Segunda Leitura

Desafios, riscos e limites da Corregedoria Nacional de Justiça

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

28 de abril de 2024, 10h31

As Corregedorias do Poder Judiciário exercem um papel de grande relevância na administração da Justiça, razão pela qual, por duas vezes, escrevi sobre o tema nesta coluna. Na primeira, em 2008, falei sobre a relevância do papel do Corregedor[i] e na segunda, em 2014, apontei o fato de que a “Omissão das corregedorias também causa descrédito do Judiciário”.[ii]

Com a criação do Conselho Nacional de Justiça, em 31 de dezembro de 2004, nele inseriu-se a Corregedoria Nacional de Justiça, a ser exercida por um Ministro do Superior Tribunal de Justiça. A iniciativa não foi bem recebida pelos Tribunais de Segunda Instância, em especial os Tribunais de Justiça, tendo sido considerada uma indevida ingerência em seus serviços.

Em que pesem algumas circunstâncias inadequadas, como a de um juiz federal de primeira instância ser controlado por nada menos que três Corregedorias (a do TRF, a do CJF e a do CNJ), tendo que prestar contas a diferentes órgãos, o fato é que no âmbito dos Tribunais de Apelação (TJs, TRFs, TRTs, TREs e TJMs) o controle era necessário. Com efeito, qualquer pessoa com mínima vivência no espaço judiciário sabe as dificuldades de um tribunal punir os seus iguais. É para poucos ter coragem e autoridade para instaurar investigação contra alguém de sua convivência, às vezes um colega de décadas na carreira.

Quando foi aprovada a Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN, no distante ano de 1979, o número de desembargadores era pequeno e os desvios funcionais raros. Tal era o respeito aos magistrados, que o legislador, em pleno regime militar, não impôs a pena de suspensão, considerando que um juiz afastado de suas funções ficaria desmoralizado e impedido de exercê-las com dignidade, quando do seu retorno.[iii]

Porém, após a Constituição de 1988, o Judiciário agigantou-se e, ainda que não haja dados exatos, calcula-se em 17.000 o número de juízes. E por óbvio as transgressões aumentaram, não apenas pelo crescimento dos seus integrantes, como pelo declínio da ética e das relações interpessoais no Brasil, fenômeno este que atinge todas as profissões. Por vezes, o próprio papel na sociedade não é bem compreendido pelos magistrados, inclusive no topo da carreira, surgindo iniciativas totalmente despropositadas, como a de criar uma calçada da fama, em boa hora suspensa por um presidente de tribunal.

Pois bem, a partir de sua criação o Conselho Nacional de Justiça teve vários Corregedores e, como era de se esperar, posicionamentos foram absolutamente diversos. Dos mais tímidos, a resolver os problemas dando preferência ao diálogo, até os mais ativos, participando diretamente de correições ordinárias ou extraordinárias.

Nesse mundo de interesses divergentes e por vezes pouco visíveis, de condutas tão díspares, de dificuldades políticas, de riscos de iniciativas graves sem sucesso, tudo em meio à falta de poder para ordenar certas medidas, fácil é ver o tamanho do desafio e dos seus riscos.

A falta de disposição de enfrentar os obstáculos leva alguns Corregedores a terem atuação burocrática, com riscos bem menores. Outros, todavia, lançam-se à luta, por vezes enfrentando problemas cujas consequências irão acompanhá-los por toda a vida. O ministro Gilson Dipp enfrentou a sucessão nos cartórios extrajudiciais, tornando obrigatório o acesso por concurso e não por hereditariedade. A ministra Eliana Calmon empenhou-se no combate à corrupção, uma luta difícil pela dificuldade na obtenção de provas e pela existência dos acusados. São dois exemplos significativos.

Mas, se desafios e riscos são inerentes ao exercício das funções de Corregedor Nacional e, bem ou mal, são previsíveis, os limites da atuação são nebulosos. Entre o pode e o não pode há uma zona mal demarcada, que poderá ser bem ou mal trilhada, conforme a personalidade de quem exerce a importante função. Vejamos um exemplo.

No dia 15 deste mês, segunda-feira, o Corregedor Nacional, por decisão sua, individual, afastou os Desembargadores Federais Thompson Flores e Loraci Flores de Lima, do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, bem como o Juiz Federal Danilo Pereira Júnior, convocado para participar de um julgamento.[iv] O motivo seria terem julgado um recurso, em caso relacionado com a Operação Lava Jato, de forma contrária à decidida pelo STF. No mesmo dia e da mesma forma, foi afastada a juíza Gabriela Hardt, que respondeu pela 13ª. Vara Federal de Curitiba após a saída do então titular Sérgio Moro, sob o fundamento de irregularidades na Vara.

O fato despertou imediata reação de associações de magistrados. A AJUFE manifestou-se energicamente contrária.[v] A AMB e todas as associações regionais de juízes federais também se mostraram surpresas e descontentes com o afastamento liminar, uma vez que no dia seguinte, terça-feira, os fatos seriam examinados pelo Conselho.

Posta a questão como exemplo, pois, afinal, de todas as situações semelhantes no CNJ esta foi a mais grave, vejamos a situação do ponto de vista exclusivamente jurídico, sem nenhum exame de mérito e muito menos dos aspectos políticos que a envolvem.

A primeira pergunta que se faz é: pode o Corregedor Nacional afastar um magistrado por ato individual?

