Retrospectiva 2023

STF proferiu no ano mais de 11 mil decisões em matéria tributária

Autores

  • Hamilton Dias de Souza

    é advogado sócio fundador da Advocacia Dias de Souza e da Dias de Souza Advogados Associados e mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

  • Daniel Corrêa Szelbracikowski

    é sócio da Advocacia Dias de Souza mestre em Direito Constitucional pelo IDP e especialista em Direito Tributário pelo Ibet.

  • Pedro Júlio Sales D'Araújo

    é doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) mestre e bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) especialista em Direito Tributário pela FGV-SP ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal pesquisador visitante bolsista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha) e advogado.

19 de dezembro de 2023, 7h06

Em 2023 [1], o Supremo Tribunal Federal proferiu 98.018 decisões, das quais 11.251 foram classificadas como sendo de matéria tributária, o que corresponde a 11,47% do total das decisões. Dois fatos chamam a atenção: o percentual de 4,6% de recursos providos, um número que revela a extensa aplicação de óbices processuais, e os resultados havidos nas repercussões gerais, nas quais 75% das decisões foram proferidas em desfavor do contribuinte. Das 13 repercussões gerais julgadas em matéria tributária [2], apenas 4 podem ser consideradas favoráveis aos contribuintes. Embora isso, por si só, não represente acerto ou desacerto do Tribunal, o que se verificará abaixo é que, em algumas ocasiões, houve a desconsideração de princípios e regras constitucionais estruturantes do sistema tributário.

O ano judiciário iniciou, em fevereiro, com o julgamento dos RE 955.227 (Tema 885) e 949.297 (Tema 881) nos quais o STF estabeleceu que “1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”

A conclusão de mérito do tribunal, relativamente à perda de eficácia da coisa julgada em relações tributárias de trato sucessivo, na hipótese de modificação do estado de direito, é razoável à luz dos artigos 505, I, 535, III, § 5º, do CPC e dos princípios constitucionais da isonomia e da livre concorrência. Porém, a não concessão de efeitos prospectivos à decisão [3] contraria a segurança jurídica, porque cria passivos até então inexistentes, inclusive em relação a tributos que não estavam em discussão, e gera claras assimetrias quanto ao tratamento concedido à Fazenda Pública e aos contribuintes em casos de modulação de efeitos. Basta rememorar que, no julgamento do tema 69 (“tese do século”), o STF modulou a decisão em favor da Fazenda em razão de julgamento repetitivo do STJ, o que, nada obstante também existente nos casos dos temas 881 e 885, não tem sido suficiente para se aplicar ao caso a mesma ratio decidendi.

Mesmo na hipótese de não modulação dos efeitos para os casos concretos que cuidaram de CSLL, a Corte deveria seriamente considerar uma modulação parcial, ao menos para assegurar a segurança da parte do precedente que assentou, pela primeira vez, os efeitos gerais e vinculantes das decisões proferidas na sistemática de repercussão geral. Apesar de ser conhecido o fenômeno da “objetivação” do controle difuso, foi apenas nesse julgamento dos temas 881 e 885 que o tribunal pela primeira vez declarou, com efeitos gerais, a eficácia erga omnes e vinculante dos pronunciamentos fixados em repercussão geral, de sorte a equiparar os efeitos do controle abstrato de constitucionalidade ao do difuso.

Até então, isso dependia da edição de súmula vinculante, como previsto na lei 11.417/2006 e no artigo 354-E do RISTF. O voto condutor, da lavra do ministro Roberto Barroso, admite expressamente tratar-se de uma “nova interpretação” do artigo 52, X, da CF/88, razão por que causará espécie se o tribunal não modular para frente ao menos essa parte da decisão que tem o potencial de atingir todas as repercussões gerais tributárias julgadas no passado pela Corte, com a interferência sobre direitos e garantias de pessoas que nem sequer foram “partes” no julgamento desses temas 881/885.

