Senso Incomum

O parafuso, o bacon e o Francis Bacon: o reencantamento do direito?

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13 de abril de 2023, 8h00

Spacca
Atenção: reencantamento não é algo positivo. Não se empolguem. Quem ler até o final entenderá.

O realismo jurídico se caracteriza pela máxima "o direito é o que o judiciário diz que é". Esse é o modelo preferido no Brasil, seguido pela comunidade jurídica como discurso da servidão voluntária (para homenagear, aqui, a obra de um jovem de 28 anos escrita no século 16).

Digo isso para comentar decisão de juiz de Juizado Especial de Santos, que negou indenização por dano moral a um casal que encontrou na sua comida, em hotel, um, pasmem, parafuso. Já vi de tudo na comida, mas parafuso? E no café da manhã? Especialidade do chefe: bacon and screw omelette…!

O casal tirou fotos e, em conversa com funcionário do restaurante, este afirmou que "o parafuso poderia ser do local que são acondicionados os alimentos para mantê-los quentes".

Bueno. Foram ao juizado. Pediram R$ 8 mil. O hotel alegou de tudo, desde a ilegitimidade até negativa ou dúvida da existência do fato.

E o juiz, "fundado" no STJ, negou
Ao analisar o caso, o magistrado ressaltou que não vislumbrou a ocorrência de um dano moral na espécie, considerando que o produto sequer chegou a ser consumido (imagina se fosse!!!). Com isso, julgou improcedente o pedido do hóspede.

O que impressiona é a fundamentação, baseada na "pacífica jurisprudência do STJ, pela qual a ausência de ingestão de produto impróprio para o consumo, por força da presença de objeto estranho, não acarreta dano moral apto a ensejar reparação. Incidência da Súmula 83/STJ".

Trata-se de viés de confirmação, decisão teleológica, tipo "não vou conceder a indenização e encontrarei uma justificativa". Por incrível que pareça, foi Bacon, o Francis, quem denunciou pela primeira vez o viés de confirmação. Bacon sem parafuso, claro.

O juiz negou e errou
Mas estaria certa a fundamentação? Não. Bastaria que o magistrado ou o seu estagiário dessem um google, ferramenta sem parafusos. Com efeito, a 2ª Seção do STJ define que corpo estranho em alimento gera dano moral mesmo sem ingestão.

Mas tem mais: por maioria, o colegiado de direito privado do STJ dirimiu a divergência existente entre as duas turmas que o compõem — 3ª e 4ª Turmas — quanto à necessidade de deglutição do alimento contaminado ou do corpo estanho para a caracterização do dano moral indenizável.  Sugiro a leitura do REsp 1.899.304.

Relatora do recurso especial, a ministra Nancy Andrighi afirmou que "a distinção entre as hipóteses de ingestão ou não do alimento insalubre pelo consumidor, bem como da deglutição do próprio corpo estranho, para além da hipótese de efetivo comprometimento de sua saúde, é de inegável relevância no momento da quantificação da indenização, não surtindo efeitos, todavia, no que tange à caracterização, a priori, do dano moral".

Uma coisa: ainda, além de tudo, há sempre a necessidade de verificar possíveis distinguishings. Uma coisa é um fio de cabelo, uma barata… outra é um parafuso. Se pequeno e engolido, mata. Ou seja, parafuso é mais grave ainda.

De todo modo, o que vale é a holding: dano moral presumido decorre da exposição ao risco. E o magistrado dos juizados especiais não quis saber. Ele já estava convencido do contrário. E julgou com viés de confirmação. Muito comum isso: havia um ministro do STF quem dizia algo assim: primeiro decido, depois busco o fundamento. Viés de confirmação plus.

No que a decisão — errada — do juiz transcende ao caso?
Essa decisão é importante? Não. O que é importante é aquilo que essa decisão simboliza. Trata-se da ponta do iceberg. Decide-se como se quer. Primeiro se olha o caso. Decide-se mentalmente. E depois se busca a fundamentação — que, então, entra como viés de confirmação. Ou de fato o juiz não sabia da orientação do STJ?

