Opinião

Novo capítulo da 'tese do século': exclusão do adicional de ICMS aos fundos de combate à pobreza

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26 de abril de 2024, 19h19

A fixação da tese de que o ICMS não compõe as bases de cálculo do PIS e da Cofins representou somente o primeiro capítulo de uma série aparentemente interminável de controvérsias decorrentes do julgamento da “tese do século”.

Algumas dessas controvérsias incluem: a tentativa de restringir o alcance da tese somente ao ICMS pago, mas não ao destacado; a exclusão do ICMS também das aquisições que geram créditos de PIS e Cofins, posteriormente inserida pela Lei nº 14.529/23; e as ações rescisórias para limitar o direito à compensação dos contribuintes que ingressaram em juízo após a fixação da tese em março de 2017, mas obtiveram decisões favoráveis transitadas em julgado antes do julgamento da modulação dos efeitos em abril de 2021.

Novo capítulo

Não bastasse, agora se inicia um novo capítulo relacionado ao adicional de ICMS destinado aos Fundos de Combate à Pobreza (FECP). Esses fundos foram instituídos pela Emenda Constitucional nº 31/2000, que acrescentou o artigo 82 ao ADCT, autorizando estados e Distrito Federal a instituírem adicionais de até 2% na alíquota do ICMS sobre produtos e serviços supérfluos. Além disso, a redação excepciona o montante arrecadado com o adicional da regra de repartição de receitas do ICMS com os municípios.

Na Solução de Consulta Cosit nº 61/2024, a Receita Federal manifestou o entendimento de que o adicional destinado aos FECP não deveria ser excluído das bases do PIS e da Cofins. A sucinta fundamentação da solução de consulta alega que o adicional teria natureza jurídica que não se confunde com a do ICMS, por motivos que podem ser assim agrupados: (1) o adicional tem efeito “cascata” e é cumulativo, bem como (2) sua receita é vinculada e não sujeita à repartição com os municípios.

Fernando Frazão/Agência Brasil

Inicialmente, não parece que um adicional de um tributo ostenta natureza diversa daquela do próprio tributo “base”. Não se trata de algo inédito no ordenamento. Por exemplo, o adicional de 10% do IRPJ possui a mesma natureza jurídica dos 15% de IRPJ. Da mesma forma, o adicional de 1% da Cofins-Importação tem a mesma natureza da referida contribuição.

Seletividade e natureza jurídica do adicional

Quanto ao adicional de ICMS destinado FECP, o artigo 82, §1º, do ADCT restringe sua incidência aos produtos e serviços supérfluos, aludindo ao princípio da seletividade, traço típico ICMS. Ainda, a própria redação estipula que a instituição do adicional deve seguir as condições previstas na lei complementar de que trata o artigo 155, §2º, XII, da Constituição. Essa lei é responsável pelas normas gerais do ICMS, incluindo definições sobre contribuintes, regime de compensação, base de cálculo, local das operações, entre outros aspectos.

Se a intenção do constituinte reformador fosse atribuir natureza jurídica diversa ao adicional, seria razoável presumir que ele seria regulado por uma legislação distinta, sem remissão à lei que estabelece as normas gerais do ICMS. Portanto, a partir da redação dos dispositivos constitucionais, não é possível extrair natureza que não de imposto ao adicional.

Além disso, o adicional ao FECP não poderia ser classificado como contribuição, como já sugerido, pois a competência dos estados e do Distrito Federal para instituírem contribuições está limitada às destinadas ao custeio do regime próprio de previdência social. Defender a natureza de contribuição seria decretar a inconstitucionalidade do adicional.

Em relação ao primeiro ponto da solução de consulta, o efeito cumulativo do adicional não é suficiente para atribuir-lhe uma natureza jurídica diversa. É sabido que a não cumulatividade do ICMS é repleta de falhas que, em certas situações, tornam o próprio imposto cumulativo. Tanto é que a almejada não cumulatividade ampla ou plena é um dos principais objetivos da reforma tributária.

Existem várias situações em que o ICMS não consegue atender plenamente à não cumulatividade, como a adoção do crédito físico, limitações ao creditamento de bens do ativo imobilizado, restrição ao creditamento de bens de uso e consumo, ausência de mecanismos eficientes de devolução ou transferência de saldos credores, restrições às compensações entre ICMS, ICMS-importação, ST e Difal, entre outras.

No entanto, não é pelos eventuais efeitos cumulativos dessas hipóteses restritivas que elas deixam de ostentar natureza jurídica de ICMS.

Quanto ao segundo ponto levantado pela solução de consulta, a vinculação da receita do adicional também não altera sua natureza jurídica. Ainda que a regra geral seja a da não vinculação das receitas provenientes de impostos, o texto constitucional traz exceções. O rol de exceções previsto no artigo 167, inciso IV, não é taxativo, e a vinculação das receitas do adicional ao FECP representa mais uma exceção ao princípio da não afetação.

Exceções

Não há impedimento para que emenda constitucional excepcione a não vinculação das receitas de impostos. Ademais, no caso do FECP, a excepcional afetação das receitas é materialmente compatível com os valores constitucionais, pois tem o nobre objetivo de combater a pobreza, um dos objetivos fundamentais da República Federativa, conforme previsto no artigo 3º da Constituição.

Da mesma forma, a não repartição das receitas do adicional com os municípios é uma exceção à regra geral, mas não é suficiente para alterar sua natureza jurídica. A repartição das receitas não é um elemento necessariamente diferenciador das espécies tributárias. A repartição sucede a tributação, sendo matéria afeta ao Direito Financeiro.

No caso específico do FECP, como o combate à pobreza é competência comum dos entes (artigo 23, X), o mesmo artigo 82 do ADCT determina que os municípios instituam fundos para esse fim, financiados pelo adicional de meio ponto percentual na alíquota do ISSQN. Em alguma medida essa possibilidade compensa a não repartição do adicional de ICMS.

Mais uma fonte de litígios

Por fim, o posicionamento externado na solução de consulta também é questionável à luz das razões de decidir do Tema nº 69 de Repercussão Geral. Em suma, o ICMS foi excluído do PIS e da Cofins por não ingressar de forma definitiva no patrimônio das empresas, reconhecendo-se seu caráter transitório, já que é repassado aos cofres estaduais.

O adicional ao FECP, além de compartilhar a mesma natureza jurídica do ICMS, igualmente transita pelo patrimônio da empresa, até ser repassado aos cofres públicos. A única diferença nesse repasse é que, em alguns casos, é necessário o recolhimento em guias separadas, para a inclusão de códigos de receita específicos, haja vista a destinação vinculada do adicional.

Dessa forma, como o entendimento manifestado pela Cosit é vinculante no âmbito da administração fazendária, a exclusão do adicional ao FECP das bases de cálculo do PIS e da Cofins será mais uma fonte de litígios decorrentes da “tese do século”. Resta aguardar se a PGFN acompanhará o entendimento da Receita Federal e se os tribunais aplicarão o também vinculante entendimento do Tema nº 69 de Repercussão Geral.

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