Também foi julgada a ADI 5.869 na qual assentou-se a constitucionalidade da incidência do ISS na cessão do uso de espaços em cemitérios para sepultamento, uma vez que a atividade envolveria a guarda e conservação de restos mortais, a envolver prestação de serviço. A decisão seguiu a orientação do Tribunal quanto à caracterização de serviço. De fato, embora o STF ainda mantenha o conceito de direito privado de serviço para aqueles serviços denominados “puros”, nas atividades mistas ou complexas possibilita-se a cobrança do ISS se houver a previsão de sua tributação em lei complementar e a prestação de ao menos uma obrigação de fazer, ainda que aliada a obrigações de dar, como era o caso.

Ainda em fevereiro, o STF finalizou o julgamento da ADI 7.036 e declarou a inconstitucionalidade parcial do § 2º da cláusula 21 do Convênio ICMS nº 110/2007 na parte que trata do ICMS incidente na venda de combustíveis a distribuidoras localizadas a Zona Franca de Manaus (ZFM). Prevaleceu o entendimento de que apenas a operação de saída interestadual do combustível (EAC ou B100) para distribuidora de combustíveis localizada na ZFM se equipara à exportação e, por isso, seria imune ao ICMS, condição não extensível às outras áreas de livre comércio. A decisão privilegia a ZFM em função de sua proteção constitucional estratégica ao país.

Em março, no julgamento do RE 700.922 (Tema 651), o Tribunal fixou que “I – É inconstitucional a contribuição à seguridade social, a cargo do empregador rural pessoa jurídica, incidente sobre a receita bruta proveniente da comercialização da sua produção, prevista no artigo 25, incisos I e II, da Lei nº 8.870/1994, na redação anterior à Emenda Constitucional nº 20/1998; II – É constitucional a contribuição à seguridade social, a cargo do empregador rural pessoa jurídica, incidente sobre a receita bruta proveniente da comercialização da sua produção, prevista no art. 25, incisos I e II, da Lei 8.870/1994, na redação dada pela Lei nº 10.256/2001; III – É constitucional a contribuição social destinada ao Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), de que trata o art. 25, § 1º, da Lei nº 8.870/1994, inclusive na redação conferida pela Lei nº 10.256/2001”. O precedente é importante por reiterar a natureza jurídica da contribuição ao Senar como contribuição social e não de interesse de categoria profissional, o que deve repercutir em outras discussões do tribunal, a exemplo da que se relaciona com a imunidade dessa contribuição sobre as receitas de exportação.

No mesmo mês, o STF finalizou o julgamento do RE 796.939 (Tema 736) e da ADI 4.905 e declarou ser “inconstitucional a multa isolada prevista em lei para incidir diante da mera negativa de homologação de compensação tributária por não consistir em ato ilícito com aptidão para propiciar automática penalidade pecuniária”. Trata-se de decisão que privilegia os princípios do devido processo legal e da boa-fé em sua dimensão objetiva, uma vez que não poderia o contribuinte ser responsabilizado única e exclusivamente pelo indeferimento do pedido de compensação, sem que constatada abusividade no exercício do direito de petição. No RE 781.926 (Tema 694), o STF julgou que “O diferimento do ICMS relativo à saída do álcool etílico anidro combustível (AEAC) das usinas ou destilarias para o momento da saída da gasolina C das distribuidoras (Convênios ICMS nº 80/97 e 110 /07) não gera o direito de crédito do imposto para as distribuidoras”. A decisão reafirmou o entendimento de que a técnica do diferimento respeitaria a não-cumulatividade, não sendo possível confundir a cobrança unificada do ICMS com cobrança cumulativa do imposto.

Ainda em março, foi referendada a liminar deferida na ADC 77 para “afirmar que é vedada a exclusão, com fundamento na tese das “parcelas ínfimas ou impagáveis”, de contribuintes do Refis I, os quais aceitos no parcelamento, vinham adimplindo-o em estrita conformidade com as normas existentes do programa, até o definitivo julgamento desta ação.” Na mesma decisão foi determinada “a reinclusão dos contribuintes adimplentes e de boa-fé, que desde a adesão ao referido parcelamento permaneceram apurando e recolhendo aos cofres públicos os valores devidos, até o exame do mérito”. A ADC foi convertida em passará a tramitar como ADI 7370. A decisão privilegia a boa-fé objetiva, uma das vertentes da segurança jurídica.

