Seguros Contemporâneos

Há vulnerabilidade nos contratos de seguro D&O?

Autor

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

16 de março de 2023, 8h00

"Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades" [1]. A célebre frase restou imortalizada no diálogo mantido por Peter Parker e seu Tio Ben, no momento em que o jovem Homem Aranha começava a se dar conta de seus superpoderes e, ao mesmo tempo, das elevadas cargas de responsabilidade por eles atraídas.

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O ensinamento transmitido ao super-herói diz muito em termos das acentuadas cargas de responsabilidade impostas aos administradores de empresas na contemporaneidade. Se, por um lado, ditos profissionais farão jus a elevados salários, bônus, planos para aquisição de ações da companhia, por outro lado terão inúmeros deveres a cumprir, potencializados pelo elevado nível de diligência que se espera de profissionais desse quilate [2].

Não é por outra razão que, em termos de direito empresarial e da responsabilidade de administradores, o velhaco bonus pater familiae foi sentar-se no banco de reservas, sendo substituído pelo arrojado homem experiente de negócios — o businessman. A doutrina comercialista é uniforme no sentido de apregoar essa diligência qualificada, considerada essencial para o desenvolvimento satisfatório das obrigações exigíveis de um administrador em seu cotidiano [3].

Respostas evasivas do tipo: "mas eu não sabia", "mas eu não vi", "mas isto não era de minha alçada" chocam-se com as grandes responsabilidades impostas a esses executivos. Caso se reflita a propósito da densidade de suas obrigações de maneira correspectiva, é como se seus ganhos (salários, bônus, ações etc.) fossem proporcionais aos deveres que devem observar diuturnamente.

Com essa breve introdução, já é possível avançar à questão formulada no título desta singela coluna, o que faremos, inicialmente, traçando o contexto no qual o Código de Defesa do Consumidor foi promulgado.

Retroagindo à publicação da Constituição da República de 5/10/1988, o momento histórico que lhe antecedeu, sob a perspectiva jurídica, era de acentuado desequilíbrio entre fornecedores e consumidores. Civilisticamente, o Código Civil de 1916 não colaborava muito, considerando sua massiva influência francesa de viés liberal, aqui sintetizada num pacta sunt servanda potencializado.

O combinado, por mais caro que fosse ao consumidor, tinha que ser cumprido, livre da influência de princípios tais como a função social dos contratos e a boa-fé objetiva, positivados pelo Código Civil de 2002, inspirados, segundo Miguel Reale, em axiomas fundamentais como a eticidade, socialidade e a operabilidade.

Esse retorno histórico é mesmo importante para sublinhar quão paradigmática foi a Lei 8.078/1990, no sentido de restabelecer a Justiça e a equidade nas chamadas relações de consumo. A vedação às cláusulas abusivas, resolução unilateral de contratos, inversão do ônus da prova, entre outros instrumentos foram e, até hoje, são essenciais à promoção de equilíbrio contratual no seio dessas chamadas relações jurídicas caracterizadas pela hipossuficiência de seus partícipes.

Adentrando na arena dos contratos de seguros, segurados frágeis, despidos de conhecimento, de recursos técnico-financeiros, precisavam da proteção outorgada pela lei consumerista, densamente influenciada pela principiologia constitucional. É o que se observava, e.g., designadamente nos chamados seguros massificados: vida, residencial, automóvel, saúde.

Examinando agora os contratos de seguros ditos empresariais (grandes riscos), aquele aspecto de vulnerabilidade começa a se transformar, considerando, justamente, a ausência dos pressupostos referidos no parágrafo anterior. Antes ainda de chegar ao objeto específico deste ensaio, pense-se, por exemplo, em grandes empresas contratantes de seguros empresariais para suas linhas de transmissão de energia elétrica, plataformas de petróleo, e/ou barragens à exploração/produção de minério de ferro.

Por mais que nesses simples exemplos as contratantes dessas apólices figurem como destinatárias finais dos seguros respectivos, é preciso ter em mente que o elemento crucial à incidência do Código de Defesa do Consumidor revela-se ausente. Em definitivo, grandes tomadores de seguros dispõem, para além de seu staff interno (advogados, engenheiros, risk managers, às vezes, corretoras de seguros cativas), de corretores de seguros os mais especializados, que se sentam à negociação com seguradoras e resseguradoras de maneira habitual, pleiteando melhores condições técnicas e comerciais aos seus clientes.

