é curioso notar que muito se fala sobre novas alterações legislativas, mas pouco se faz para assegurar a aplicação das normas já existentes. Tal descompasso pode servir a vários propósitos, inclusive o de desviar a atenção para o cerne do imbróglio.

Reprodução

A título ilustrativo, existe uma modalidade de proposição que, porque complexa, trabalhosa e pouco midiática, é raramente utilizada. Segundo obra da Câmara dos Deputados [3], os projetos de consolidação têm por escopo o “(…) agrupamento das normas jurídicas que disciplinam a mesma matéria, com vistas a evitar a dispersão das leis, uma vez que há milhares de normas aprovadas no Brasil (…). O projeto de lei de consolidação visa à sistematização, à correção, ao aditamento, à supressão e à conjugação dos textos legais (…)”.

Regulamentada pela Lei Complementar nº 95/98, a consolidação das leis, que consiste na integração de todas as leis pertinentes a determinada matéria num único diploma legal, revogando-se formalmente as leis incorporadas à consolidação (artigo 13, §1º), é instituto que permitiria melhor sistematizar o ordenamento minerário nacional, inclusive eliminando inconsistências e ambiguidades, mas sem adentrar ao mérito do que hoje está em vigor e plenamente funcional, preservando-se o conteúdo normativo original dos dispositivos consolidados.

Conclusão

Ora, estima-se que a mineração responde por cerca de 4% do Produto Interno Bruto brasileiro, o que torna inegável, ipso facto, que a atividade é pujante e desenvolve-se razoavelmente bem, a despeito de seus desafios, sejam eles estruturais ou conjunturais. O mesmo não se pode dizer do Estado, que falha não no âmbito legislativo, mas sim executivo, notadamente na fiscalização de suas outorgas e na prestação do que ademais lhe compete. A questão não é o arcabouço jurídico, mas sim a falta de investimentos estruturantes. Não é teórico, mas prático.

O setor, não há dúvidas, pode e precisa ser aperfeiçoado. Aliás, essa deve ser uma busca constante, em qualquer área. Não há legislação perfeita, tampouco modelo irretocável. Todavia, nem todos os obstáculos se resolvem no Parlamento, com papel e caneta. A vigilância sobre a aplicação da lei é tão — senão mais — importante quanto sua própria redação, e só pode ser feita com a presença positiva do Estado, atuante, em campo.

Um novo Código de Mineração, sem que se implemente o “novo DNPM” — ou seja, uma ANM que seja de fato uma agência reguladora, devidamente estruturada tal qual as demais (Aneel, ANP, ANA etc.) —, não trará mais segurança jurídica, apenas adicionará um novo diploma à profusa legislação brasileira. É o que se pretende?

 

 


[1] Disponível aqui.

[2] Disponível aqui.

[3] Curso de Regimento Interno da Câmara dos Deputados. 6ª edição. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2020.

Autores

  • Advogado, especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC Minas (pós-graduação lato sensu). Coautor da obra Direito Ambiental em Desenvolvimento (Editora D'Plácido). Foi procurador-geral da Câmara Municipal de Guaxupé (MG) no biênio 2019/2020.

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