Em abril, a concessão de cautelar no RE 835.818 (Tema 843), o qual cuida da tributação do crédito-presumido de ICMS pelo PIS e Cofins, para determinar o imediato sobrestamento do Tema 1182 dos recursos repetitivos, gerou certa tensão institucional entre o STJ e o STF. Isso, porque a liminar fora proferida instantes antes de o STJ iniciar a sessão de julgamento e a sua discussão não se limitava à tributação do crédito-presumido de ICMS pelo PIS e Cofins, mas a todos os demais incentivos fiscais de ICMS pelo IRPJ e CSLL.

Mesmo com a liminar, o STJ deu continuidade à sessão para entender, em suma, que “1. Impossível excluir os benefícios fiscais relacionados ao ICMS, — tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, salvo quando atendidos os requisitos previstos em lei (artigo 10, da Lei Complementar n. 160/2017 e artigo 30, da Lei nº 12.973/2014), não se lhes aplicando o entendimento firmado no EREsp 1.517.492/PR que excluiu o crédito presumido de ICMS das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL. 2. Para a exclusão dos benefícios fiscais relacionados ao ICMS, — tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL não deve ser exigida a demonstração de concessão como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos”. Posteriormente, foi proferida decisão de reconsideração, pelo STF, para limitar a suspensão do Tema 1.182/STJ aos estritos termos do que viesse a ser discutido no Tema 843/STF, pendente de apreciação.

Também em abril foi encerrado o julgamento dos embargos de declaração da ADC 49. A Corte reconheceu que a inconstitucionalidade voltada à incidência de ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa passará a valer a partir de 2024, sendo ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito. Decidiu ainda, quanto à transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos do mesmo titular, que, esgotado o prazo sem que os Estados disciplinem o tema, ficará assegurado o direito dos contribuintes. Após o julgamento, houve a edição do Convênio Confaz nº 178/2023 e a aprovação pela Câmara do PLP 153/2023. A concomitância de ambos os diplomas anuncia potencial conflito normativo que poderá novamente chegar ao Supremo.

O STF reconheceu também a existência de repercussão geral da questão objeto do RE 1.390.517 (Tema 1247) e reafirmou seu entendimento para fixar a tese de que “As modificações promovidas pelos Decretos 9.101/2017 e 9.112/2017, ao minorarem os coeficientes de redução das alíquotas da contribuição para o PIS/PASEP e da Cofins incidentes sobre a importação e comercialização de combustíveis, ainda que nos limites autorizados por lei, implicaram verdadeira majoração indireta da carga tributária e devem observar a regra da anterioridade nonagesimal, prevista no artigo 195, § 6º, da Constituição Federal”.

Em maio, a Corte concluiu o julgamento da ADI 5.835, conduzida pela Advocacia Dias de Souza. A ação contestava a constitucionalidade da Lei Complementar (LC) n. 157/2016, com as alterações da LC nº 175/2020, segundo a qual o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) será devido no município do tomador dos serviços de planos de medicina e de serviços financeiros. O STF declarou inconstitucionalidade das alterações promovidas pela LC nº 157/2016, pois a legislação complementar não apontou com clareza pressupostos essenciais para a tributação do imposto no domicílio do tomador, mesmo após a edição da LC nº 175/2020.

De acordo com o STF, ao invés de evitar conflitos, a lei complementar ampliou os conflitos de competência entre os municípios, gerou insegurança jurídica e comprometeu a regularidade da atividade econômica. Há importante aspecto da discussão, que consiste em saber se uma norma precisa ter densidade normativa suficiente para ser considerada constitucional. O assunto foi bem percebido pelo ministro Alexandre de Moraes, relator das ações, que utilizou como ratio decidendi uma das poucas decisões do STF que bordejaram o tema da inconstitucionalidade de lei complementar por falta de determinação, a ADI 1600, na qual se assentou que “o legislador infraconstitucional tem a obrigação de produzir normas de solução de conflitos de competência entre as unidades federadas (CF, art. 146, I). Não o fez. Pelo contrário, disciplinou a matéria inviabilizando a aplicação das regras constitucionais” (p. 28, Voto Nelson Jobim – ADI 1600, DJ 26/06/2003).

