Opinião

A garantia ao direito de defesa em mecanismos negociais no âmbito criminal

Autor

  • Manuela Abath Valença

    é professora da graduação e do programa de pós-graduação da UFPE professora da graduação da Universidade Católica de Pernambuco doutora em Direito pelo PPGD-UnB mestre em Direito pelo PPGD-UFPE e pesquisadora do Asa Branca Criminologia.

26 de abril de 2024, 18h21

A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou duas novas súmulas em matéria criminal na sessão do dia 18 de abril de 2024. Uma delas, a de nº 667, orienta as reflexões aqui apresentadas e possui o seguinte enunciado:

Eventual aceitação de proposta de suspensão condicional do processo não prejudica a análise do pedido de trancamento da ação penal.

A súmula consolida um entendimento importantíssimo e já prevalente naquele tribunal em matéria de justiça penal negociada, tema que tem recebido a relevância merecida nos últimos anos no Brasil.

Diversos países no mundo têm passado por mudanças legislativas tendentes a adotar mecanismos negociais em suas legislações penais e processuais penais, movimento que Maximo Langer nomeia como “administrativização da justiça penal”. O termo se refere a pelo menos dois aspectos:

  • a) a tomada de decisão sobre o caso penal foge à figura das autoridades judiciárias;
  • b) acusados e acusadas renunciam a direitos processuais penais fundamentais no curso do procedimento [1].

No Brasil, esse movimento se inicia em 1995 com a Lei 9.099, que introduziu a transação penal e a suspensão condicional do processo. Posteriormente, legislações extravagantes trouxeram a delação premiada, a qual ganha robustez normativa apenas com a edição da Lei 12.850 de 2013 [2].

Por fim, entra no cenário nacional o acordo de não persecução penal (ANPP), inicialmente por meio das Resoluções 181 e 183 do Conselho Nacional do Ministério Público e, posteriormente, através da Lei 13.964 de 2019, que introduziu o artigo 28-A no Código de Processo Penal.

O fenômeno de expansão da justiça penal negociada tem aguçado a literatura especializada a refletir teórica e empiricamente sobre as consequências advindas de um modelo que sistematicamente abre mão do juízo oral e público [3].

De fato, a garantia anunciada no brocardo nulla poena sine iudicio [4] foi por séculos levada muito a sério, pois é no procedimento oral, público e com instrução criminal que se materializam direitos fundamentais do acusado e que se cumpre com o compromisso de produzir provas idôneas e capazes de proporcionar uma resposta jurisdicional justa, absolvendo inocentes e condenado culpados de modo proporcional.

Spacca

Nesta pequena reflexão, não há tempo para refletir sobre todas as relevantes provocações que esses estudos têm trazido ao campo processual penal, mas a aprovação da Súmula 667 remete a uma delas: o direito à ampla defesa como forma de reduzir injustiças em acordos penais. Em que medida a referida súmula caminha nesta direção?

Um dos principais riscos relacionados aos acordos penais é o de uma pessoa inocente aceitar uma proposta de cumprimento de pena, renunciando ao direito provar a sua inocência em Juízo. Por que alguém faria isso? As respostas são várias, de certo, mas vulnerabilidade talvez seja a palavra-chave para agregar a maior parte delas.

Nesses mecanismos, as partes em “negociação” estão em evidente situação de desigualdade. A simples posição de um ser acusado de um crime proporciona uma carga simbólica negativa sobre uma pessoa, bem diferente daquela advinda de ser um funcionário público, sobre quem recai a presunção legal de agir com fé pública. Neste sentido:

Trata-se, como adverte Edwin Schur, do fato de tal interação opor “especialistas desinteressados trabalhando ‘para o interesse público” e “pessoas que perseguem apenas seus próprios interesses, e que, por definição, já tendem a serem vistos como socialmente ofensivos”. Isso significa dizer que as personagens envolvidas no acordo ou transação não estão sentadas numa mesa de negociação como dois indivíduos de igual status, mas que uma delas, necessariamente, suporta uma carga de desvantagem estabelecida a priori [5]

Racismo influencia

Além dessa disparidade a priori, o sistema penal é estruturalmente seletivo, de modo que os indivíduos que se sentam no banco dos réus não raramente possuem vulnerabilidades acrescidas e estão em posição de grande incapacidade para barganhar. Desse modo, por exemplo, há evidências empíricas de que pessoas não brancas tendem a receber propostas piores e a aceitá-las em mecanismos negociais [6].