Todo esse aparato negocial fulmina o requisito essencial à incidência do CDC a essas relações, qual seja, a vulnerabilidade, cirurgicamente examinada pelo STJ por ocasião do julgamento do REsp nº. 1.926.477/SP, relator o e. ministro Marco Aurélio Bellizze:

"RECURSOS ESPECIAIS. CONTRATO DE SEGURO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. SEGURO RC D&O. INAPLICABILIDADE DO CDC. CLÁUSULA DE PARTICIPAÇÃO. RETENÇÃO DE 10% DA INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. REVISÃO DAS CONCLUSÕES DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULAS N. 5 E 7/STJ. HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. INCIDÊNCIA DO CPC/1973. MARCO TEMPORAL. SENTENÇA. EQUIDADE. POSSIBILIDADE. RECURSOS ESPECIAIS DESPROVIDOS. (…).

2. No âmbito desta Corte Superior se consolidou Teoria Finalista Mitigada acerca da aplicação da legislação consumerista, segundo a qual se prestigia o exame da vulnerabilidade no caso concreto, isto é, se existe, na hipótese analisada, uma evidente superioridade de uma das partes da relação jurídica capaz de afetar substancialmente o equilíbrio da relação.
3. Prevalece o entendimento de haver relação de consumo no seguro empresarial se a pessoa jurídica contrata a proteção do próprio patrimônio, com destinação pessoal, sem o integrar nos produtos ou serviços que oferece, pois, nessa hipótese, atuaria como destinatária final dos serviços securitários.
4. Entretanto, no Seguro RC D&O, o objeto é diverso daquele relativo ao seguro patrimonial da pessoa jurídica, pois busca garantir o risco de eventuais prejuízos causados em consequência de atos ilícitos culposos praticados por executivos durante a gestão da sociedade, o que acaba fomentando administrações arrojadas e empreendedoras, as quais poderiam não acontecer caso houvesse a possibilidade de responsabilização pessoal delas decorrente. Assim, a sociedade empresária segurada não atua como destinatária final do seguro, utilizando a proteção securitária como insumo para suas atividades e para alcançar melhores resultados societários. (…).

7. Recursos especiais desprovidos" (STJ, REsp nº 1.926.477/SP, 3ª Turma, rel. ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, j. 18.10.2022, DJe 27.10.2022 – destacou-se).

No item 2 da ementa, S. Excelência esclarece que no STJ adota-se a chamada teoria finalista mitigada, segundo a qual compete ao juiz examinar, no caso concreto, a presença ou não de vulnerabilidade por parte do tomador do contrato para fins de incidência da lei protetiva.

Prosseguindo, o acórdão caminha pela incidência do CDC às relações empresariais nas quais a sociedade funcione como destinatária final do seguro contratado para, então, propor o necessário distinguishing desta hipótese daquela qualificada pelos seguros D&O.

Parafraseando S. Excelência, o e. ministro Bellizze, "a sociedade empresária segurada não atua como destinatária final do seguro, utilizando a proteção securitária como insumo para suas atividades e para alcançar melhores resultados societários". A 3ª Turma da Corte Superior, por unanimidade, acompanhou o voto do relator.

Em pesquisa empírica, foram encontrados diversos acórdãos no TJ-SP, todos no sentido de afastar o CDC das relações desenvolvidas nos seguros D&O [4]. O TJ-RJ caminha na mesma direção.[5]

A diferença entre o veneno e a cura está, precisamente, no tamanho da dose. Aristotelicamente, é preciso tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de sua desigualdade. Às relações empresariais [6] que nutrem as apólices D&O, o CDC é inaplicável.

 


[1] Para examinar o diálogo em português, seja permitido referir a https://www.youtube.com/watch?v=guuYU74wU70. A frase, no original em inglês — "With great power comes great responsibility", é correntemente empregada pela mídia em meios os mais variados. Referências: With great power, comes great responsibility. The Malta Independent». www.independent.com.mt. Is CRISPR really a gene-ius discovery? The Daily Campus.; Editor, Parker Otto. Marvel Cinematic Universe evolves film itself. Northern Star Online; Steve Ditko's Gift To All: With Great Power Comes Great Responsibility'. The Federalist. 9 de julho de 2018. Consultados em 14.3.2023.

[2] Seja consentido remeter ao nosso GOLDBERG, Ilan. O contrato de seguro D&O. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, especialmente o capítulo 2, que detalhada o regimento de responsabilidade dos administradores sob a ótica das apólices D&O.

[3] "O dever de diligência, de acordo com o moderno direito societário, não pode mais ser entendido simplesmente como o cuidado do bom pai de família. Atualmente, para se verificar se um administrador observou o dever de diligência, é preciso comparar, hipoteticamente, sua atuação com o de um bom administrador de empresas […]". (EIZIRIK, Nelson. Deveres dos administradores de S.A. Conflito de Interesses. Diretor de S.A. indicado para conselho de companhia concorrente. In Temas de direito societário. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 68).

