O aviso de sinistro na proposta de reforma do Código Civil
7 de março de 2024, 8h00
A comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, composta por respeitados civilistas, dentre eles ministros do Superior Tribunal de Justiça, apresentou ao público, no dia 26/2/2024, relatório geral contendo propostas de modernização de parte considerável dos artigos [1]. O Capítulo XV, que trata do contrato de seguro, não ficou de fora dos planos e foi alvo de emendas pelo grupo designado para o trabalho.
Evidente que há ajustes finos a serem feitos até se alcançar a versão final, porém, o que se observa até aqui são substitutivos coesos, equilibrados e que unem a teoria e a prática. Desprendido de qualquer filiação ideológica de mercado, e fruto de um ambiente plural e democrático, o relatório sugere importantes soluções que levam em consideração as mudanças sociais, regulatórias, tecnológicas e jurisprudenciais ocorridas nas últimas duas décadas.
Sublinha-se, por exemplo, (1) a diferenciação entre seguros de grandes riscos e seguros massificados (artigos 757-A), em harmonia com os avanços regulatórios recentes (especialmente a Resolução CNSP nº 407/2021) e a experiência estrangeira [2]; (2) a possibilidade de comprovação da contratação de seguro por meio de apólice ou bilhete físico ou virtual (artigos 758, 759 e 785), contemplando os meios modernos de contratação; (3) a expressa obrigatoriedade de prévia interpelação judicial ou extrajudicial para que a seguradora resolva o contrato em caso de mora no pagamento do prêmio (artigo 763, parágrafo único), na esteira do pacífico entendimento dos tribunais; (4) a exigência da mais estrita boa-fé nas tratativas iniciais e na fase pós-contratual, para além da conclusão e da execução do contrato, não só a respeito das circunstâncias e declarações a ele concernentes, como também do interesse legítimo segurado (artigo 765); dentre tantas outras novidades dignas de nota [3].
O novo artigo sobre aviso de sinistro
O interesse do presente texto se volta, entretanto, às sugestões incorporadas ao artigo 771, que trata do aviso de sinistro e dos efeitos decorrentes de sua demora. O aviso de sinistro consiste no modo pelo qual o segurado ou o terceiro interessado na garantia interpela o segurador a respeito da ocorrência do evento que torna exigível a prestação de garantia [4].
A redação ora submetida pelos juristas premia o intérprete com critérios claros e prazos bem definidos, lançando uma pá de cal nas consequências negativas advindas da expressão genérica – “logo que o saiba” – atualmente posta, que persiste desde o CC/1916, artigo 1.457.[5] Leia-se a redação atual do dispositivo e a atualização proposta pela comissão de juristas:
Código Civil 2002 | Redação Relatoria-Geral |
Art. 771. Sob pena de perder o direito à indenização, o segurado participará o sinistro ao segurador, logo que o saiba, e tomará as providências imediatas para minorar-lhe as conseqüências.
Parágrafo único. Correm à conta do segurador, até o limite fixado no contrato, as despesas de salvamento conseqüente ao sinistro. |
Art. 771. Sob pena de perder o direito à indenização, o segurado participará o sinistro ao segurador, no prazo de quinze dias de sua ciência inequívoca, e tomará as providências imediatas para minorar-lhe as consequências.
Parágrafo único. Revogar. § 1°. Na proposta de seguro e no contrato, virá em destaque a necessidade da comunicação no prazo referido, com suas consequências e com o endereço completo, físico e eletrônico, para onde será enviada; § 2º. A ausência do aviso do sinistro não implicará perda do direito à indenização, se o segurado provar que não tinha razoáveis condições de tê-lo feito, situação que não poderá superar o prazo de sessenta dias, contados da data da ciência inequívoca do sinistro; § 3º. Transcorrido o prazo de sessenta dias da data da ciência inequívoca do sinistro, sem comunicação ao segurador, o segurado perderá o direito à indenização; (…). |
Diferentemente de outras legislações, o legislador brasileiro optou por não estipular um prazo para que o segurado informe sobre o sinistro, apenas registrando que essa obrigação deve ser cumprida tão logo o segurado saiba de sua ocorrência (isto é, deve ser feita de forma mais imediata possível).[6]–[7]
Embora o artigo 771 do CC/2002 decrete a perda do direito à indenização em caso de aviso tardio, prestigiando o corolário da boa-fé objetiva, ele peca ao não indicar objetivamente qual seria o prazo aplicável à essa comunicação. A expressão eleita pelo legislador – “logo que o saiba” – provoca insegurança não só aos seguradores, cujas reservas são impactadas, mas também aos próprios segurados, principalmente aqueles que não são assessorados por grandes bancas de advogados e corretores de seguro e que não sabem ao certo quanto tempo possuem para participar o sinistro à seguradora, correndo o risco de ver seu direito à indenização prejudicado pela falta de clareza legal e contratual.
