Opinião

Relativa independência de instâncias não se confunde com uso indevido da lei penal

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23 de março de 2024, 9h27

Recentemente, voltou à discussão o tema da relativa independência entre instâncias de responsabilização (administrativa, civil e penal) no que diz respeito à Lei Antitruste.

A Lei Antitruste está apta à persecução e condenação de infrações à ordem econômica na seara administrativa. Dentre as infrações previstas, encontra-se o ilícito comumente conhecido como cartel, que consiste na prática de condutas como acordos, combinações, manipulação ou ajustes entre concorrentes.

De igual modo, a Lei Penal, mais especificamente a Lei nº 8.137/90, que cuida dos delitos contra a ordem econômica, também tipifica a mesma conduta como um ilícito penal.

O Recurso Especial nº 2.081.262/RS, julgado em 21 de novembro de 2023, trouxe mais uma vez ao cenário a discussão sobre a independência entre as instâncias, abordando questões que precisam ser tratadas já há algum tempo.

A diferenciação quanto à relativa independência entre as instâncias e a devida utilização das normas penais na esfera do processo administrativo sancionador é um tema que há muito carece de maiores reflexões.

Talvez, porque ainda exista uma certa relutância em reconhecer o que já está amplamente reconhecido pela doutrina internacional, que aponta ser o Direito Administrativo Sancionador uma forma anômala de Direito Penal, tendo em vista que as sanções administrativas superam, e muito, as penais.

Situação que ficou mais evidente após o movimento, mundial, de substituição de penas privativas de liberdade em delitos mais leves, oportunidade em que o Direito Administrativo Sancionador ganhou protagonismo. Suas garantias se equipararam às do Direito Penal e, daí, seus instrumentos se trasladaram de um a outro [1].

Nesse mesmo sentido já se posicionou o Supremo Tribunal Federal (STF) diversas vezes, tendo reconhecido notadamente a aplicação de todos os princípios e regras do Direito Processual Penal e as garantias do Direito Penal a Direito Administrativo Sancionador [2].

Relativa independência entre instâncias e princípios de cada legislação

Voltando ao caso que dá margem ao debate proposto, o referido acórdão trata de maneira ponderada o tema da relativa independência entre as instâncias, valendo-se dos dispositivos legais presentes no Código de Processo Penal e no Código Civil, esclarecendo que, segundo o artigo 66 do Código de Processo Penal e o artigo 935 do Código Civil, a sentença penal somente irá repercutir na esfera civil “quando presente deliberação positiva ou negativa acerca da existência material do fato e de sua respectiva autoria”.

De certa forma, é possível sim reconhecer a relativa independência entre as instâncias. Mas, para que isso seja possível, é preciso que se reconheça que, para além da independência de instâncias, existem princípios e procedimento específicos de cada uma das legislações: antitruste, civil, penal, processual penal.

Sabe-se que na esfera processual penal, toda ação penal é, por natureza, pública. Por ser assim, o detentor da faculdade para a propositura da ação penal é o Ministério Público, que, reconhecendo indícios de materialidade e autoria, pode então oferecer a denúncia, que poderá ser recebida ou rejeitada pelo juízo criminal.

Para que a denúncia seja recebida, é preciso que haja justa causa para a ação penal, ou seja, a existência de indícios mínimos de materialidade e autoria do crime.

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Mas isso não significa que se pode presumir a existência de um crime. Pelo contrário: é a persecução penal, com a garantia do contraditório e da ampla defesa, que irá, ao final, por meio da sentença penal, determinar se a conduta é típica ou não, se é mesmo possível a imputação ao indivíduo que respondeu pela ação penal (o que envolve questões como autoria e inimputabilidade) e, ainda, se é possível a punibilidade da conduta.

Por essa razão, o artigo 386 do Código de Processo Penal esclarece que a absolvição pode ser lastreada nas seguintes circunstâncias: estar provada a inexistência do fato; não haver prova da existência do fato; não constituir o fato infração penal; estar comprovado que o réu não concorreu para a infração penal; não existirem provas de que o réu concorreu para a infração penal; existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena, ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência; não existir prova suficiente para a condenação.

Mesmo que um fato seja atípico na esfera penal, este pode dar causa à violação de normas na esfera administrativa ou cível. É neste sentido que deve ser observada a relativa independência de instâncias. Porém, se na esfera penal fica demonstrado que o indivíduo não concorreu com a realização do tipo penal, ou que não existem provas de sua concorrência para a realização, ou, ainda, caso não existam provas da existência do fato ou mesmo quando restar comprovado que o fato não existiu, não é possível que outras esferas de responsabilização entendam de forma contrária se amparadas nas mesmas evidências.

Quando falamos de Direito Penal — e aqui incluso não só as normas de Direito Penal material, mas também as normas de natureza processual — é preciso lembrar que estamos diante de princípios como a legalidade, fragmentariedade, subsidiariedade, proporcionalidade, intervenção mínima e que, como tratamos da liberdade de cada indivíduo, o garantismo ganha lugar para, então, assegurar um tratamento equânime diante do poder estatal. Por essa razão, é assegurada a garantia da presunção de inocência.