[4] "à luz da natureza empresarial da apólice de responsabilidade civil 'D&O', que é moldado especificamente (e isso é importante) de acordo com os riscos inerentes às atividades, faturamento e mercado de cada empresa visando ao fomento da sua produção e não como destinatária final não há falar-se em evidente relação de consumo (sic) (fls. 577)" (Apelação nº 1125989-63.2018.8.26.0100, 1ª Câmara de Direito Privado, rel. Desembargador RUI CASCALDI, j. 06.07.2021, DJe 07.07.2021 – destacou-se). “Apelação – Ação declaratória – Apólice de seguro de responsabilidade civil geral de administradores – […] – Não provimento. […]. "Neste ponto, de se salientar que mesmo que fossem aplicadas as disposições do CDC — o que é discutível porque a natureza do seguro de responsabilidade civil geral do administrador se aproxima de um contrato empresarial, no qual grandes companhias buscam proteger financeiramente o administrador na condução do negócio, as disposições do contrato são claras, válidas e foram aprovadas pela SUSEP Superintendência de Seguros Privados" [4] (Apelação nº 1025767-63.2013.8.26.0100, 4ª Câmara de Direito Privado, Rel. Desembargador ENIO ZULIANI, j. 22.05.2014, DJe 16.06.2014 – destacou-se). "Risível a alegação pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor a uma das maiores empresas do Brasil em um contrato de nítido caráter empresarial como o de seguro de responsabilidade civil dos administradores da empresa, em razão da função por eles exercidas. É o que basta para afastar o regime jurídico pretendido" (Processo nº 1108961-19.2017.8.26.0100, 11ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Capital, magistrado prolator CHRISTOPHER ALEXANDER ROISIN, j. 02.08.2018, DJe 07.08.2018 – destacou-se).

[5] "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA SECURITÁRIA. […]. À hipótese dos autos não se aplica o Código de Defesa do Consumidor. Isto porque a apelante utiliza o serviço adquirido na atividade econômica por ela desenvolvida. Não se enquadra na definição de consumidor a pessoa jurídica que celebra contrato que tem por objeto o fomento das atividades empresariais. Não restou demonstrada a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica frente à parte ré. Precedentes. A autora ajuizou a presente ação na condição de segurada do contrato de seguro D&O, Seguro de Responsabilidade Civil de Administradores, cujo objeto se refere ao pagamento, a título de perdas, devido a terceiros pela pessoa segurada decorrente de reclamação. (…). Sentença mantida. DESPROVIMENTO DO RECURSO" [5] (Apelação nº 0237546-73.2018.8.19.0001, 23ª Câmara Cível, Rel. Desembargadora SÔNIA DE FÁTIMA DIAS, j. 29.06.2022, DJe 18.07.2022 – destacou-se). "APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO SECURITÁRIO. Agravos retidos não conhecidos, pois não reiterados. Contrato de seguro de responsabilidade civil por ato de administradoresRC D&O (Directors and Officers Insurance). Relação de consumo não configurada. Contrato celebrado entre pessoas jurídicas de grande porte. Inexistência de vulnerabilidade. Equilíbrio contratual. Modalidade de contrato de seguro de responsabilidade civil cujo objetivo é garantir o risco de eventuais prejuízos causados por atos de gestão de diretores, administradores e conselheiros que, na atividade profissional, agirem com culpa (Circular/SUSEP nº 541/2016). Finalidade de preservação do patrimônio individual dos administradores (segurados), com consequente incremento das práticas corporativas inovadoras, do patrimônio social da empresa tomadora do seguro e de seus acionistas. Prestígio aos princípios da função social da empresa e da livre iniciativa. Pretensão de indenização por Custos de Defesa suportados em decorrência da deflagração de ação penal de natureza ambiental. (…). Recurso desprovido" [5] (Apelação nº 0035225-17.2012.8.19.0209, 18ª Câmara Cível, Rel. Desembargador CARLOS EDUARDO DA ROSA DA FONSECA PASSOS, j. 11.10.2017, DJe 16.10.2017 – destacou-se).

[6] "De outra parte, se o vínculo se estabelece em torno ou em decorrência da atividade empresarial de ambas as partes, premidas pela busca do lucro, não se deve subsumi-lo à lógica consumerista, sob pena de comprometimento do bom fluxo de relações econômicas". (FORGIONI, Paula A. Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: RT, 2009, p. 29-34).

Autores

  • é sócio fundador de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados, advogado, parecerista, doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Regulação e Concorrência pela Universidade Cândido Mendes (Ucam), pós-graduado em Direito Empresarial LLM pelo Ibmec, professor na FGV Direito Rio, FGV Conhecimento, Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e na Escola de Negócios e Seguros (ENS-Funenseg) e membro dos Conselhos Editoriais da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC) e da Revista Jurídica da CNSeg.

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