Por adotar uma cláusula geral, ou uma conceituação vaga, o dispositivo confia ao juiz a aplicação da regra em função das particularidades do caso concreto e dos critérios derivados da boa-fé e da lealdade, a que se sujeitam as partes, tanto na formação como na interpretação e no cumprimento dos contratos (artigos 113 e 422 do CC/2002) [8]. E, ao nomear o magistrado para essa tarefa, um tanto subjetiva, abre-se espaço para decisões judiciais conflitantes [9].
Tal como redigido atualmente, o texto legal ainda gera um problema sob a ótica da prescrição da pretensão do segurado contra o segurador, sobretudo tendo em conta a tendência jurisprudencial de considerar como termo inicial da prescrição a recusa da seguradora [10], e não mais o sinistro.[11]
Considerando que não há prazo definido para o aviso do sinistro e que a prescrição, conforme entendimento mais recente, apenas teria início com a negativa de cobertura securitária, o segurado moroso acaba sendo recompensado e, de certa forma, incentivado, em prejuízo da seguradora, de suas reservas técnicas e, em última instância, do fundo mutual e dos segurados diligentes.
Prazo de 15 a 60 dias
Por essas razões é que se mostra positiva a proposta de atualização do artigo 771 do CC/2002. A sugestão da comissão de juristas é estabelecer um prazo de 15 dias para que o segurado avise o sinistro à seguradora, a contar da sua ciência inequívoca, podendo se estender para 60 dias se o segurado provar que não tinha razoáveis condições de cumprir com esse dever [de informar] anteriormente. Transcorrido o prazo de 60 dias da data da ciência inequívoca do sinistro, sem comunicação ao segurador, o segurado perderia, em definitivo, o direito à indenização.
Caso venha a ser aprovado, pondera-se, apenas, acerca da aplicação desse prazo decadencial aos seguros de vida em caso de morte, os quais provavelmente não se submeteriam à regra geral. Primeiro porque o texto refere-se exclusivamente ao “segurado” e não ao “beneficiário”; e segundo, porque em um seguro de vida com garantia para morte, revela-se pouco relevante se o sinistro será comunicado no mesmo dia ou dentro de um mês: as circunstâncias não são alteradas, não haverá sub-rogação e o montante devido não será impactado, para além de ser inaplicável o instituto do salvamento [12].
Considerações finais
Para concluir, reitera-se o que se disse no início. Apesar de ainda estar sujeita a debate e reparos, a atualização proposta pela comissão de juristas ao capítulo destinado ao contrato de seguro é marcada pelo equilíbrio, provocando um misto de otimismo e alívio para quem as lê com neutralidade. A respeito das emendas ao artigo 771 do CC/2002, além de estar alinhadas ao padrão internacional, a substituição da expressão “logo que o saiba” por um prazo definido em dias garante maior objetividade ao processo e segurança jurídica aos envolvidos na relação contratual, sendo, portanto, muito bem-vinda.
[1] O Relatório Geral encontra-se em https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=7996&codcol=2630, acesso em 29.02.2024.
[2] Veja-se, assim, na Espanha, a Ley nº 50/1980, artigos 2º, 44 e 107, nº 2; em Portugal, o Decreto Lei nº 72/2008, em seus artigos 12º e 13º,; na França, o Code des Assurances, especialmente os artigos L-111-6 e L.181-1, numeral 5; na Alemanha, o artigo 210 da Lei de Seguros; na Argentina, a Ley nº 17.418/1967, artigo 158; no Chile, a Ley nº 20.667/2013, o artigo 542, § 2º; na Colômbia, a Ley nº 35/1993; e no Peru, a Ley nº 29.946/2012, artigo 3º.
[3] A respeito das principais soluções propostas pelo relatório: SENHORA, Victor Augusto Benes. Contrato de seguro entra na pauta dos juristas que compõe a comissão de modernização do Código Civil – Apontamentos iniciais. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/402531/contrato-de-seguro-entra-na-pauta-dos-juristas-que-compoe-a-comissao, acesso em 29.02.2024.
[4] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos Seguros. 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2022, pp. 242 e 243.
[5] “Art. 1.457. Verificando o sinistro, o segurado, logo que saiba, comunicá-lo-á ao segurador. Parágrafo único: A omissão injustificada exonera o segurador, se este provar que, oportunamente avisado, lhe teria sido possível evitar, ou atenuar, as conseqüências do sinistro.”
Lembre-se que o Projeto de Lei da Câmara n° 29, de 2017, por meio de seu art. 70, também não prevê um prazo específico para o segurado avisar o sinistro à seguradora, isto é, não resolve o problema atual do art. 771 do CC/2002, como se propõe a fazer a Comissão de Juristas.
[6] NEVES, José Roberto de Castro. Comentários ao art. 771. In Direito dos seguros: comentários ao Código Civil. Organizadores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira. 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 302.
[7] De fato, predomina no direito comparado, como regra, a fixação de prazo determinado para o envio do aviso do sinistro, geralmente em poucos dias após o seu conhecimento, por exemplo: oito dias no direito português (Decreto-Lei n.º 72/2008 – “Regime Jurídico do Contrato de Seguro”, art. 100º, n. 1), três dias no direito argentino (Lei nº 17.418/1967 – “Ley de Seguros”, art. 46), sete dias no direito espanhol (Lei nº 50/1980 – “Ley de Contrato de Seguro”, art. 16), entre outros.