A Constituição, no art. 103-B, § 4º, não prevê tais poderes ao CNJ e, menos ainda, o art. 105-B ao Corregedor. Todavia, na LOMAN está previsto o afastamento preventivo quando da instauração de processo administrativo pelo tribunal ou seu órgão especial (artigo 73, § 2º). Da mesma forma, complementando a lei, o Regimento Interno do CNJ, que é posterior à LOMAN, prevê a possibilidade de afastamento no art. 75, par. único.[vi] Não há previsão desta drástica medida ser da iniciativa unilateral do Corregedor no art. 3º do Regulamento Geral da Corregedoria Nacional de Justiça.[vii] É no art. 147 da Lei 8.112, de 1990, que o afastamento preventivo é permitido, lei esta de aplicação subsidiária aos regramentos específicos da magistratura.

A suspensão provisória das atividades judiciais deve ser aceita, pois há situações graves que, se não forem sustadas de imediato, irão gerar consequências danosas irreversíveis à administração ou aos administrados. Imagine-se, por exemplo, um juiz que, reiteradamente, vale-se da função para obter vantagem ilícita consistente em não pagar por serviços que lhe são prestados por prestadores de serviços da sua comarca. Ou aquele que, viciado em drogas, mantém contato permanente com traficantes para suprir as suas necessidades. Tais condutas, por óbvio, não podem esperar a reunião do Conselho, muitas vezes aguardando o término de recesso judiciário. Devem ser obstadas imediatamente. Por tais motivos, e em caráter excepcional, o afastamento unilateral pelo Corregedor deve ser aceito.

Entretanto tal procedimento é de caráter excepcional e deve estar baseado em fato grave, com possibilidade de continuar a ser danoso, e motivado de forma convincente. Basta ver que o art. 75, par. único do Regimento Interno do CNJ dispõe que: “Acolhida a instauração do processo disciplinar, ou no curso dele, o Plenário do CNJ poderá, motivadamente e por maioria absoluta de seus membros, afastar o magistrado ou servidor das suas funções”. Conclusão lógica, se o afastamento exige maioria absoluta dos membros do CNJ, o mesmo afastamento, realizado pelo Corregedor, exige razões de gravidade elevada e comprovada.

Mas como estabelecer parâmetros? Simples, basta seguir os adotados para a prisão preventiva no processo penal. O art. 313 dá os requisitos, por exemplo, o inc. III, que diz: “se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”. Por exemplo, não se justifica o afastamento se o juiz saiu da comarca e os erros praticados não se repetem na outra; se longo tempo se passou entre os fatos e o momento do pedido; se os antecedentes do magistrado consistem em representações da mesma pessoa, a indicar vingança. Neste particular vale lembrar que o STF desconsidera maus antecedentes para fins de dosagem da pena. Com mais razão não há por que considerar representações que sejam fruto de vingança.

Em suma, nas circunstâncias do exemplo mencionado ao início, forçoso é concluir que o afastamento unilateral, a 24 horas da decisão do órgão competente, não preenche os requisitos de validade.

Mas como e quem dosará as situações de afastamento provisório? A resposta é simples: o Regimento Interno do CNJ, que deve ser explícito quanto aos requisitos para a drástica medida, quando ela for imprescindível.

E não é só, outras situações também precisam ser mais bem definidas. A Corregedoria Nacional não tem orientação sobre quando poderá intervir em investigações feitas nas Corregedorias Estaduais ou de Tribunais da União. É preciso que isto fique mais claro , evitando-se trabalho em dobro, e que a ação cumulativa fique ao critério pessoal de cada Corregedor Nacional, que se guiará por sua opinião e nada mais.

Encerrando, a Corregedoria Nacional é necessária e tem um papel da máxima relevância no aprimoramento do Poder Judiciário brasileiro. Mas é preciso que se procure sempre aprimorá-la e isto significa, também, respeitar os demais segmentos da magistratura nacional, pois o afastamento de um magistrado fere não apenas a pessoa ou o órgão judicial, mas todo o sistema de Justiça, que passa a ser visto com desconfiança e desconsideração.

[i]  FREITAS, Vladimir Passos de. Segunda leitura: corregedor exerce uma das mais nobres funções. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2008-nov-29/corregedor_justica_exerce_nobres_funcoes/. Acesso em 27 abr. 2024.

[ii]  FREITAS, Vladimir Passos de. Omissão das corregedorias também causa descrédito do Judiciário. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-dez-14/segunda-leitura-omissao-corregedorias-tambem-causa-descredito-judiciario/. Acesso em 27 abr. 2024.

[iii] LOMAN. Lei Complementar nº 35, de 14 mar. 1979, artigo 42. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp35.htm. Acesso em 27 abr. 2024.

[iv] Brasil de fato. CNJ afasta juíza Gabriela Hardt e desembargadores por irregularidades na Lava Jato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/04/15/cnj-afasta-juiza-gabriela-hardt-e-desembargadores-por-irregularidades-na-lava-jato. Acesso em 27 abr. 2024.

[v] CNN.  Associação de juízes se diz surpresa e critica afastamento de magistrados da Lava Jato.

Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/associacao-de-juizes-se-diz-surpresa-e-critica-afastamento-de-magistrados-da-lava-jato/. Acesso em 27 abr. 2024.

[vi]   CNJ. Regimento Interno Anotado. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/regimento-interno-anotado-23-08-30.pdf. Acesso em 27 abr. 2024.

[vii] CNJ. Regulamento Geral da Corregedoria Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/regulamento-geral-da-corregedoria-nacional-de-justica/. Acesso em 27 abr. 2024.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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