Escritos de Mulher

A consciência feminista e sua contribuição para a efetivação dos direitos femininos

Autor

  • Alice Bianchini

    é advogada vice-presidente da ABMCJ/Nacional conselheira de notório saber do CNDM doutora em Direito pela PUC-SP e autora do livro Lei Maria da Penha 2021 ed. Tirant do Brasil.

24 de abril de 2024, 8h00

Consciência feminista e Teoria Feminista do Direito

A importância da perspectiva de gênero voltada à seara jurídica decorre de um amadurecimento da forma de ver e de vivenciar das mulheres, denominada, pela pesquisadora portuguesa Rita Moura Sousa, de consciência feminista, a qual “consiste na criação de conhecimento pela narrativa e análise sistemática de experiências partilhadas”. Essas situações, “apesar de inicialmente vivenciadas pelas mulheres como sofrimentos individuais, passam a ser compreendidos como experiências coletivas de opressão” [1].

Quando essa consciência feminista chega até a criação, interpretação, aplicação e execução de normas jurídicas, estamos diante de uma consciência feminista que constitui a base da Teoria Feminista do Direito (também chamada de Teoria Jurídica Feminista) [2].

O produto/resultado dessa consciência feminista pode (e deve) ser apropriado por todas as pessoas que se envolvem com o trato das questões femininas. As mulheres que adquiriram consciência feminista (e os homens que se sensibilizaram diante  de tal conhecimento) percebem com mais facilidade o quanto a estrutura jurídica tradicional trabalha a partir de uma vertente que prestigia, quando não privilegia, a perspectiva masculina.

Ademais, o confronto com a realidade da mulher (estatísticas sobre violência, impacto do trabalho invisível e de cuidado, carga mental, desigualdade salarial, permanência da mulher no relacionamento abusivo por motivações sociais, psicológicas e financeiras etc.) raramente trazida ao processo e que vem acompanhada e demonstrada por recentes pesquisas, principalmente, de Vitimologia [3], contribui para iluminar o ponto de vista das mulheres, cuja voz normalmente não se faz ouvir, em razão de histórico silenciamento da população feminina na sociedade.

O que não se mede não se muda

O levantamento de dados relativos à realidade da mulher só teve início em nosso país a partir da década de 90, quando são apresentadas, de forma mais sistemática, estatísticas sobre a violência contra a mulher. Foi quando se percebeu que a quantidade e a intensidade desse fenômeno criminal eram absurdamente elevadas.

Alice Bianchini, professora e doutora em Direito Penal

Muitas dessas informações, no ano de 2023, foram reunidas e constam no Mapa Nacional da Violência de Gênero [4], plataforma interativa de dados públicos oficiais sobre violência contra as mulheres, publicada no site do Senado Federal. O painel reúne as bases do Senado, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Sistema Nacional de Saúde (SUS).

Elaborado em parceria com Senado, Instituto Avon e Gênero e Número, o Mapa disponibiliza gráficos amigáveis, séries históricas, recortes regionais e étnico-raciais. Nele você encontra:

  1. Pesquisa Nacional sobre os Índice de Subnotificação Policial: dados sobre as vítimas que não registram ocorrência
  2. Registros Policiais, a partir de dados oficiais de Segurança Pública: números do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), que reúne boletins de ocorrência das secretarias estaduais de Segurança.
  3. Mortes Violentas de Mulheres: números do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), que coleta e armazena dados de declarações de óbito de cartórios de Registro Civil de todo o país.
  4. Registros de Violência Doméstica e Sexual: dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), cuja base é alimentada por registros de saúde que devem ser compulsoriamente informados ao SUS.
  5. Registros de medidas protetivas de urgência e processos: informações da Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud) – sistema que armazena e centraliza todos os processos dos tribunais.

Produção legislativa e consciência feminista

A legislação brasileira, no que tange à questão de gênero, apresenta longo histórico de discriminação negativa (e, portanto, prejudicial às mulheres), com exemplos de textos legais, alguns relativamente recentes, que previam expressamente tratamento discriminatório em relação à mulher, confirmando o entendimento de que o contexto social e cultural contribui para produzir e reforçar a crença na diferença, fazendo-se refletir, inclusive, na norma positivada [5].

Reprodução

Apesar dos índices assustadores de violência de gênero, o Brasil foi um dos últimos países da América Latina a ter uma Lei de proteção integral à mulher – Lei Maria da Penha, de 2006, o que sugere um perfil arraigadamente patriarcal do nosso país.

Aliás, o aumento da consciência feminista foi o terreno fértil para fazer surgir uma normativa como a Lei Maria da Penha, gestada a partir do conhecimento acerca do problema da violência (e para isso mulheres e ONGs que tinham como foco a questão feminina foram ouvidas). Todo o conhecimento produzido acerca da condição feminina foi importante para entender com mais profundidade o fenômeno. Como bem diagnosticado por Fabiana Cristina Severi, “ao considerar que a violência doméstica contra as mulheres é sustentada em desigualdades de gênero que se entrelaçam e se potencializam com outras desigualdades (de classe e ético-raciais, por exemplo), as respostas efetivas a ela passam a depender, também, de mudanças mais profundas do sistema de justiça brasileiro” [6].

