Direito Civil Atual

Repetição de indébito no art. 940 do CC e do parágrafo único do art. 42 do CDC

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18 de março de 2024, 13h14

No estudo dos antecedentes da repetição de indébito, o período formular romano estabelecia a regra da absolvição do demandado.

O juiz vinculava-se à fórmula <<Si paret… condemna; si non paret, absolve>>, [1] a menos que houvesse outra justificativa razoável para a intentio do demandante.

Quando o demandante pedia na intentio além do que lhe era devido, dizia-se que esta era não justificada, descabendo ao juiz verificar se remanescia eventual débito menor (não excedente e aquém do mencionado na intentio), pois a fórmula era taxativa.

Absolvia-se o demandado, extinguia-se a pretensão deduzida em juízo, inclusive para fins de extinção da obrigação (modo ipso iure – v.g. novaçãoe modo exceptionis ope), sobrevindo a causa cadebat (o demandante decaía da íntegra da ação).

Eram severas as consequências impostas pelo processo formulário. Sendo a própria fórmula “incerta”, chegou-se a questionar se, quando a intentio se referia a objeto incerto (porque não lhe era possível, de imediato, ser certo), seria adequado falar em plus petitio, já que o demandante pedia o que, apesar de incerto, acreditava ser justo (<<Quidquid paret…, quanti ea res erit…>>). [2]

E se o erro não estivesse na intentio do demandante, e sim em uma das partes da fórmula (na demonstratio ou na condemnatio)? Sem uma sentença futura que viesse a acolher a intentio, esta, por si só, não surtiria grandes efeitos.

Cognitio extraordinaria

ConJur

Com o período da cognitio extraordinaria, a fórmula deixou de ser determinante para o juiz, o qual começou a se atentar para o rigor do texto formulário na plus petitio. Ainda, importava fazer referência, entre outros,

(i) à constituição de Zenão quando diz que quem demandar precocemente suportará o prazo pelo dobro do prazo primitivo sem poder demandar (mesmo as quantias vencidas) e que, desejando valer-se da mesma ação, deveria ressarcir o demandado pelos gastos que este tivera em primeira instância;

e (ii) à compreensão de Justiniano de que uma nova plus petitio imporia ao demandante pagar o triplo ao demandado pelos danos ocorridos devido ao excesso da primeira demanda, inclusive pelo trabalho de auxiliares da justiça. Já não se está a falar do excesso da intentio ou da fórmula, porque se passou a entender como plus petitio todo exagero da demanda do libellus conventionis (v.g. casos de re, tempore, loco e causa). [3]

Feito esse brevíssimo histórico, o enriquecimento sem causa (injustificado, indébito, injusto) decorrente de demanda por dívida já paga total ou parcialmente e causador da obrigação de indenizar (pena civil) continua a ser tema debatido no direito pátrio contemporâneo.

Correspondente ao artigo 1.531 do CC/1916, [4] o art. 940 do CC/2002 dispõe que:

Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.” [5]

E o parágrafo único do artigo 42 do CDC estabelece:

O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.”

CC de 2002

O CC/2002, independentemente da comprovação de prejuízo e mesmo que este não tenha chegado a ocorrer, determina, no artigo 940, que o autor indenize o réu quando demande (exija em juízo) dívida já paga total ou parcialmente ou quando não abater quantia já paga (repetição em dobro) ou cobrar a maior (“pelo que dele exigir”).

Além da propositura da ação contra o suposto devedor, o requisito subjetivo da prova de má-fé do credor era necessário segundo antiga orientação do STF, [6] mas, a partir da promulgação da Constituição de 1988, a uniformização da interpretação infraconstitucional compete ao STJ, segundo o qual cabe ao demandado requerer a sanção civil na própria contestação, em reconvenção ou em ação autônoma.

O artigo 941 traz, no entanto, exceção à aplicação da sanção civil “quando o autor desistir da ação antes de contestada a lide, salvo ao réu o direito de haver indenização por algum prejuízo que prove ter sofrido”.

Ao contrário do CC/2002 (que exige a cobrança judicial), o CDC cuida da cobrança extrajudicial de dívida de consumo no parágrafo único do art. 42.

Esse dispositivo do CDC, in fine (“salvo hipótese de engano justificável”), acabou dando margem a interpretações no sentido da exigência do critério subjetivo da má-fé para aplicação da sanção civil, a despeito de posição em sentido contrário (para a qual bastaria a culpa do demandante, sem necessidade de se perquirir a boa-fé ou a má-fé). [7]

Não reunidos os pressupostos do parágrafo único do artigo 42 do CDC, aplica-se a regra do Código Civil, no que couber.

Para fins de uniformização, a matéria é julgada tanto pela 1ª Seção (direito público) quanto pela Segunda Seção (direito privado) do STJ e pelos respectivos colegiados que as integram. Dada a importância do tema, o STJ, mais de uma vez, afetou-o ao rito dos recursos repetitivos para discussão na Corte Especial.

Trata-se de debate bastante aguardado pela comunidade jurídica, dada a grande repercussão econômica que sua pacificação terá nas relações privadas e de consumo, citando-se, por exemplo, o Tema Repetitivo 929 (“Discussão quanto às hipóteses de aplicação da repetição em dobro prevista no artigo 42, parágrafo único, do CDC”), [8] cujo suporte fático é distinto daquele tratado no artigo 940 do CC.

Postas as considerações acima, dar-se-á continuidade, nos próximos dias, ao estudo deste tema na doutrina, na jurisprudência e na legislação.

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

 

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[1] Inst. 4, 43.

[2] V.: Ortolan, Joseph; Labbé, Joseph Émile. Explication historique des Instituts de l’empereur Justinien: avec le texte, la traduction en regard, et les commentaires sous chaque paragrafe, t. II. Paris: Plon, Nourrit et cie, 1883, p. 566 e ss.

[3] Idem.

[4] CC/1916. Art. 1.531. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar o devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que lhe exigir, salvo se, por lhe estar prescrito o direito, decair da ação.

[5] No Anteprojeto do Novo Código Civil, a Emenda 68/2024, de consenso com os Relatórios Gerais da Subcomissão de Responsabilidade Civil, propõe esta redação para o art. 940: “Aquele que demandar por dívida inexistente ou já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, sem prejuízo de arbitramento de valor compensatório complementar, caso as quantias cobradas sejam de módico valor.” (Destacou-se)

[6] Súmula 159. Enunciado: “Cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções do art. 1.531 do Código Civil.”. Aprovação: 13/12/1963.

[7] V.: SANTANNA, Hector Valverde. Repetição do indébito no CDC não exige prova do dolo ou má-fé do fornecedor. Disponível em: << https://www.conjur.com.br/2021-nov-03/garantias-consumo-repeticao-indebito-cdc-nao-exige-prova-dolo-fornecedor/>>.

[8] Provisoriamente, o REsp n. 1.823.218/AC foi suspenso pelo Tema 1.116/STJ (“Validade (ou não) da contratação de empréstimo consignado por pessoa analfabeta, mediante instrumento particular assinado a rogo e subscrito por duas testemunhas.”), conforme decisão publicada no DJe de 28/4/2022.

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