Opinião

Os marcos temporais para cobrança da CFEM estão realmente pacificados?

Autor

  • Rodrigo Pires

    é advogado no escritório William Freire Advogados Associados pós-graduado em Direito Tributário pela FGV mestre em Direito pela PUC-MG e professor do IEC PUC Minas.

29 de janeiro de 2024, 21h14

A última alteração legislativa nos marcos temporais de cobrança da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM) ocorreu no afastado ano de 2003 e, mesmo após mais de 20 anos, ainda suscita intensos debates. Historicamente, a doutrina e a jurisprudência se debruçam sobre qual seria a correta delimitação dos marcos temporais, principalmente para definir a decadência e prescrição.

O tema evoluiu no plano jurisprudencial, pacificando, por ora e ainda que em âmbito infraconstitucional, a intensa discussão que existia entre mineradores e a ANM a respeito do assunto.

Inexigibilidade de royalty e histórico
Porém, há um marco temporal relevante para a cobrança da CFEM que ainda recebe pouca atenção, a despeito do seu grande impacto. Trata-se da inexigibilidade do royalty cobrado para fatos geradores ocorridos há mais de cinco anos. O professor Fernando Facury Scaff abordou o tema nesta revista há alguns anos [1], mas percebe-se que a matéria evoluiu pouco jurisprudencialmente desde então.

Para compreendermos melhor o assunto, é necessário refazer o cenário histórico e atual sobre a prescrição, decadência – e inexigibilidade – da CFEM.

Anteriormente à Lei nº 9.636/1998, por inexistência de previsão normativa específica que tratasse da matéria, a base legal para cálculo do prazo prescricional de cinco anos encontrava-se no artigo 1º do Decreto-Lei nº 20.910/1932, que dizia que as “dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem”.

Embora referido dispositivo trate da delimitação temporal relativa ao direito do contribuinte contra a administração pública, a sua aplicabilidade à cobrança da CFEM foi definida pelo Poder Judiciário com fundamento no princípio da isonomia.

Dessa forma, durante o período anterior à edição da Lei nº 9.636/1998, a União possuía o prazo prescricional de cinco anos para exigir os valores que entendia como devidos, sem a previsão de qualquer prazo decadencial para a constituição dos créditos.

Esse entendimento foi confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, que pacificou o tema, conforme demonstra o AgRg no AREsp 255.070/CE [2].

Apenas em 15 de maio de 1998, com o advento da Lei n. 9.636, foi instituído prazo prescricional específico para as cobranças das dívidas patrimoniais (tal como a CFEM) da União. Referida lei dizia que prescrevem “em cinco anos os débitos para com a Fazenda Nacional decorrentes de receitas patrimoniais”.

Essa lei foi alterada com a promulgação da Medida Provisória nº 1.787, de 30/12/1998, sucessivamente reeditada até a sua conversão Lei n. 9.821/1999, que inovou ao instituir o prazo decadencial de cinco anos para a constituição de créditos patrimoniais, excluindo a expressão “Fazenda Nacional”.

Aplicação e aumento dos prazos
Assim, não deixou dúvidas de que os prazos de prescrição e decadência estatuídos na Lei nº 9.636/1998 são aplicáveis a quaisquer receitas patrimoniais devidas à União ou aos órgãos da sua administração, ao dizer, no caput do artigo 47, que fica “sujeita ao prazo de decadência de cinco anos a constituição, mediante lançamento, de créditos originados em receitas patrimoniais, que se submeterão ao prazo prescricional de cinco anos para a sua exigência.”

Posteriormente, adveio a Medida Provisória nº 152, que entrou em vigor em 24 de dezembro de 2003, convertida na Lei nº 10.852/2004, aumentando o prazo decadencial para a constituição de créditos patrimoniais de cinco para dez anos.

Orientação nº 12
Buscando consolidar o tema em âmbito administrativo, o antigo DNPM publicou a Orientação Normativa do Diretor-Geral nº 12/2016, que partindo de uma interpretação questionável das regras, definiu que os (1) créditos relativos aos fatos geradores ocorridos até 29/12/1998 estariam sujeitos ao prazo prescricional de cinco anos, sem previsão de prazo decadencial; e (2) aqueles relativos aos fatos geradores ocorridos a partir de 30/12/1998 estariam sujeitos ao prazo decadencial de dez anos e prazo prescricional de cinco.

Essa interpretação, que retroagiu o prazo decadencial de dez anos para os fatos geradores ocorridos a partir de dezembro de 1998 – embora a Medida Provisória que o criou só tenha sido publicada em 2003 – se pautou no artigo 2º da referida MP, que dizia que o prazo decadencial decenal seria aplicado “aos prazos em curso para constituição de créditos originários de receita patrimonial.”.

