Seguros Contemporâneos

Aplicabilidade do CDC e a inversão do ônus da prova nas ações judiciais de seguro agro

Autores

  • Carla Cunha

    é sócia gestora da área de Seguros e Resseguros no Escritório CGV Advogados (filial São Paulo) especialista em Direito dos Seguros e Resseguros e em Liderança e Gestão de Pessoas pelo Insper.

  • Luiza Terra

    é advogada na área estratégica de Seguros no Escritório CGV Advogados pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e bacharel em direito magna cum laude pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

18 de abril de 2024, 8h00

O seguro agrícola, ou, como popularmente conhecido, o seguro agro, é um ramo promissor no mercado securitário. Com o excepcional crescimento de 15,1% em 2023, o agronegócio foi o setor que mais contribuiu para o Produto Interno Bruto (PIB) do país naquele ano, que aumentou 2,9% em relação ao ano de 2022 [1]. Deste aumento, incríveis 1,3% correspondem apenas à agropecuária [2].

Assim como a arte pode imitar a vida (ou vice-versa), o direito reflete as dinâmicas da sociedade em que vivemos. Neste contexto, temos observado um amadurecimento do judiciário no enfrentamento de questões ligadas ao direito agrário e ao direito dos seguros. Esse ponto é especialmente evidente em casos relacionados ao seguro agrícola e à (in)aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, bem como à inversão do ônus da prova, temas que abordaremos neste artigo, sem a pretensão de esgotar a discussão.

1. Há relação de consumo no Direito Securitário Agrário?

A Lei nº 8.078, de 1990, que dispõe sobre a proteção ao consumidor, foi paradigmática para reestabelecer a Justiça e a equidade nas chamadas relações de consumo [3], uma vez que representou uma significativa conquista no âmbito legislativo brasileiro, estabelecendo bases fundamentais para a proteção dos direitos dos consumidores, tais como

“[a] vedação às cláusulas abusivas, resolução unilateral de contratos, o estabelecimento da inversão do ônus da prova, entre outros instrumentos, [que] foram e, até hoje, são essenciais à promoção de equilíbrio contratual no seio dessas chamadas relações jurídicas caracterizadas pela hipossuficiência de seus partícipes” [4].

No que concerne às relações de natureza securitária, como regra geral, atualmente aplica-se o Código de Defesa do Consumidor, desde que a relação em análise se caracterize também como uma relação de consumo.

Para que se configure uma relação de consumo, deve haver a presença de um fornecedor de produtos ou serviços e do destinatário final. De acordo com o artigo 2º do Código Consumerista, “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço comodestinatário final. Já o fornecedor “(…) é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de (…) prestação de serviços”. O serviço, por sua vez, é contemplado como uma atividade fornecida no mercado, mediante remuneração, entre elas, as de natureza securitária.

Além disso, requisito fundamental para se estabelecer a relação de consumo é a vulnerabilidade do consumidor, na forma do artigo 4º, inciso I do CDC. Este requisito é um pilar da teoria finalista, segundo a qual o conceito de consumidor deve ser submetido a uma interpretação restritiva, “calcada na sua vulnerabilidade presumida, limitando a proteção legal a quem retira o produto ou o serviço do mercado para uso não profissional, ou seja, para satisfação de necessidades próprias ou de sua família” [5]. Nesse sentido,

“(…) contanto que haja um consumidor, assim entendido, um não profissional, que atue sem finalidade lucrativa, como destinatário final da garantia prestada pelo segurador, o seguro torna-se contrato de consumo, atraindo a incidência do regime protetivo do Código de Defesa do Consumidor. (Destacado no original)” [6].

Claudia Lima Marques, do mesmo modo, entende que

“Destinatário final é aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo esta interpretação teleológica não basta ser destinatário fático do produto e retirá-lo da cadeia de produção, e levá-lo para o escritório ou residência, é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu” [7].

Importa mencionar, nessa seara, que atualmente o Superior Tribunal de Justiça adota o entendimento da teoria finalista mitigada nas relações de consumo, ao reconhecer “a existência das relações de consumo mesmo em face de consumidores que fazem um uso profissional do produto ou do serviço, mas exige para tanto a caracterização da sua vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica” [8].

