Opinião

Bloqueio de bens de pessoas jurídicas para reparação de danos no processo penal

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17 de abril de 2024, 6h04

O problema

No Brasil, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas é, em tese, restrita à Lei nº 9.605/98, que dispõe sobre crimes contra o meio ambiente. Na prática, porém, são recorrentes as situações em que pessoas jurídicas, incorporadas em sujeição passiva ao âmbito procedimentos penais instaurados contra pessoas físicas e que não envolvam crimes previstos na Lei nº 9.605/98, passam a suportar em sua esfera de direitos intervenções que, quando não equivalentes a verdadeiras penas (1), projetam-se como efeitos antecipados de uma futura condenação que não será a elas próprias endereçada.

Uma dessas situações consiste naquela aqui analisada: a afetação de pessoas jurídicas por medidas cautelares que busquem assegurar a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime (artigo 91, I, do CP). Neste artigo serão resumidamente expostos três argumentos tendentes a demonstrar o descompasso entre essa metodologia de afetação patrimonial e o marco normativo brasileiro (2).

O argumento de base sistemática

O itinerário inerente à prolação de uma sentença condenatória torna natural e mesmo esperado que um de seus efeitos consista em tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime. É que o juízo afirmativo sobre a responsabilidade penal apurada, associado à comprovação do dano ocasionado, conduz de forma automática à correlata responsabilidade civil-reparatória.

Tanto é assim que, nessas situações, não se poderá discutir, no campo extrapenal, sobre a existência do fato ou mesmo sobre sua autoria (artigo 935 do CC). E é por essa razão que o artigo 63 do CPP autoriza a execução da sentença penal condenatória contra o condenado no juízo cível.

Mas a lógica subjacente a esse sistema de reenvio entre as esferas penal e civil fica desestruturada caso manejada com a substituição da figura do “condenado” pela figura do “terceiro” — seja esse terceiro uma pessoa física ou mesmo uma pessoa jurídica relacionada ao fato delituoso.

Spacca

Lavrada sob as rédeas da correlação, a sentença condenatória se atém com exclusividade ao exame da responsabilidade (penal) atribuída à pessoa acusada. Isso significa dizer que não poderá o terceiro suportar afetações cautelares a pretexto do artigo 91, I, do CP porque sentença que serve de base à produção desse efeito não terá comportado qualquer exame sobre sua eventual concorrência para o resultado danoso, sendo certo ainda que ele (o terceiro) tampouco terá tido a oportunidade de ofertar resistência à configuração judicial de referida obrigação.

E é por essa razão que, quanto a terceiros que tenham concorrido ou se beneficiado do resultado danoso, mas que não tenham sido condenados pelo delito que lhe deu causa, o artigo 64 do CPP deixa aberta a possibilidade de que a vítima, seu representante legal e seus sucessores promovam, no cível, a correlata ação indenizatória de conhecimento na qual se procederá — em cognição probatória exauriente e com a garantia de todos os meios e recursos a tanto inerentes — à análise sobre sua eventual responsabilidade reparatória pelo fato delituoso.

E esse cenário em nada se altera à vista do frequentemente invocado “mantra” da solidariedade passiva da responsabilização por ato ilícito.

De fato, sob a perspectiva civil, na hipótese em que a ofensa seja ocasionada por mais de uma pessoa, todos os que para ela concorreram ficam solidariamente obrigados a reparar o dano causado (artigo 942, CC), o que equivale a afirmar que a indenização poderá ser integralmente exigida de um, de alguns, ou mesmo de todos os codevedores, a critério do credor (artigo 275, CC). Mas o que precisa ficar claro é que a solidariedade passiva é instituto de direito material e, nesses termos, comunica-se com reservas ao universo do processo. Conforme o STJ:

“(…) 1. O art. 275 do Código Civil – que prevê a solidariedade passiva – é norma de direito material, restringindo-se sua aplicação ao momento de formação do processo cognitivo, quando então o credor pode incluir no polo passivo da demanda todos, alguns ou um específico devedor; (…). 2. A responsabilidade solidária precisa ser declarada em processo de conhecimento, sob pena de tornar-se impossível a execução do devedor solidário (…).” (REsp 1423083/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, j. 06/05/2014, DJe 13/05/2014).

Segundo o STJ, portanto, o artigo 275 do CC tem sua aplicação “restrita ao momento de formação do processo cognitivo”, sendo necessário, à regular produção de seus efeitos, que a responsabilidade do devedor solidário seja “declarada em processo de conhecimento”.

Sob o ângulo penal, no entanto, mesmo que civilmente qualificadas como “responsáveis” para fins reparatórios, pessoas jurídicas jamais poderão ser formalmente incorporadas ao polo passivo de qualquer “processo de conhecimento” (que não envolvam a Lei nº 9.605/98) e, por essa razão, neles jamais terão “declarada” sua própria responsabilidade pelo fato delituoso gerador da obrigação indenizatória.

