Opinião

O ICMS, a ADC 49 do STF e o Tema 986 do STJ sobre a Tust/Tusd

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24 de abril de 2024, 18h30

Não é de hoje que verificamos conflitos de entendimentos entre os principais tribunais nacionais. Se analisarmos os fundamentos invocados pelo Supremo Tribunal Federal na ADC 49 e pelo Superior Tribunal de Justiça no Tema 986 (Tust/Tusd) chegaremos à conclusão de que novamente nos encontramos diante deste tipo de conflito.

Na ADC 49 firmou-se o entendimento de que o fato gerador do ICMS somente se materializa quando da ocorrência de negócios jurídicos; afastou-se, assim, a possibilidade de a mera movimentação de bens entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica concretize o fato gerador daquele imposto.

Embora essa característica tenha sido manifestada por décadas e em um sem-número de precedentes judiciais, ao firmar que o negócio jurídico é o pilar central da regra de incidência do ICMS, a Suprema Corte qualifica a matriz constitucional desse imposto que deve ser seguida em qualquer de suas hipóteses de incidência, sendo uma delas a que se reporta aos negócios jurídicos que tenham por objeto a energia elétrica.

Aliás, quando do julgamento do RE nº 593.824/SC, a Suprema Corte já havia tratado desta perspectiva para aplicar esse mesmo critério constitucional especificamente para as operações com energia elétrica. Portanto, para aquela corte, seja qual for a espécie de operação submetida à incidência do ICMS, a respectiva hipótese de incidência somente se materializa na medida em que se verifique a celebração de negócios jurídicos.

Entendimento do STJ e os dois fundamentos

Tal característica é de suma importância quando analisamos o que foi decidido no Tema 986. Isso porque o voto condutor do acórdão alinhou-se a posição diversa desse pressuposto estabelecido pelo STF para a incidência do ICMS, adotando, basicamente, dois outros fundamentos para justificar o cômputo das tarifas de uso do sistema de distribuição (Tusd) e transmissão de energia elétrica (TUST) na base de cálculo deste imposto.

O primeiro deles é que a Lei Federal nº 9.074/95, responsável pelo novo marco do sistema de energia elétrica brasileiro, não teria o condão de impor restrições à regra matriz do ICMS; seria, assim, uma lei meramente administrativa e concorrencial, “com mera divisão de tarefas, de geração, transmissão e distribuição, entre os agentes econômicos responsáveis por cada uma dessas etapas para a concretização do negócio jurídico tributável pelo ICMS.”

O segundo fundamento é o de que o §9º do art. 34 do ADCT-CF/88 estabeleceria que o ICMS incidiria sobre “todo o processo de fornecimento de energia elétrica, tendo em vista a indissociabilidade das suas fases de geração, transmissão e distribuição”.

Fundamentação não se sustenta

Esses fundamentos, data venia, contraditam exatamente o que a Suprema Corte fixou sobre o perfil constitucional do ICMS. Disso já se apura uma primeira conclusão, qual seja a de que este tema não é de índole infraconstitucional. Pelo contrário, é tipicamente constitucional, impondo, portanto, ao STF a palavra final a esse respeito. Isso, portanto, implica também afirmar que tal decisão do STJ, ainda que em sede repetitiva, não é óbice para a reanálise e a necessária reforma, agora, pela perspectiva da Carta Magna e nos termos dos referidos precedentes do STF.

Indo além, nota-se que esses próprios fundamentos invocados pelo STJ, em si, não se sustentam.

A uma razão, porque ainda que se admita, pelo amor ao debate, a premissa de que aquela lei teria natureza administrativa e concorrencial, isso não afasta o aludido pilar estabelecido pelo STF de que a hipótese de incidência do ICMS requer a celebração de negócios jurídicos, estes, por sua vez, firmados consoante prevê o artigo 104 e seguintes do Código Civil. E, sendo assim, aplica-se peremptoriamente o previsto nos artigos 109 e 110 do CTN.

Esclareça-se que não sustentamos a aplicação pura e isolada desses dispositivos do CTN, o que, aliás, já fora afastado pelo STF no julgamento do RE-RG nº 651.703 (Tema 581). O que sustentamos é justamente o que determinou a Suprema Corte nesse julgado, no sentido de prevalecer a interpretação sistemática de vários dispositivos normativos que versam sobre esta matéria — Lei nº 9.074/95, o Código Civil, o CTN e a CF/88 — para, assim, impor a necessária improcedência do entendimento que vingou no Tema 986 do STJ. É a conjugação, portanto, de todos os dispositivos que amparam a necessária reforma do Tema 986 pelo STF.