No caso, bastava, como já disse, um google. Com a estrutura que os magistrados possuem, o estagiário poderia avisar sua excelência. Antigamente demorava-se meses até que uma novidade jurisprudencial chegasse nas províncias. Hoje é instantâneo. Tem até site que coloca no mesmo dia toda a jurisprudência nova. Pronta para usar.

Há respostas adequadas à Constituição?
Outro dia vi que um tribunal decidiu que alguém que ganha sete salários mínimos não tem direito à AJG. Só haveria direito se ganhasse até cinco SM. Fonte da decisão: um enunciado do Fonage. Sim, um enunciado. Preocupa-se que critérios assim, discricionários, construídos em fóruns (que não o parlamento) sejam utilizados para fulminar direitos. O mesmo tribunal decidiu que delegado de polícia, com salário semelhante a juiz, tem direito a ser defendido pela Defensoria Pública. O que é, afinal, a coerência e a integridade do direito?

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Mulher mordeu parafuso em sanduíche comprado na Greggs, em Portsmouth (ING)
Reprodução.

Já não há um direito fundamental a se obter uma resposta adequada a Constituição. Parece que o cidadão vai ao judiciário para receber a opinião pessoal do juiz sobre seu problema. Ora, há uma estrutura legal-processual-jurisprudencial que antecede, que é superior à concepção pessoal do magistrado.

Dia desses li um livro sobre precedentes. Há vários. E qual a tese dominante? A do realismo (mesmo que a tese não conste explicitamente): direito é o que as teses, súmulas, precedentes e enunciados dizem que é. Por vezes, nem isso funciona. O que impressiona é o conformismo da comunidade jurídica com tudo isso. O livro defende posição de um enunciado da Enfam. Isto é, em vez de defender a lei, defende o enunciado.

O desencantamento e a busca do reencantamento… agora do direito
Parece que o jovem de 28 anos tinha razão, lá no longínquo século 16, na aurora da modernidade. Nessa época, começávamos a nos desencantar com o mundo e iniciava a nossa angústia. Só que tínhamos angústia — gerada por esse desencantamento — e nem sabíamos que a tínhamos.

Hoje, na contramão do que denunciava, por exemplo, Weber sobre esse "desencantamento", buscamos mecanismos para reencantar o mundo. Saudades, talvez, da pré-modernidade. Em que tudo estava dado. O mito do dado retorna. Com o precedentalismo e o realismo jurídico: respostas antes das perguntas. Por isso gostamos tanto de enunciados, teses, súmulas… Sonho da volta do mito do dado. 

Numa palavra, tudo isso revela a paradoxal natureza dos "precedentes" e do próprio realismo à brasileira. Todo livro novo sobre o assunto, na linha da velha dogmática, fala em precedentes obrigatórios, aproximação com o common law e quejandos. Só que os "precedentes obrigatórios" não obrigam. Basta ver a queixa do STJ.

Mas isto para mim não constitui novidade. Porque se o Direito é o que o judiciário diz que é, o judiciário pode dizer qualquer coisa. Até sobre a força normativa do próprio precedente. Que nasce sem caso concreto, pro futuro. É "obrigatório" até a página dois. Porque até hoje não decidimos bem o que é um precedente no Brasil. Já temos dezenas de livros sobre o tema.

O problema é que, ao que parece, nem a dogmática conseguimos fazer direito. Nem uma decisão simples, sobre algo pacificado, que obviamente o direito já resolveu… nem isso consegue segurar a interpretação de um juiz ou tribunal? Veja-se o caso do parafuso. E da AJG.

E a doutrina? Bom, essa deveria elaborar as limitações, como denuncia Rüthers na sua mais premiada obra (em anterior artigo expliquei o sentido da limitação).

Lendo a decisão sobre o parafuso e tantas interpretações sobre "precedentes", fico pensando: certo estava o aluno de primeiro semestre que dizia querer ir logo "pra prática" (sic). Esse talvez seja o nosso problema desde sempre: subvalorizar a teoria e acreditar que é "perfumaria". Como disse outro dia um professor para seus alunos: "terminou a aula de filosofia do direito? Que bom. Agora vocês vão estudar direito comigo". E abriu um livro simplificadinho.

Bom, o resultado do conjunto da obra já sabemos.

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