Um outro exemplo de normativa produzida a partir da consciência feminista é representada pela iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, em 2021, elaborou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, produto do grupo de trabalho instituído pela Portaria CNJ 27, de 2 de fevereiro do mesmo ano.

O Protocolo foi, inicialmente, objeto da Recomendação 128/2022, no sentido de que fosse adotado no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro. Sua aplicabilidade entretanto, deixou de ser uma mera recomendação quando, no ano seguinte (2023), o CNJ elaborou a Resolução 492, a qual “estabelece, para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, as diretrizes do protocolo aprovado pelo Grupo de Trabalho constituído pela Portaria CNJ n. 27/2021, institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário”.

A função da Teoria Feminista do Direito

Importante a compreensão de que a função da Teoria Jurídica Feminista não é, somente, a de afirmar que as mulheres podem superar os papeis que lhes são esperados, “mas a de localizar e de identificar as condições sociais, políticas e legais que promoverão a capacidade de subversão das identidades de gênero tradicionais” [7].

A mudança interna de valores socioculturais, trazida pela consciência feminista (que deve se apoderar de mentes e corações de mulheres e homens) é a única chave capaz de levar ao aniquilamento do sistema patriarcal, responsável direto pela opressão feminina/dominação masculina.

Todavia, para a realização de mudanças, primeiro, precisamos da consciência acerca da opressão, da injustiça, do preconceito, da discriminação, do injusto, enfim. E ninguém melhor que as próprias mulheres para, ao adquirir a consciência feminista, propor estratégias, planos, ações (que incluem a criação e a alteração de leis que contemplem os problemas oriundos da condição de gênero), capazes de promover a emancipação e a libertação feminina, sempre com o apoio (e não o protagonismo) de homens sensíveis às questões de gênero.

E, ao alcançá-lo, retroceder não será uma opção. Ao compreendê-lo, esclarecido e civilizatório que é, o retorno aos jeitos tacanhos não mais será desejável, pois seria laborar contra o esclarecimento da civilização. Já queimamos nossos navios [8] (ou, se preferirem, nossos sutiãs [9])!

 


 

[1] SOUSA, Rita Mota. Introdução às Teorias Feministas do Direito. Lisboa: Afrontamento, 2015, p. 63.

[2] A Teoria Feminista do Direito possui diversos métodos. Um deles é a consciência feminista. Para conhecer os demais, consulte: BIANCHINI, Alice. Teoria feminista do direito, seus métodos e a importância da perspectiva de gênero no campo jurídico. In: Revista ESMAT. Escola Superior da Magistratura Tocantinense.v.15, n. 25. Palmas: ESMAT, 2023. Semestral (2023). Publicado em 11 outubro 2023. Disponível em: https://doi.org/10.29327/270098.15.25-3

[3] Sem adentrar a discussão acerca da Vitimologia enquanto ciência autônoma ou como apêndice da Criminologia, é indubitável que seus estudos contribuem para a compreensão do fenômeno da violência, na medida em que se dá ouvidos ao que as vítimas têm a dizer – seus sentimentos, perspectivas e até sugestões de encaminhamento para a prevenção e retribuição da violência, bem como para a responsabilização do agente criminoso e reparação do dano sofrido. Quando se trata de violência de gênero, os estudos da Vitimologia tornam-se ainda mais significativos, visto que a cifra obscura (diferença entre a violência vivida e a reportada para as instâncias competentes) é bem elevada. Isso se dá pelo elevado e preocupante processo de naturalização da violência contra a mulher.

[4] Disponível em: https://www9qs.senado.leg.br/extensions/violencia-genero-mashup/index.html#/inicio

[5] Uma relação completa das discriminações encontradas em sede legislativa pode ser encontrada em: PIMENTEL, Silvia; BIANCHINI, Alice. Feminismo(s). São Paulo: Matrioska. 2. ed. 2024, pp.206-215.

[6] SEVERI, Fabiana Cristina. Lei Maria da Penha e o Projeto Jurídico Feminista Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 183.

[7] SOUSA, Rita Mota. Introdução às Teorias Feministas do Direito. Lisboa: Afrontamento, 2015, p. 48-9.

[8] A expressão (queimar os navios) tem o sentido de ir em frente, não permitir retrocesso. Ela se baseia em situações históricas atribuídas a comandantes que ordenavam queimar os navios de sua própria frota, após seus comandados estarem em solo firme, impedindo possibildade de recuo. Entre nós, ficou consagrada na seguinte estrofe da música “Eu te amo”, de Chico Buarque: Ah, se ao te conhecer/ Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios/ Rompi com o mundo, queimei meus navios/ Me diz pra onde é que ‘inda posso ir.

[9] Conforme a Wikipédia (verbete Queima de sutiãs), “a ‘queima’ propriamente dita nunca chegou a acontecer dado que, por se tratar de um espaço privado, não foi autorizada. Entretanto, a atitude das manifestantes foi ‘incendiária’, e o evento tornou-se lendário”.

Autores

  • é autora e palestrante (com atuação especializada em violência de gênero), doutora em Direito Penal pela PUC-SP. vice-presidenta da ABMCJ, conselheira do CNDM e coordenadora da pós-graduação Direito das Mulheres (www.meucurso.com.br).

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