A segunda razão é a de que o invocado §9º [1] do artigo 34 do ADCT-CF/88 não autoriza a afirmação de que o ICMS/energia elétrica incidiria de forma una sobre toda a cadeia, devendo, assim, colher todos os custos havidos desde a sua produção/importação até o respectivo consumo.

A análise percuciente deste dispositivo não afasta a conclusão de que também ali a Constituição considerou os distintos agentes econômicos praticando negócios jurídicos relacionados ao bem energia elétrica. E justamente por isso, tratou do impor às empresas distribuidoras de energia elétrica a responsabilidade tributária pelo ICMS devido em todas as etapas anteriores até que se dê o fornecimento da energia elétrica ao consumidor final.

Spacca

Ora, somente se pode cogitar de responsabilidade tributária quando há distintas operações submetidas ao ICMS (distintos negócios jurídicos), inclusive as relativas à energia elétrica, como expressamente acolhido pelo Plenário do STF no RE nº 213.396-5. Exatamente neste sentido é a previsão contida no inciso II [2] do § 1º do artigo 9º da Lei Complementar nº 87/96.

Logo, este dispositivo do ADCT não autoriza dizer que o fornecimento de energia elétrica deverá considerar todos os respectivos custos de transmissão e distribuição, na medida em que seriam todos pertencentes à “operação de fornecimento de energia elétrica”.

Isto jamais foi aceito pela Suprema Corte, porque os precedentes citados firmam e reafirmam que o termo operações é sinônimo de negócio jurídico que, como dissemos acima, tem seu perfil normativo devidamente qualificado no Diploma Civil.

STF terá que reformar o Tema 986

É manifesto, portanto, o equívoco do STJ e contraria frontalmente a orientação do STF quando assim assevera nas suas razões de decidir:

Ponderados esses elementos, tenho que o ICMS incide sobre todo o processo de fornecimento de energia elétrica, tendo em vista a indissociabilidade das suas fases de geração, transmissão e distribuição, sendo que o custo inerente a cada uma dessas etapas – entre elas a referente à Taxa de Uso do sistema de Distribuição (TSUD) – compõe o preço final da operação e, consequentemente, a base de cálculo do imposto, nos termos do art. 13, I, da Lei Complementar n. 87/1996.”

Ora, a aludida cindibilidade destas fases é a marca imposta pela Lei nº 9.074/95; e ainda que se a qualifique como lei “meramente administrativa e concorrencial”, a incomunicabilidade delas então decorre do aludido pilar estabelecido pela Suprema Corte de que o ICMS somente pode onerar as operações constituídas sob o manto dos negócios jurídicos.

Logo, o ICMS somente pode onerar os negócios jurídicos que tenham por objeto o fornecimento de energia elétrica propriamente dita, porque a competência é para onerar as operações com energia elétrica, as quais não se confundem e tampouco se identificam, quer pelo conteúdo, quer pelas partes envolvidas, com os negócios jurídicos que tenham por objeto o uso das linhas de transmissão e os negócios jurídicos que tenham por objeto o uso das linhas de distribuição. São negócios jurídicos absoluta e juridicamente diversos que não podem ser unificados a pretexto de fazer incidir o ICMS sobre os respectivos valores.

É de rigor, portanto, a reforma pelo STF do Tema 986 julgado pelo STJ.

 

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[1]Art. 34. (…)

  • 9º  Até que lei complementar disponha sobre a matéria, as empresas distribuidoras de energia elétrica, na condição de contribuintes ou de substitutos tributários, serão as responsáveis, por ocasião da saída do produto de seus estabelecimentos, ainda que destinado a outra unidade da Federação, pelo pagamento do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias incidente sobre energia elétrica, desde a produção ou importação até a última operação, calculado o imposto sobre o preço então praticado na operação final e assegurado seu recolhimento ao Estado ou ao Distrito Federal, conforme o local onde deva ocorrer essa operação.”

[2]Art. 9º A adoção do regime de substituição tributária em operações interestaduais dependerá de acordo específico celebrado pelos Estados interessados.

  • 1º A responsabilidade a que se refere o art. 6º poderá ser atribuída:

II – às empresas geradoras ou distribuidoras de energia elétrica, nas operações internas e interestaduais, na condição de contribuinte ou de substituto tributário, pelo pagamento do imposto, desde a produção ou importação até a última operação, sendo seu cálculo efetuado sobre o preço praticado na operação final, assegurado seu recolhimento ao Estado onde deva ocorrer essa operação.”

 

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