Justiça Tributária

O reequilíbrio dos contratos de longo prazo e a reforma tributária

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

29 de abril de 2024, 8h00

Foi apresentado na semana passada o projeto de lei complementar que regulará a incidência da CBS e do IBS (que, para facilitar, pode se chamar de CIBS, já que a distinção entre o tipo tributário das contribuições e dos impostos se tornou irrelevante). 

São 310 páginas de texto, sendo 50 delas apenas de exposição de motivos e índice, o que nos coloca com 260 páginas de texto normativo para análise. A despeito de se tratar de um tema extremamente complexo, está exposto de forma bastante didática, o que é muito positivo, independente de seu conteúdo.

Em face da vastidão de normas a serem analisadas, pode-se destacar alguns temas para serem abordados de forma tópica, ainda que as normas venham a ser alteradas durante a tramitação legislativa.

Esta coluna tratará do impacto tributário e do reequilíbrio dos contratos de longo prazo, que está previsto no artigo 362 e seguintes do texto apresentado. O foco são os contratos firmados com o poder público, em qualquer nível federativo, inclusive concessões de serviço ou obras públicas, não se aplicando aos contratos privados, que ficarão sujeitos às disposições da legislação específica (artigo 362, §2º)  

Elege-se este assunto em razão do vasto impacto que gerará para as empresas de infraestrutura, abrindo espaço para um enorme contencioso administrativo e tributário.

Iniciemos a análise pela descrição das normas que, após, serão comentadas.

Carga contratada 

O artigo 363 determina que esse reequilíbrio deverá ocorrer por meio da determinação da carga tributária efetiva suportada pela contratada, devendo ser considerado, inclusive, quatro aspectos, sendo dois permanentes:

  1. os efeitos da não cumulatividade nas aquisições e custos incorridos pela contratada;
  2. a possibilidade de repasse a terceiros do encargo financeiro-tributário.

E prevendo dois transitórios:

  1. a proporcionalidade das regras de transição dos atuais tributos para os novos;
  2. e benefícios ou incentivos fiscais-financeiros concedidos à contratada, que serão extintos ao longo do tempo. Tais normas deverão ser aplicadas inclusive aos contratos que já possuam matriz de risco a respeito dos impactos tributários supervenientes. 

A administração pública deverá proceder à revisão de ofício (artigo 364), caso haja redução da carga tributária efetiva (o que parece ser uma hipótese descabida, ou, ao menos, bastante rara). 

A empresa deverá requerer o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato (artigo 365, V), sendo que este poderá ocorrer por meio de:

  • revisão dos valores contratados;
  • compensações financeiras, ajustes tarifários ou aportes de recursos;
  • renegociação de prazos ou condições de entrega de bens ou serviços;
  • ajustes nos valores devidos à administração pública, inclusive nos direitos de outorga;
  • transferência de encargos de uma das partes à outra;
  • ou outros métodos considerados aceitáveis pelas partes. 

O pedido deverá ser decidido em até 120 dias, prorrogável uma única vez por igual período, apenas no caso de ser necessária instrução probatória suplementar, quando tal prazo será suspenso (artigo 365, §1º). 

Como se verifica, a possibilidade de conflitos se avizinha, pois as empresas terão que analisar os impactos tributários em suas operações contratuais e dimensionar financeiramente estes custos, a fim de que haja o reequilíbrio econômico do ajuste. O pedido deverá ser formulado com a comprovação desse impacto, podendo haver uma fase probatória para sua mensuração.

Nada garante que haverá decisão ágil, pois inegavelmente a administração pública tenderá a contestar as planilhas de custos que deverão ser apresentadas com o pedido (artigo 365, IV), fazendo com que o prazo de 120 dias seja prorrogado indefinidamente até que a prova seja aceita e os contratos aditivados.

Spacca

Exemplo

Imagine-se uma empresa de construção civil que compre uma enormidade de insumos para a construção de uma obra (por exemplo, a do metrô). A compra desses insumos terá CIBS, que gerará créditos para a empresa construtora adquirente. Considerando ser usual que a empresa construtora (consórcio construtor) não seja a mesma que venha a operar a concessão (consórcio de operação), como ela fará o repasse desses créditos que se acumularão? Uma possível alternativa ocorrerá se a empresa construtora tenha outra obra na qual possa repassar esse custo ao contratante. Mas e se não houver?  

Existem múltiplas possibilidades previstas no artigo 365, V, mas o contencioso com a administração pública é certo, com a possibilidade de paralisação de obras e serviços em face do retardo da decisão, considerando tão-somente esse pequeno exemplo, que pode ser multiplicado. 

Havendo a necessidade de se prosseguir a obra ou o serviço em face das pesadas multas contratuais estabelecidas, mesmo sem ajuste nos valores, haverá um montante a ser pleiteado ao término do prazo contratual (ou mesmo durante seu curso), com a busca de decisões judiciais ou arbitrais que venham a dirimir o litígio. Isso aponta para o problema da execução dos contratos administrativos, que analiso em outro texto sobre o uso de precatórios para essa finalidade.  

Por outro lado, supondo-se que a administração pública não solucione o problema, ainda existe a hipótese de a empresa prejudicada litigar contra o Fisco da União (em face da CBS) e do Comitê Gestor (que congrega estados e municípios, em face do IBS), argumentando a obediência ao princípio da neutralidade desses novos tributos, que consta do artigo 156-A, CF, e está também previsto no artigo 2º do projeto de lei complementar. Essa parte processual que disciplinará o litígio acerca dessa matéria ainda não está regulamentada. 

Para abreviar etapas, sugere-se que as empresas que possuem contratos relacionados ao poder público, direta ou indiretamente, iniciem desde já a análise de custos e preparem suas planilhas, a fim de antecipadamente negociarem o reequilíbrio econômico, mesmo durante o prazo de carência e o de implantação do novo regime tributário.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.

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