Desse modo, insta questionar: na relação entre uma seguradora e um segurado que contrata seguro agrícola para sua produção haverá relação de consumo? A resposta é: depende. Caso o segurado seja um pequeno e vulnerável agricultor, que realiza a plantação para a própria subsistência e a de sua família, por exemplo, então seria possível caracterizar a relação consumerista, com base na teoria finalista mitigada. Mas pense no caso em que o segurado é um agricultor que realiza cultivo em larga escala para comercialização. O cenário permaneceria o mesmo?

Alguns autores, como Juliano Ferrer e Maria Izabel Indrusiak Pereira, defendem que sequer haveria espaço para a aplicação da teoria finalista mitigada nas demandas envolvendo produtores rurais, e que o mais correto seria a aplicação da teoria finalista nesses casos. Segundo eles, “[o] objetivo do Código de Defesa do Consumidor é tutelar de maneira especial um grupo da sociedade que é efetivamente mais vulnerável. Não é o caso, especialmente neste particular, do produtor rural” [9].

2. Análise jurisprudencial da aplicação do CDC e inversão do ônus da prova no seguro agrícola

Com o objetivo de investigar o que tem ocorrido nas demandas judiciais envolvendo o seguro agrícola e o produtor rural, foi realizada pesquisa no site de buscas jurisprudenciais do Tribunal de Justiça do Paraná, estado com grande representatividade no setor do agronegócio do Brasil. Foram aplicados os seguintes os parâmetros: “CDC”, “seguro” e “agrícola”, entre o início de setembro de 2023 e o início de janeiro de 2024. De 31 julgados selecionados, 24 aplicaram o CDC e a inversão do ônus da prova, enquanto apenas um deixou de aplicá-los [10]. Dos julgados restantes, 1 se absteve da análise por carência de interesse recursal e cinco não se aplicavam à pesquisa.

Em vez de corroborar o caminho a ser seguido, os números dispostos acima são rechaçáveis. Data maxima venia, nos parece necessário um aprofundamento na análise dessa temática, afinal, os agricultores muitas vezes produzem em larga escala e o fazem de forma organizada e com o intuito de obter lucro. Ou seja, constituem verdadeiramente uma empresa agrícola. A contratação dos seguros por estes produtores, empresários do agronegócio, representam uma fonte de segurança para que sua operação comercial seja bem-sucedida. Nesse diapasão, o seguro é contratado como insumo à produção, e os segurados, a toda evidência, não poderiam ser qualificados como destinatários finais dos serviços prestados pela seguradora.

Essa mesma linha de raciocínio é adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que entendeu, em demanda de seguro agrícola, que o “Código de Defesa do Consumidor não se aplica no caso em que o produto ou serviço é contratado para implementação de atividade econômica, já que não estaria configurado o destinatário final da relação de consumo (teoria finalista ou subjetiva)” [11]. A Corte Superior de Justiça firmou o entendimento de que admite o abrandamento da regra apenas “quando ficar demonstrada a condição de hipossuficiência técnica, jurídica ou econômica da pessoa jurídica, autorizando, excepcionalmente, a aplicação das normas do CDC (teoria finalista mitigada)” [12]. Assim também é o entendimento do STJ, em regra, para outras demandas envolvendo contratos de seguros empresariais [13].

Ou seja, diferentemente do que vem ocorrendo na prática — salvo alguns excelentes precedentes — [14] a aplicabilidade do diploma consumerista nas demandas de seguro agrícola, usualmente, deveria ser afastada, sendo admitida apenas quando se comprovar a hipossuficiência do segurado, em circunstâncias excepcionais. Nas ações judiciais relativas ao seguro agrícola, portanto, denota-se que a hipossuficiência das partes não deveria ser presumida, mas comprovada e analisada caso a caso.

3. Uma análise relativa à vulnerabilidade dos produtores rurais

Com base na pesquisa realizada como uma amostra do que vem ocorrendo no judiciário, a vulnerabilidade dos produtores rurais segurados, na grande maioria dos casos, ainda tem sido reconhecida de forma presumida, sem que haja a necessária comprovação de sua hipossuficiência. É certo que as vulnerabilidades, sejam elas técnica, jurídica, econômica ou informacional — esta última que tem se agregado às três hipóteses tradicionais [15] — devem ser analisadas em conformidade com as circunstâncias particulares de cada caso. Todavia, discorreremos de forma breve sobre o porquê da hipossuficiência não se aplicar aos empresários do agronegócio nos casos de contratação de seguro agrícola.