Por outro lado, em países como os Estados Unidos, o plea bargaing foi diretamente responsável pelo aumento do encarceramento, em especial de pessoas negras [7], para quem provar a inocência em Juízo é um obstáculo não apenas técnico, afinal o racismo opera também para criar um imaginário que faz presumir determinados grupos como culpados. Ainda, essa vulnerabilidade pode advir do fato de a pessoa estar presa preventivamente e ser compelida a aceitar qualquer proposta e em quaisquer termos pelo simples fato de desejar a liberdade.

Diante desse cenário desafiador, o direito de defesa ganha profunda relevância. Uma das formas de dirimir as injustiças advindas desses institutos negociais é a garantia a uma defesa técnica de qualidade e com tempo para analisar os fatos, produzir provas e exigir que sejam mostradas todas as evidências que o órgão da acusação possua, sejam as que desfavoreçam ou as que favoreçam a pessoa acusada ou suspeita.

Na prática, sabemos que essa não é essa a realidade em muitos locais e também não no Brasil. A defesa técnica costuma estar alijada de toda a fase investigativa, não podendo participar dos atos no inquérito policial, o qual possui ainda estrutura tipicamente inquisitiva. Por outro lado, a investigação defensiva ainda não é uma realidade para a maior parte dos réus brasileiros e apresenta dificuldades sensíveis mesmo àqueles que têm acesso a profissionais que possam desempenhar essa tarefa [8].

Desse modo, a perda de oportunidade da defesa já é inicial: o órgão da acusação costuma ter um arcabouço de informações produzidos em um procedimento tipicamente inquisitivo e, com esses documentos, faz uma proposta de acordo e ao acusado resta — de imediato — aceitar ou não.

Aceitar pode ser, de fato, vantajoso, e essa análise compete sobretudo à defesa, em diálogo com o seu cliente ou assistido. Porém, por vezes o acordo é admitido pelo simples receio de se enfrentar o processo criminal.

Em primeiro lugar porque ele, em si, proporciona danos e custos. Em segundo plano, porque fazer diagnóstico sobre a chance de ser condenado ou inocentado é muito difícil no Brasil. Afinal, não temos um debate maduro sobre standard probatório para a condenação, nem em nível normativo e nem em nível jurisprudencial [9].

Portanto, como avaliar seriamente se as evidências apresentadas pelo Ministério Público na fase de negociação teriam a robustez necessária para gerar, lá na frente, uma sentença condenatória ou não?

Valeria correr o risco?

Um exemplo bem breve: em crimes da Lei de Drogas (Lei 11.343 de 2006), apesar dos diversos investimentos doutrinários em sentido contrário, sabe-se que, muitas vezes, somente o testemunho prestado por policiais envolvidos em um flagrante é considerado suficiente para uma condenação [10]. Quem correria esse risco podendo, por exemplo, aceitar, um acordo de não persecução penal, na hipótese de imputação de um tráfico privilegiado?

Voltando à recém-publicada Súmula 667 do STJ, é fundamental que haja mecanismos que possam, havendo tempo hábil, discutir a imputação e a base fática que sustentou o acordo mesmo ele já tendo sido aceito, para que a defesa amplie sua margem de possibilidade de atuação, não ficando encurralada em um instante processual em que deve simplesmente aceitar ou não um acordo.

O entendimento exarado na súmula já vinha prevalecendo em julgados da 5ª e da 6ª Turmas do STJ [11], em cujos julgados se assevera que o aceite da proposta de suspensão condicional do processo não impediria a defesa técnica de impetrar Habeas Corpus trancativo, pois, “em caso de descumprimento das condições estabelecidas para a percepção do benefício legal, o réu poderá voltar a ser processado pela prática de condutas reputadamente atípicas” [12].

Desse modo, a razão de decidir nesses casos é o risco de eventual processo criminal voltar a tramitar diante da rescisão do acordo, não podendo se esperar, assim, uma conduta passiva da defesa diante de situações em que ela entende que a ação penal carece de justa causa. E esse entendimento deve prevalecer também para a transação penal e o acordo de não persecução penal. Afinal, neles, a consequência do descumprimento das medidas ou da quebra das condições impostas no ato negocial é a retomada da persecução penal.

Sem dúvidas, no caso do ANPP essa reflexão mereceria uma atenção específica, afinal, neles, a confissão é um requisito necessário à realização do acordo, o que, naturalmente, enfraqueceria a tese de trancamento da ação penal. Todavia, não a inviabiliza, bastando, para tanto, conferir à confissão, nessas hipóteses, o caráter que ela deve possuir de ato meramente instrumental para o negócio. Porém, não há espaço neste pequeno artigo de opinião para aprofundar essa tese.

De toda forma, ganha o direito de defesa com a Súmula 667 e com a possibilidade de buscar, pela via do habeas corpus, a solução mais justa ao caso penal.