O argumento de base procedimental

Caso houvesse amparo normativo à afetação cautelar de terceiros (pessoas físicas ou jurídicas) pelo efeito da condenação previsto no artigo 91, I, do CP, seria ainda imprescindível, por um imperativo de devido processo, de contraditório e de ampla defesa, que o regramento processual lhes facultasse o manejo de intervenções aptas à garantia de seus direitos.

Sob a perspectiva da legislação brasileira, entretanto, não há instrumento que viabilize a resistência por parte de terceiros frente à configuração judicial da obrigação de reparar os danos causados pelo crime, ou mesmo no tocante à aplicação de medidas cautelares destinadas a assegurar sua utilidade.

A compreensão dessa afirmação é facilitada por uma análise comparativa do marco cautelar. Como forma de assegurar a utilidade do efeito da condenação congênere previsto no artigo 91, II, “b”, do CP, o CPP prevê a medida cautelar de sequestro (artigo 125 do CPP), cujo fato gerador consiste na “existência de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens” (artigo 126 do CPP).

O sequestro, note-se, não se prende à existência de indícios de que a pessoa por ele afetada tenha concorrido para a infração objeto da apuração, mas apenas à exigência de que o patrimônio cuja constrição se pretende tenha origem no fato delituoso.

Essa delimitação da hipótese de incidência cautelar permite que, uma vez afetado, o terceiro (pessoa física ou jurídica) tenha condições de oferecer resistência lançando mão da figura prevista no artigo 130, II, do CPP (“embargos de terceiro”), sendo-lhe inclusive facultada a apresentação de caução como forma de levantamento da medida (artigo 131, II, do CPP).

O cenário, no entanto, seria diverso caso esse mesmo terceiro (pessoa física ou jurídica) viesse a ser afetado por alguma medida cautelar tendente a assegurar a obrigação de reparar o dano causado pelo crime (artigo 91, I, do CP).

No propósito de assegurar referido efeito da condenação, o CPP prevê as medidas de hipoteca legal (artigo 134 CPP) e arresto (artigo 136 e 137 CPP), as quais têm como fato gerador a certeza da infração e indícios suficientes de autoria. Diferente do sequestro, as cautelares em questão não se contentam com a aferição da natureza delituosa do patrimônio afetado; demandam, em sentido diverso, indícios bastantes de que a pessoa cujo patrimônio se pretende afetar foi a responsável pelo resultado danoso.

Tanto é assim que as hipóteses legalmente previstas de levantamento da hipoteca legal e do arresto consistem na absolvição ou na extinção da punibilidade do próprio acusado (artigo 141 do CPP), não havendo previsão a respeito da exoneração de terceiros que eventualmente venham a ser impactados.

A reforçar essa inviabilidade, o artigo 144 do CPP é categórico ao remeter à jurisdição cível o acautelamento de bens do “responsável” que não figure como acusado no processo (3). A opção legislativa põe às claras a inadequação da via penal para a afetação patrimonial de terceiros.

O argumento de base comparativa

Entra em cena, por último, a constatação de que a palavra “terceiros” é de todo estranha à estrutura semântica do artigo 91, I, do CP, mas não o é no tocante à estrutura semântica de preceitos congêneres que regulam efeitos extrapenais da condenação.

A esse respeito, dispõe o artigo 91-A do CP sobre a possibilidade de que a “perda alargada” dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele tido como compatível com seu rendimento lícito recaia sobre bens “transferidos a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir do início da atividade criminal”.

Essa comparação tem sua relevância porque legitima, em bases objetivas e dentro de um cenário de estrita pertinência temática, a afirmação no sentido de que, quando quis, o legislador constituído aludiu de forma expressa à possibilidade de afetação de terceiros pelos efeitos extrapenais da condenação. E não o tendo feito no tocante ao efeito previsto no artigo 91, I, do CP, a autorização para sua extensão subjetiva deve ser considerada não existente.

Balanço

Na forma como vêm sendo aplicadas no ambiente processual brasileiro, medidas cautelares contra pessoas jurídicas que tenham por finalidade assegurar a reparação dos danos causados pelo crime carecem de fundamentação normativa que as ampare. Constituem, portanto, uma ilegítima e gravosa intervenção estatal no patrimônio de quem as suporta.

 

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1 A título de exemplo, a suspensão do exercício de atividade econômica e a proibição de contratar com o poder público – modalidades de penas restritivas de direitos aplicáveis às pessoas jurídicas nos termos da Lei nº 9.605/98, cuja aplicação – em processos que não envolvam crimes ambientais – vem sendo amplamente aceita pela jurisprudência. Por todos: STJ, RMS 60.090/RS. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. 05/11/2019, DJe 12/11/2019.

2 Essas e outras questões são abordadas no livro “Aplicação de medidas cautelares contra pessoas jurídicas no processo penal: uma abordagem à luz da desconsideração (inversa) da personalidade jurídica”, lançado pela Livraria do Advogado.

3 “Art. 144. Os interessados ou, nos casos do art. 142, o Ministério Público poderão requerer no juízo cível, contra o responsável civil, as medidas previstas nos arts. 134, 136 e 137.”

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