[8] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Contrato de seguro. Ação do segurado contra a seguradora. Prescrição. In Estudos de direito privado e processual civil em homenagem a Clóvis do Couto e Silva. Org. Judith Martins-Costa e Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2014. p. 172. O autor, na mesma oportunidade, sinaliza que “[o] único inconveniente que se registra na disciplina legal brasileira, em matéria do aviso de sinistro, é falta de estipulação de um prazo certo, para condicionar o cumprimento da obrigação imposta pelo art. 771 do CC/2002. O dispositivo limita-se a afirmar que o segurado deve participar o sinistro à segurador ‘logo que o saiba’. Não é o que prevalece no direito comparado, pois as legislações estrangeiras, cuidam, em regra, de fixar prazo determinado para o aviso do sinistro.”.
[9] A título de exemplo, remete-se a julgado envolvendo seguro-garantia em que o tribunal afastou a negativa de cobertura securitária, por perda ao direito de indenização, ainda que incontroverso o atraso de nove meses na comunicação do sinistro: TRF2, Apelação nº 5106638-36.2019.4.02.5101, Des. Relator Poul Erik Dyrlund, 6ª Turma Especializada, j. em 02.05.2023. Por outro lado, para evidenciar o risco real de decisões conflitantes decorrente da vaga conceituação legal, chama-se atenção a outro julgado, desta vez relacionado a seguro de uma retroescavadeira e provindo do TJSC, que entendeu que, “embora não seja necessário que o segurado comunique o sinistro imediatamente à sua ocorrência, não é razoável esperar 4 meses da data do evento danoso para realizar essa comunicação”. Trata-se da Apelação Cível n. 2014.019996-0, de Relatoria do Des. Saul Steil, Terceira Câmara de Direito Civil, j. em 19.08.2014. Não há dúvidas que cada caso deve ser analisado individualmente, atentando-se principalmente à natureza do comportamento do segurado e aos prejuízos que o aviso tardio provocou ao segurador, mas a discrepância de tratamento dado a cada um dos julgados acima, por seus respectivos tribunais, poderia ser evitada ou mitigada caso o artigo 771 do CC/2002 trouxesse critérios mais bem delimitados quanto ao prazo aplicável ao aviso de sinistro pelo segurado.
[10] STJ, REsp n. 1.970.111/MG, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. em 15.03.2022, DJe de 30.03.2022. O trecho a seguir, retirado da ementa, traduz bem o problema que se extrai do art. 771: “Com o advento do CC/02, alterou-se a redação da alínea ‘b’ do II do § 1º do art. 206, estabelecendo como termo inicial do prazo prescricional a data da ciência do ‘fato gerador da pretensão’. A interpretação desse dispositivo em conjunto com o estabelecido no art. 771 do mesmo diploma legal conduz à conclusão de que, antes da regulação do sinistro e da recusa de cobertura nada pode exigir o segurado do segurador, motivo pelo qual não se pode considerar iniciado o transcurso do prazo prescricional tão somente com a ciência do sinistro. Por essa razão, é, em regra, a ciência do segurado acerca da recusa da cobertura securitária pelo segurador que representa o ‘fato gerador da pretensão’.”
[11] Súmula n. 229 do STJ: “O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão.”.
[12] GOLDBERG, Ilan. Reflexões a respeito do contrato de seguro. In: Contrato Mercantis. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. Coleção Tratado de Direito Empresarial. v.4. Coord. Modesto Carvalhosa, p. 379. Em sentido semelhante, PETERSEN, Luíza Moreira. A prescrição e a decadência no contrato de seguro: a prescrição da pretensão do segurado e o aviso de sinistro. In Revista CILA (Comité Ibero-Latinoamericano de AIDA). Coord. Félix Benito Osma n. 3/2015 (septiembre-diciembre). p. 113: “Em primeiro lugar, o prazo deverá variar de acordo com a modalidade do seguro, de acordo com a natureza do interesse segurado e com o prejuízo que a demora do aviso poderá trazer à regulação do sinistro. Evidentemente, a urgência da comunicação do sinistro não será a mesma nos seguros de dano e nos seguros de vida. No primeiro caso, o aviso deve ocorrer o mais rápido possível, considerando que o segurador deverá intervir para minorar os danos e deverão ser apuradas – em tempo útil – a causa do sinistro e a extensão dos danos. Já, no caso do seguro de vida, não há tanta urgência para o aviso do sinistro. Este deve ocorrer, em prazo razoável, mas não há necessidade de se impor ao segurado e aos beneficiários prazo semelhante àquele estabelecido para os seguros de dano, tendo em vista que a natureza do interesse segurado não permite que a intervenção da seguradora para a minoração das consequências do sinistro e que a regulação tende a ser menos complexa.”.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!