No caso da LC 157/16, o legislador complementar não estabeleceu suficientemente, por exemplo, quem seria o tomador em cada serviço; qual seria o domicílio a ser considerado nos casos de operações realizadas pela internet, do exterior e nos casos em que o tomador possuísse múltiplos domicílios. De fato, sob o ângulo da segurança, as normas indeterminadas não apenas geram imprevisibilidade comportamental, mas, sobretudo, impedem o controle de legalidade, dificultam a aplicação do direito e tornam problemática a defesa do direito subjetivo dos destinatários legais. Por isso, normas desse jaez não podem ser consideradas constitucionais, o que revela importante diretriz não só para casos judiciais futuros, mas para a reforma tributária em gestação no Congresso, que remete à lei complementar a definição de inúmeras questões fundamentais do possível novo sistema tributário.

Ainda em maio, o Plenário referendou a cautelar concedida na ADC 84. Na ação discute-se a validade do Decreto nº 11.374/2023, que manteve, com efeitos imediatos, o patamar original das alíquotas de PIS e Cofins sobre receitas financeiras, nada obstante elas tivessem sido reduzidas em 50% no final de 2022 pelo Decreto nº 11.322/2022. A Corte compreendeu que o  decreto de 2023 não representou majoração de tributo, na medida em que o decreto revogado, de 2022, não chegou surtir efeito em função da inocorrência de fato gerador das referidas contribuições, o faturamento mensal, o que afastaria a aplicação do princípio da anterioridade nonagesimal. A relativização da anterioridade constitui um equívoco. Afinal, sopesou-se a aplicação de uma regra a partir de condição nela não prevista, em prejuízo aos contribuintes que deveriam ser resguardados por tal garantia.

Em junho, o ministro André Mendonça determinou, por meio de decisão monocrática no RE 1.072.485 (Tema 985), a suspensão dos processos que discutem a natureza jurídica do terço constitucional de férias, para fins de incidência da contribuição previdenciária patronal, em razão da pendência da análise quanto à modulação dos efeitos no processo paradigma. A decisão traz segurança jurídica, por evitar a consolidação de decisões judiciais, proferidas pelas instâncias de origem, em sentido eventualmente distinto do que virá ser definido pelo STF.

O Tribunal também julgou o RE 609.096 (Tema 372) e fixou a tese de que: “As receitas brutas operacionais decorrentes da atividade empresarial típica das instituições financeiras integram a base de cálculo PIS/Cofins cobrado em face daquelas ante a Lei nº 9.718/98, mesmo em sua redação original, ressalvadas as exclusões e deduções legalmente prescritas”. Na mesma oportunidade, foram acolhidos os embargos no RE 400.479 para assentar, em relação às seguradoras, que as receitas de prêmios por elas auferidas em razão dos contratos de seguro estão abrangidas pelo conceito de faturamento, ficando tais receitas sujeitas ao PIS/Cofins, ante a Lei nº 9.718/98, mesmo em sua redação original, ressalvando-se as exclusões e as deduções legalmente prescritas. Além de inovar no histórico conceito de faturamento da Corte [4], algumas questões ainda poderão gerar controvérsias, tais como a exata delimitação do conceito de receita para as seguradoras e o tratamento a ser dado às atividades voltadas à previdência privada. Algumas dessas questões possivelmente serão apreciadas no RE 722.528, afetado à repercussão geral neste ano, no qual se discutirá a possibilidade de cobrança de aludidas contribuições a partir das particularidades das entidades fechadas de previdência complementar.

*Continua na parte 2

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[1] Até 05/12/2023, data da realização da pesquisa. Dados extraídos da plataforma “Corte Aberta”, do Supremo Tribunal Federal.

[2] Desconsiderados outros temas em que o STF se limitou a fixar teses ou apreciar embargos opostos.

[3] Prevalecente até o momento na maioria dos votos proferidos no julgamento não finalizado dos aclaratórios.

[4]SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa. Conceito de faturamento causa insegurança jurídica

Autores

  • é sócio fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados e Advocacia Dias de Souza, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

  • é sócio do escritório Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo IDP e especialista em Direito Tributário pelo Ibet.

  • é doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), mestre e bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), especialista em Direito Tributário pela FGV-SP, ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal, pesquisador visitante bolsista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha) e advogado.

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