Opinião

Novo constitucionalismo latino-americano confronta dogmas liberais

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18 de abril de 2024, 7h08

O constitucionalismo liberal foi forjado no seio da modernidade ocidental. No âmbito jurídico, a partir da crença redentora na razão e na ciência, as ideias de democracia e segurança jurídica são edificadas como o modo mais adequado de superação do poder das monarquias absolutistas e de pavimentação da estrada para a sociedade burguesa.

O constitucionalismo moderno-liberal, no fluxo do ideário de racionalidade e progresso oriundos do iluminismo, é o resultado da ruptura com o regime e o exercício do poder político do medievo. O escopo desse movimento é disciplinar toda a atividade do governante, bem como deste com os governados, além de declarar uma vontade autônoma de refundação da ordem jurídica (MIRANDA, 2007).

Surge como a doutrina de limitação do poder no Estado liberal, separação de poderes e o estabelecimento de direitos e garantias fundamentais. O núcleo central do constitucionalismo consiste no desenvolvimento de uma teoria de legitimação das fontes do poder e da representação política.

Como assinala Miguel Calmon Dantas (2009), o constitucionalismo moderno é a expressão da simbiose de concepções filosóficas, políticas, econômicas e jurídicas que se erigiram contra o exercício arbitrário do poder político pelo Estado absolutista e em prol da liberdade individual (política e econômica). Pressupõe justamente ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito, a Constituição, uma declaração de direitos e liberdades, além de um esquema de limitação do poder político (CANOTILHO, 2003, p. 52).

Após reveladas suas insuficiências do Estado liberal, o Estado social apresenta-se como sua “evolução” política, num esforço de remodelar-se diante das contradições apresentadas pela incipiente sociedade industrial e pela emergência do pensamento socialista.

O constitucionalismo social, desse modo, pode ser entendido como uma releitura crítica do Estado liberal que se sustentava pelo primado da liberdade e da propriedade privada. A partir de uma nova plataforma ideológica, notadamente as reflexões acerca da relação capital/trabalho e de um humanismo filosófico, houve o progressivo reconhecimento de direitos que visavam a promover justiça social, de modo que o Estado agora passa a intervir de maneira acentuada nas relações econômicas, disciplinando-as e dirigindo-as com a finalidade de construir um Estado de Bem-Estar Social (Welfare State).

Novo constitucionalismo latino-americano

Embora tenham exercido influência preponderante na América Latina, atualmente se reconhece que tais paradigmas constitucionais não espelham a realidade sócio-histórica e política de diversos povos do continente, em especial no que se refere à multiculturalidade, às formas de sociabilidade e ao modo de relacionamento com a natureza.

Inspirado na filosofia da libertação e no denominado pensamento decolonial (DUSSEL, 2012; WOLKMER, 2015; FAJARDO, 2011) , é possível identificar a construção de um “novo constitucionalismo latino-americano”, mais compatível com a diversidade cultural presente no continente e que tem por escopo confrontar o modelo de Estado eurocentrado, monocultural e monoorganizativo, de modo a permitir o florescimento de outras estruturas políticas, escorados fundamentalmente numa democracia pluralista.

Orientado pela perspectiva de que que cada sociedade é livre para conformar ou criar estruturas de governo e de políticas compatíveis com a sua gênese e realidade históricas, as Constituições da Venezuela (1999), do Equador (2008) e da Bolívia (2009) são consideradas seminais do novo constitucionalismo latino-americano porque introduziram nos respectivos textos elementos particulares das respectivas culturas.

Spacca

A Constituição da Venezuela de 1999 propõe novo arranjo institucional e estabelece que os poderes do Estado, ao invés da tradicional “divisão” tripartite, apresenta-se como uma divisão pentapartite, qual seja, Legislativo, Executivo, Judicial, Cidadão e Eleitoral.

Sob o aspecto democrático, a Constituição da Bolívia de 2009 implantou o denominado Estado Plurinacional, um modelo de organização política fundado em uma democracia pluralista, comunitária e intercultural, no qual se busca reconhecer a juridicidade dos elementos culturais dos povos originários, seja por meio do respeito a justiça indígena, seja reservando vagas em órgãos da justiça ordinária para membros da comunidade indígena e campesina.

Outro destaque de relevo é na seara ambiental em que a Constituição do Equador de 2008 e a Constituição da Bolívia de 2009 promoveram a juridicização constitucional do buen vivir (Sumak Kawsay e Suma Qamanã) (SANTAMARIA, 2016), sendo que a primeira ainda concebe a constitucionalização dos direitos da natureza (reconhecimento da natureza como sujeito de direitos), naquilo que ficou conhecido como “giro ecocêntrico dos Andes”. Essas inovações jurídico-políticas revelam a internacionalização nos respectivos ordenamentos constitucionais de aspectos que remontam a antropologia ancestral daqueles povos, num esforço de romper com a visão economicista e monocultural ocidentalizada, conferindo centralidade ecológica para o desenvolvimento da sociedade.

O “novo” constitucionalismo latino-americano confronta, assim, os dogmas erigidos pelo constitucionalismo liberal de matriz ocidental, buscando abrir fissuras na episteme jurídica hegemônica para permitir a emergência da pluralidade cultural encontrada na América Latina. Os novos institutos – seja no aspecto político (pentapartição dos poderes), social (Estado Plurinacional) e ambiental (natureza como sujeito de direitos) – desafiam a racionalidade jurídica no alvorecer do século XXI e revelam a necessidade de pensar a Constituição como a materialização da diversidade (de povos, culturas, modos de viver, produzir e coexistir), sem a qual sua idoneidade continuará sendo questionada.

 


Referências

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. DIREITO CONSTITUCIONAL E TEORIA DA CONSTITUIÇÃO. 7ª ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003.

DANTAS, Miguel Calmon. CONSTITUCIONALISMO DIRIGENTE E PÓS-MODERNIDADE. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

DUSSEL, Enrique. ÉTICA DA LIBERTAÇÃO NA IDADE DA GLOBALIZAÇÃO E DA EXCLUSÃO. 4ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

FAJARDO, Rachel Zonia Yrigoyen. El horizonte del constitucionalismo pluralista: del multiculturalismo a la descolonización. In, GRAVITO, César Rodríguez (Org.). EL DERECHO EN AMÉRICA LATINA: UN MAPA PARA EL PENSAMIENTO JURÍDICO DEL SIGLO XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011, 139-159.

MIRANDA, Jorge. MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL. TOMO II. 6ª ed. Coimbra, Coimbra Editora: 2007.

SANTAMARIA, Raul Ávila. EL NEOCONSTITUCIONALISMO ANDINO. Quito: Universidad Andina Simon Bolivar, 2016.

WOLKMER, Antônio Carlos. PLURALISMO JURÍDICO: FUNDAMENTOS DE UMA NOVA CULTURA DO DIREITO. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

 

Autores

  • é pós-doutor em Direito (Universidad de Sevilla), doutor em Direito (Unisinos-RS), com estágio de pesquisa anual na Universidade de Coimbra, líder do Grupo de Pesquisa CNPq Teoria Crítica do Constitucionalismo (FDV-ES), professor da programa de pós-graduação stricto sensu e da graduação em Direito da FDV-ES e pesquisador PQ Fapes e advogado.

  • é doutorando e mestre em Direito pela FDV-ES, membro do Grupo de Pesquisa CNPq Teoria Crítica do Constitucionalismo (FDV) e promotor de Justiça no estado do Espírito Santo.

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