Visão da doutrina
Surgiu aqui um dos problemas. Como pode uma norma de 2003 modificar o prazo decadencial para fatos geradores ocorridos anos antes? Essa patente retroação teria suporte constitucional e legal?

A doutrina se debruçou intensamente sobre o tema, concluindo, acertadamente, que essa pretensão seria inconstitucional e ilegal, por violação ao princípio da irretroatividade.

Cite-se, por exemplo, os comentários de Paulo Honório de Castro Júnior e Tiago de Mattos, que afirmam que o “prazo decadencial que se iniciou após 1998 – prazo este de cinco anos – não poderia ter sido majorado, para dez anos, em 2003, por vulneração direta ao princípio da irretroatividade das normas.[3].

Entendimento do STJ
A 1ª Seção do STJ, porém, em julgamento de Embargos de Divergência (EREsp 1.718.447/RS), entendeu que não haveria ilegalidade na referida norma, ao dizer que a “ampliação do interregno temporal para dez anos, pela entrada em vigor da Lei 10.852/2004, teve aplicação imediata aos prazos em curso, computando-se o tempo já decorrido sob a égide da legislação anterior”.

Com a devida vênia, discordamos da solução dada pelo STJ ao tema, diante da flagrante retroação de uma norma posterior para atingir fatos geradores ocorridos anos antes, em clara afronta à segurança jurídica. A despeito desse julgamento, entendemos que o tema ainda não está pacificado jurisprudencialmente, principalmente em razão da necessidade do enfrentamento expresso do STF a respeito da violação à Constituição.

Missão para o Supremo
A matéria tem forte aderência constitucional e é necessário que a Suprema Corte se manifeste, de modo expresso, sobre a inconstitucionalidade de normas que pretendem retroagir seus efeitos para atingir fatos geradores ocorridos anteriormente à sua criação. É essencial que o STF se manifeste sobre a proteção ao princípio da segurança jurídica e à irretroatividade das normas.

Sobre esse tema, é importante lembrar do julgamento da ADI 1.753/DF. Naquele caso, discutia-se a validade de Medida Provisória que majorou o prazo decadencial da ação rescisória, quando manejada pelas Fazendas Públicas e Ministério Público, de dois para quatro anos. O ministro Relator Sepúlveda Pertence, ao julgar a Medida Cautelar, afirmou que “sendo da melhor doutrina (…) o entendimento de que iniciado um prazo ‘não é mais suscetível de ser aumentado nem diminuído, sem condenável retroatividade’ (Carlos Maximiliano (…)”.

Conclusão
Em outras palavras, ainda não há a pacificação jurisprudencial a respeito da (im)possibilidade de retroação das normas que majoraram o prazo decadencial da CFEM, ao menos, em âmbito constitucional.

Em tempo
Mas há outro tema ainda mais atual e que exige atenção do Poder Judiciário.

Trata-se da parte final do § 1º, do artigo 47, da Lei nº 9.636/1998. Referido dispositivo diz que o prazo decadencial “conta-se do instante em que o respectivo crédito poderia ser constituído, a partir do conhecimento por iniciativa da União ou por solicitação do interessado das circunstâncias e fatos que caracterizam a hipótese de incidência da receita patrimonial, ficando limitada a cinco anos a cobrança de créditos relativos a período anterior ao conhecimento.”.

Pouco se fala sobre a restrição temporal imposta ao final daquele dispositivo, especificamente no trecho que diz que fica limitada a cinco anos a cobrança de créditos relativos a período anterior ao conhecimento. Como essa regra incide sobre todas as receitas patrimoniais, qual é a sua correta aplicação à CFEM? É basilar na hermenêutica jurídica que a lei não contém palavras inúteis. Ou seja, as palavras devem ser compreendidas como tendo eficácia jurídica [4].

Da redação do dispositivo, constata-se que há um terceiro marco relevante para a cobrança das receitas patrimoniais: o prazo quinquenal de inexigibilidade.

Explica-se: O § 1º do artigo 47 da Lei nº 9.636/1998 diz que o prazo decadencial “conta-se do instante em que o respectivo crédito poderia ser constituído”, sendo que esse momento é considerado como aquele em que a União, por iniciativa ou solicitação do interessado, teve conhecimento das circunstâncias e fatos que caracterizam a hipótese de incidência da receita patrimonial.

Em relação à CFEM, essa fase ocorre quando o Relatório Anual de Lavra é apresentado ou, no máximo, quando o Processo de Cobrança é lavrado e formalizado. É nesse momento que a ANM consolida o seu pleno conhecimento a respeito dos fatos e dos valores que ela entende como devidos e os formaliza no ato de cobrança.

Partindo da interpretação completa daquele dispositivo legal, ou seja, levando em consideração a sua integralidade, conclui-se que os créditos de CFEM cujos fatos geradores são anteriores ao prazo de cinco anos, contados da data da apresentação do Relatório Anual de Lavra ou, quando menos, da lavratura do Processo de Cobrança, são inexigíveis.