Se é por meio da ação penal que, após a sentença condenatória transitada em julgado se reconhece a existência do fato típico e a autoria desse, não é possível que, antes desse momento, possa se falar em crime, sob pena de ferir a garantia constitucional da presunção de inocência.

Uso de regras de Direito Penal em outra esfera

E é neste ponto que, por mais que se reconheça a relativa independência entre instâncias, faz-se necessária a compreensão de que não basta que uma conduta esteja descrita como ilícita na esfera penal para que na esfera administrativa possam ser adotadas regras de natureza penal, como por exemplo a aplicação da prescrição segundo as regras penais quando a mesma conduta pode ser punida na esfera penal e administrativa.

Uma situação é a independência entre as instâncias, quando tanto na esfera administrativa, civil ou penal possa existir a persecução do fato para que seja sancionado conforme previsto em cada uma das legislações que as disciplinam (legislações de matriz administrativa, civil ou penal).

Porém, no que diz respeito à utilização de regras de Direito Penal, como no caso da prescrição, só é possível após o reconhecimento, pela via adequada (sentença criminal condenatória transitada em julgado) de que a conduta representa realmente a realização de um tipo penal, sob pena de qualquer outra esfera estar usurpando a competência conferida pela Constituição Federal ao Ministério Público e à Justiça Criminal.

A ponderação é simples e lógica: se a presunção de inocência prevalece até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, como na esfera administrativa a conduta poderia ser tomada como ilícito penal apenas pelo fato de ser igualmente sancionável na esfera penal?

Impossível considerar o argumento de que apenas a descrição do fato como típico na esfera penal já torna a conduta crime e, assim, antecipe efeitos extrapenais exclusivamente viáveis mediante a prolação de sentença penal condenatória. Ignorar essa assertiva equivaleria a anular a eficácia da garantia constitucional da presunção de inocência.

Ademais, além de mitigar a eficácia do princípio constitucional da presunção da inocência, afeta-se também a eficácia de todo o arcabouço normativo processual penal, por meio do qual, apenas por intermédio da devida persecução penal, viabiliza-se que um fato seja reconhecido como crime. Esse reconhecimento, frisa-se, somente pode ser consumado após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. E

Esta, à sua vez, deve decorrer de denúncia ofertada pelo Ministério Público e recebida pelo juízo criminal, o qual, após o devido processo legal, decidirá finalmente a questão. Ou seja, há um procedimento processual penal a ser seguido para que um fato seja reconhecido como crime, não bastando a mera descrição de um tipo penal pela norma geral e abstrata.

Desta forma, a lei penal e seus efeitos extrapenais só podem realmente ser utilizados na esfera administrativa quando houver o real reconhecimento de que o fato configura um crime, ou seja, após a sentença penal condenatória transitada em julgado.

Cartel e a constituição do crime de forma concreta

Tomando como exemplo o caso da Lei Antitruste que, em seu artigo 46, § 4º prevê que quando “o ato objeto da ação punitiva da administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal”, é possível observar que o legislador inseriu precisamente a expressão “constituir crime”, de modo que não basta a existência de uma lei penal que criminalize uma conduta igualmente sancionada pela Lei Antitruste, como no caso dos cartéis.

É preciso que o fato seja constituído como crime de forma concreta, o que só é possível após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Isso não significa que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica não possa julgar os casos envolvendo cartel e que, por essa razão, se estaria a violar a relativa independência de instâncias, pelo contrário. As infrações anticoncorrenciais devem ser julgadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, que tem total autonomia e independência para julgar as infrações anticoncorrenciais segundo a legislação Antitruste.

Porém, no caso de cartel, o que não é possível é a utilização da Lei Penal, mais precisamente o prazo prescricional de 12 anos, antes que exista sentença condenatória transitada em julgado reconhecendo que a conduta se subsume ao tipo penal, configurando assim um crime.

Então, nem mesmo o início de uma persecução penal por meio de um inquérito policial seria capaz de atrair a incidência da Lei Penal no que diz respeito à aplicação da regra da prescrição nas investigações de cartéis realizadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

Este é apenas um dos pontos de reflexão a serem explorados e discutidos quando tratamos de Direito Administrativo Sancionador e Direito Penal, respeitando a relativa independência entre as instâncias de responsabilização e a devida utilização das leis penais, sempre orientadas por seus princípios e garantias constitucionais.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, professor doutor de Direito Econômico nos programas de pós-graduação da FDRP/USP, PUC-PR e UEL, diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Concorrência e Inovação (IBCI), visiting Fulbright scholar na Universidade de Nova York (2010-2011), líder do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Concorrência e Inovação da PUC-SP e sócio do escritório de advocacia de Nishioka & Gaban Advogados.

  • é bacharel e mestre em Direito pela Unesp, doutoranda na Escola de Doutorado da Universidade de Salamanca (Espanha), coordenadora do Departamento de Monografias do IBCCrim (2023-2024), membro da diretoria do Instituto Brasileiros de Concorrência e Inovação, professora colaboradora da Faculdade de Direito de Franca e advogada no escritório de advocacia Nishioka & Gaban Advogados.

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