 


[1] LANGER, Maximo. Plea bargaining, trial-avoiding conviction mechanisms, and the global administratization of criminal convictions. Annu. Rev. Criminol. 2019. DOI: 10.1146/annurev-criminol-032317-092255.

[2] VASCONCELLOS, Vinicius G. As tendências de expansão da justiça criminal negocial em âmbito internacional: a barganha como instituto importado em convergências entre sistemas. Revista de Estudos Criminais, São Paulo, v. 19, n. 76, p. 153-173, jan./mar. 2020.

[3] Uma interessante síntese dos termos deste debate pode ser lida em: ANITUA, Gabriel I.; SICARDI, Mariano. Hacia una “teoría” de los “juicios abreviados”: Necesidad de imponer límites legales y deontológicos para su aplicación. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 10, n. 1, e945, jan./abr. 2024. Em termos de pesquisas empíricas, indica-se o relatório: FAIR TRIALS. Efficiency over justice: insights into trial waiver systems in Europe. [S. l.]: Fair Trials, 2021. No Brasil, conferir o recente levantamento nacional sobre o ANPP, de cuja coordenação participou a autora: BRASIL, Conselho Nacional de Justiça, Fortalecendo vias para as alternativas penais: um levantamento nacional da aplicação do acordo de não persecução penal no Brasil, Brasília, 2023, Disponível em cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/09/lancamento-levantamento-anpp-1.pdf.

[4] Para Luigi Ferrajoli, por exemplo, a submissão à jurisdição, com acusação formal, produção de provas e direito de defesa, constitui a principal garantia processual penal em um modelo garantista. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. 4 Ed. São Paulo: RT, 2014, p. 432. Por outro lado, importante lembrar que mesmo em países como os Estados Unidos, de tradição adversarial e distinta de países como o Brasil e no qual o plea bargaing assume protagonismo em mais de 90% dos casos criminais em todos os estados e a nível federal, o direito ao júri está constitucionalmente consagrado e apenas passou a ser relativizado a partir do precedente Brady v. United States, julgado pela Suprema Corte Americana em 1970. DERVAN, Lucian E.; EDKINS, Vanessa. The innocent defendant’s dilemma: an innovative empirical study of plea bargaining’s innocence problem. Journal of Criminal Law and Criminology, Chicago, v. 103, n. 1, p. 1-48, 2013.

[5] BRASIL, Conselho Nacional de Justiça, Fortalecendo vias para as alternativas penais: um levantamento nacional da aplicação do acordo de não persecução penal no Brasil, Brasília, 2023, p. 14. Disponível em cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/09/lancamento-levantamento-anpp-1.pdf.

[6] PLEA bargaining and racial injustice. Fair Trials, [s. l.], 2022. Disponível em: https://www.fairtrials.org/app/uploads/2022/01/plea-bar- gaining-racial-injustice.pdf. Acesso em 18 abril 2024.

[7] ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 143.

[8] Ver: PRADO, Geraldo. Parecer. As garantias da investigação criminal: o direito de se defender provando. SCARPA, Antônio Oswaldo; HIRECHE, Gamil Föppel El. (Orgs.) Temas de Direito Penal e Processual Penal – estudos em homenagem ao juiz Tourinho Neto. Bahia: Juspodivm, 2013, p. 676.

[9] Ver: Matida, Janaína; Vieira, Antonio. Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção do standard de prova ‘para além de toda a dúvida razoável’ no processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Dossiê Provas no Processo Penal (coord: Aury Lopes Jr. e Yuri Felix), 2019, p. 221-248.

[10] Ver: JESUS, Maria Gorete Marques de. A verdade jurídica nos processos de tráfico de drogas. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018; MATIDA, Janaína. O Valor Probatório da Palavra do Policial. 15 mar. 2020. Disponível em: https://escoladecriminalistas.com.br/o-valor-probatorio-da-palavra-do-policial/ . Acesso em 19 abril 2024.

[11] AgRg no RHC 138532/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 26/10/2021, DJe 04/11/2021; HC 544800/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 21/09/2021, DJe 29/09/2021; HC 532052/SP, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020; RHC 93690/DF, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 13/03/2018, DJe 21/03/2018; HC 402718/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 17/08/2017, DJe 25/08/2017.

[12] RHC 92549/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 03/04/2018, DJe 09/04/2018.

Autores

  • é professora da graduação e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco e da graduação da Universidade de Pernambuco (UPE) e da Universidade Católica de Pernambuco, doutora em Direito pelo PPGD-UnB, mestre em Direito pelo PPGD-UFPE e pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia (UFPE/Unicap).

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