Em primeiro lugar, conforme esclarecido pela doutrina: “[a] vulnerabilidade técnica caracteriza-se quando o contratante não detém ou detém reduzido conhecimento específico sobre a natureza do contrato ou objeto da contratação, sujeitando-se ao poder técnico da outra parte” [16]. Este não é o caso dos empresários rurais, que, além de contar com corretoras especializadas em seguro agrícola, que os representam e negociam melhores condições com as seguradoras, possuem todo um aparato técnico, com equipes de assessoria agrônoma, jurídica e contábil, por exemplo.

Em relação à vulnerabilidade econômica, ela se verifica “quando o contratante se sujeita ao poder econômico ostensivamente superior da contraparte na imposição da contratação em si ou das suas condições” [17]. Isto muitas vezes também não ocorre com os segurados em questão, sendo certo que alguns deles possuem situação econômica semelhante ou até mesmo superior à das seguradoras. Mesmo que em alguns casos possam vir a apresentar poder econômico inferior ao das seguradoras, essa diferença não é significativa ao ponto de configurar vulnerabilidade.

“A vulnerabilidade jurídica, por sua vez, caracteriza-se quando o contratante carece de conhecimentos relativos ao exercício dos seus próprios direitos na relação jurídica que se estabelece” [18], o que também não sucede com os empresários do ramo agrícola, sendo certo que não se tem notícia de quaisquer dificuldades no ajuizamento da ação e no exercício do próprio direito pelos segurados, que possuem o aparato jurídico necessário para auxiliá-los e por vezes são procurados por advogados após um evento climático adverso.

Podemos mencionar, ainda, a “vulnerabilidade informacional, caracterizada pelo fato de o contratante possuir ‘dados insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra’” [19]. Mais uma vez, percebe-se que este não é o caso, pois os empresários do agronegócio estão acostumados à natureza das transações securitárias e dos termos adotados no seguro agrícola.

Nesse sentido, quando o segurado, empreendedor do ramo do agronegócio, trata das informações técnicas do plantio objeto do seguro, não nos parece que o Código de Defesa do Consumidor seja aplicável. E, ainda que se entenda o contrário, é necessário que o Juízo responsável pelo julgamento da demanda verifique se deverá ser aplicada a inversão do ônus da prova, medida autorizada pelo artigo 6º, inciso VIII, do CDC, que excepcionaliza a regra tradicional do artigo 373, caput, do Código de Processo Civil.

É correto afirmar, então, que a inversão do onus probandi não ocorre de maneira automática à aplicação do CDC, uma vez que possui natureza excepcional, podendo ser aplicada apenas quando o juiz constatar a verossimilhança das alegações autorais e a hipossuficiência do consumidor. Essa análise se mostra importante, pois, como mencionado anteriormente, não raras vezes o segurado/empresário não possui qualquer vulnerabilidade, e ainda conta com um corpo de engenheiros agrônomos e aparato técnico necessário para que o cultivo lhe proporcione o lucro almejado.

4. Conclusões

Diante desse cenário, o que mais importa às partes litigantes, que acionam o judiciário buscando a tutela de seus direitos, é que a aplicação da lei seja a mais adequada possível, pois os regramentos trazidos pelo Código de Defesa do Consumidor ou qualquer outra lei não se prestam a propiciar proteção desmedida a uma das partes, relegando à parte adversa a certeza do insucesso. A finalidade do ordenamento jurídico repousa na paridade de armas e no equilíbrio processual, observadas as características próprias das partes envolvidas, para o regular desenvolvimento do processo que produzirá um resultado que atenda aos anseios sociais nos termos da legislação vigente.