Embora a jurisprudência seja escassa sobre os efeitos dessa regra de inexigibilidade para a CFEM, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região já enfrentou, em diversas oportunidades, o tema em relação ao laudêmio, manifestando-se sempre no sentido que defendemos neste artigo.

Veja-se, por exemplo, o entendimento firmado por aquele tribunal no Agravo de Instrumento 5027507-93.2018.4.03.0000, oportunidade em que foi consignado que dispõe “expressamente o preceito legal invocado, em sua parte final, “…ficando limitada a cinco anos a cobrança de créditos relativos a período anterior ao conhecimento”, de forma que, mesmo sendo um crédito legítimo, líquido e certo, não alcançado por decadência e nem por prescrição, será ele, porém, inexigível na situação ali descrita na norma legal, norma que continua em vigor e com plena aplicabilidade”.

Também merece destaque o julgamento do Recurso de Apelação nº 5026541-66.2018.4.03.6100. Na oportunidade, aquele tribunal reforçou a necessidade de interpretação integral do dispositivo legal, ao afirmar que o posicionamento estatal “fragmenta a redação do § 1º do art. 47 da Lei nº 9.636/1998, acolhendo a primeira parte que interessa à administração pública (quanto ao termo inicial da decadência) mas recusando a parte final porque contraria sua pretensão de arrecadação (limitação da exigibilidade a cinco anos).”.

Além disso, reiterou que a “inexigibilidade prevista na parte final do § 1º do art. 47, § 1º, da Lei nº 9.636/1998 é aplicável a todas as taxas tratadas nessa lei, porque o legislador não diferenciou receitas patrimoniais periódicas (como foro e taxa de ocupação) das esporádicas (como o laudêmio)”.

Como se não bastasse, consignou que “o art. 47 da Lei nº 9.636/1998 rege toda a matéria relativa a decadência e prescrição dessas receitas patrimoniais não tributárias da União Federal, não havendo razão jurídica para negar vigência à parte final do § 1º desse mesmo preceito normativo quanto à inexigibilidade”.

Em outras palavras, é ilegítima a pretensão da administração pública que nega e ignora a aplicabilidade da regra de inexigibilidade à CFEM, limitando-se a tratar apenas das regras de decadência e prescrição.

O assunto ainda terá que ser enfrentando especificamente para CFEM, oportunidade em que se espera que o Poder Judiciário confirme que o royalty mineral, além de se sujeitar às regras de decadência e prescrição, também se sujeita à inexigibilidade quinquenal prevista na parte final do § 1º do artigo 47 da Lei n. 9.636/1998.


[1] https://www.conjur.com.br/2020-mar-09/justica-tributaria-atual-prazo-decadencia-cobranca-cfeme-royalties-petroleo-anos/

[2] “PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL PARA COBRANÇA DE RECEITA PATRIMONIAL. COMPENSAÇÃO FINANCEIRA PELA EXPLORAÇÃO DE MINERAIS – CFEM. DÉBITOS ANTERIORES À VIGÊNCIA DA LEI 9.636/1998. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL CONFORME DISPÕE O DECRETO 20.910/1932. 1. “O Supremo Tribunal Federal firmou sua jurisprudência no sentido de que a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais possui natureza jurídica de receita patrimonial, conforme evidenciam os seguintes precedentes: MS 24.312/DF, Plenário, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 19.12.2003, p. 50; RE 228.800/DF, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 16.11.2001, p. 21; AI 453.025/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 9.6.2006, p. 28″ (RESP 1.179.282/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, Dje 18.11.2010). 2. O caso dos autos versa a respeito de débitos anteriores  à vigência da Lei 9.636/1998. Deve-se aplicar, portanto, o prazo de prescrição quinquenal previsto no art. 1º do Decreto 20.910/1932, ante a inexistência de previsão normativa específica a respeito do tema. 3. Segundo a jurisprudência do STJ, “os créditos anteriores a edição da Lei n. 9.821/99 não estavam sujeitos à decadência, mas somente a prazo prescricional de cinco anos ( art.1º do Decreto n. 20.910/32 ou 47 da Lei n. 9.636/98)” (RESP 1.064.962/PE, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, Dje 10.10.2008).” (AgRg no AREsp 255.070/CE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/04/2013, DJe 09/05/2013)

[3] CASTRO JÚNIOR, Paulo Honório de; SILVA, Tiago de Mattos. CFEM: Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais – Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 189

[4] Cf. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 8a. ed., Freitas Bastos, 1965, p. 262

Autores

  • Professor do IEC PUC Minas e outros cursos de pós-graduação. Mestre em Direito pela PUC/MG. Advogado no escritório William Freire Advogados Associados

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!