Em conclusão, a questão da (in)aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor e da inversão do ônus da prova em ações judiciais de seguros agrícolas é complexa e necessita de uma análise cuidadosa das circunstâncias específicas de cada caso. A jurisprudência dos tribunais estaduais demonstra uma tendência à proteção do segurado, porém, como visto, nem sempre a sua figura se enquadra na definição tradicional de consumidor, especialmente no contexto do agronegócio, onde muitas vezes a produção é em larga escala e com finalidades comerciais.

Assim, a distinção entre o segurado consumidor e o segurado empresário se faz crucial para determinar a aplicabilidade do CDC e a possibilidade de inversão do ônus da prova. É fundamental que o judiciário equilibre a proteção ao consumidor com a necessidade de não presumir a vulnerabilidade de forma automática, garantindo, assim, a justiça e a equidade nas relações contratuais securitárias, respeitando as particularidades do setor agrícola e contribuindo para o desenvolvimento sustentável e econômico do país.

 


[1] Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/39303-pib-cresce-2-9-em-2023-e-fecha-o-ano-em-r-10-9-trilhoes#:~:text=Em%202023%2C%20o%20PIB%20(Produto,Servi%C3%A7os%20(2%2C4%25).&text=O%20PIB%20totalizou%20R%24%2010%2C9%20trilh%C3%B5es%20em%202023. Acesso em 02/03/2022.

[2] Disponível em https://globorural.globo.com/economia/noticia/2024/03/agro-nao-deve-contribuir-tanto-com-o-pib-em-2024-dizem-especialistas.ghtml. Acesso em 02/03/2024.

[3] Goldberg, Ilan. Há vulnerabilidade nos contratos de seguro D&O? Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-16/seguros-contemporaneos-debate-vulnerabilidade-contratos-seguro/. Acesso em 12/03/2024.

[4] Idem.

[5] SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo, 2. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 679.

[6] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros, 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 75.

[7] MARQUES, Cláudia Lima, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 253-254.

[8] SCHREIBER, Anderson. Ibid. p. 680.

[9] FERRER, Juliano; PEREIRA, Maria Izabel Indrusiak. Uma análise da obrigação legal e contratual que deve ser observada pelo segurado, como elemento essencial à quantificação e aceitação de risco. In: Seguros em artigos de acadêmicos – Acervo de Cátedras da ANSP. São Paulo, 2022.

[10] TJ-PR; Agravo de Instrumento nº 0038737-51.2023.8.16.0000, Des.ª Themis de Almeida Furquim, 8ª Câmara de Direito Privado; j. 22/09/2023.

[11] STJ; AgInt no AREsp nº 1.973.453/RS; Relator Ministro Luis Felipe Salomão; Quarta Turma; j. 11/04/2022; p. 19/04/2022.

[12] Idem.

[13] Nesse sentido, confira-se: STJ, REsp nº 1.926.477/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j.18/10/2022, p. 27/10/2022; STJ, AgInt no AREsp nº 1.096.881/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 15/03/2018, p. 20/03/2018; STJ, AgInt no AgInt nos EDcl no AgInt no AREsp nº 1.326.846/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 30/05/2022, p. 01/06/2022.

[14] Por exemplo: TJ-RS, Agravo de Instrumento nº 5228355- 09.2021.8.21.7000, Quinta Câmara Cível, Rel. Desembargador Jorge André Pereira Gailhard, j. 05/12/2022; TJSP, Apelação Cível nº 1001173-54.2018.8.26.0279, relatora Mary Grün, 32ª Câmara de Direito Privado, j. 12/05/2022, p. 13/05/2022; TJMT, Agravo de Instrumento nº 1017352-39.2021.8.11.0000, relator João Ferreira Filho, Primeira Câmara de Direito Privado, j. 08/02/2022, p. 14/02/2022.

[15] Schreiber, Anderson. Ibid. p. 680.

[16] Idem. (Destacado no original).

[17] Idem.

[18] Idem. (Destacado no original).

[19] Idem. (Destacado no original).

Autores

  • é sócia gestora da área de Seguros e Resseguros no Escritório CGV Advogados (filial São Paulo), especialista em Direito dos Seguros e Resseguros e em Liderança e Gestão de Pessoas pelo Insper.

  • é advogada na área estratégica de Seguros no Escritório CGV Advogados, pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e bacharel em direito magna cum laude pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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