Opinião

Novos capítulos do embate pela devolução de tributos pagos indevidamente

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17 de abril de 2024, 6h31

O embate entre o Fisco e os contribuintes em torno da devolução do indébito resultante de norma tributária declarada inconstitucional não é uma novidade, mas esse impasse alcançou um novo e preocupante capítulo com a edição da Medida Provisória nº 1.202/2023.

Ao apagar das luzes do ano de 2023, o governo federal publicou a MP para, dentre outras coisas, introduzir na Lei nº 9.430/96 uma inédita vedação à compensação de créditos decorrentes de decisão judicial que ultrapassem R$ 10 milhões, ao estabelecer que a utilização desses créditos “observará o limite mensal estabelecido em ato do Ministro de Estado da Fazenda”.

Para compreendermos como esse embate alcançou o atual grau de repercussão, é necessário um rápido olhar para o passado.

De início, vemos que a Constituição de 1998 buscou delimitar a intervenção do Estado nas relações privadas, ao mesmo tempo que ampliou o campo de atuação do poder estatal em áreas de interesse público.

Com isso, uma preocupação ganhou especial destaque: garantir a capacidade do Estado custear serviços essenciais, cujo efeito foi a crescente edição de normas infraconstitucionais que extrapolavam as competências tributárias outorgadas pela Constituição ou que visavam indevidamente “alargar” o alcance da hipótese de incidência de determinadas exações.

Assim, seja ao longo do processo legislativo ou quando da edição de medidas provisórias pelo Poder Executivo, por vezes, a discussão em torno da constitucionalidade das matérias tratadas ocupava um papel secundário, em razão da compreensão de que a norma que se pretendia criar estaria fundada em um bem maior: a garantia da manutenção (e, por vezes, da expansão) dos programas sociais e dos serviços públicos vigentes.

Não se ignora a relevância de tais programas e serviços, contudo, não se pode admitir que prevaleça o discurso de validade de uma norma jurídica com base na sua finalidade, em detrimento da sua compatibilidade com a ordem constitucional vigente, sobretudo no âmbito do Direito Tributário, que envolve a invasão direta à liberdade pessoal e à propriedade privada.

Constatada, portanto, a existência de legislação em desconformidade com as limitações constitucionais ao poder de tributar ou que violam as regras constitucionais vigentes, em relação aos quais o Estado avançou, o único remédio cabível seria a sua completa retirada do ordenamento jurídico, por meio da declaração da sua inconstitucionalidade, com efeitos retroativos.

Spacca

Ao se declarar inconstitucional uma norma que, ao longo de sucessivos anos, foi o fundamento legal da imputação, aos contribuintes, da obrigação de arcarem indevidamente com o desembolso de determinados valores, o direito à restituição dessa quantia pelo Estado se configura como uma garantia de que o contribuinte não será compelido a suportar carga tributária superior àquela validamente estabelecida.

União e a defesa da modulação dos efeitos

E é exatamente, nesse momento, que observamos o empenho da União em dificultar que os contribuintes conquistem a devolução desses valores, ao defender a modulação dos efeitos dessa declaração de inconstitucionalidade com base na sua repercussão para os cofres públicos, ao advogar que o artigo 27, da Lei nº 9.868/1999, prevê que a restrição dos efeitos daquela declaração se justificaria em “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”.

Ocorre que o argumento de excepcional interesse social deveria ser invocado com bastante cautela. Isso porque, como no âmbito do Direito Tributário se discute obrigações de trato continuado, os valores apontados como “perdidos” pelo Fisco, na verdade, nunca deveriam ter ingressado nos cofres públicos.

Isso significa, ainda, reconhecer que existe uma nítida distinção entre a realização de despesas públicas criadas por decisões judiciais e o dever de o Ente Tributário restituir o contribuinte dos valores pagos indevidamente.

Sobre esse tema, o professor Fernando Scaff, ao comentar o julgamento, do Tema nº 1.262 da Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal, foi irretocável ao destacar que a Suprema Corte deixou de se pronunciar acerca da relevante distinção existente entre despesa pública nova e dever de devolução do indébito pelo Estado. Com isso, equivocadamente, se reconheceu a impossibilidade de restituição administrativa do indébito reconhecido na via judicial, em razão da indispensável observância do regime constitucional de precatórios previsto no artigo 100 da Constituição.

Por outro lado, o sistema de precatórios foi criado para viabilizar a inserção de previsão orçamentária específica para a realização de despesas públicas novas, criadas por decisões judiciais. Em sentido diverso, na hipótese da repetição de indébito tributário, já houve – em momento anterior – o ingresso desses valores nos cofres públicos. Essa distinção, em sentido diverso do que fora decidido pelo STF, justificaria um tratamento diferenciado a autorizar o afastamento da regra do artigo 100 da CF às hipóteses de repetição de indébitos.

O desfecho do julgamento do Tema nº 1.262 é bastante emblemático, ao reduzir esse debate à ótica do Fisco, segundo a qual a devolução dos tributos pagos indevidamente colocaria em risco o equilíbrio das contas públicas – como se estivéssemos diante de uma despesa pública inédita decorrente de decisão judicial –, ignorando-se, assim, a perspectiva do contribuinte, de que se trata da mera devolução de valores indevidamente ingressados nos cofres públicos.

Direito de devolução que, em última instância, representa o próprio restabelecimento da ordem constitucional vigente, eis que não basta retirar a norma inconstitucional do ordenamento jurídico, é imprescindível que sejam adotadas as medidas necessárias ao retorno do status quo anterior à sua vigência.

Dois efeitos

Nesse contexto, em que se observa a crescente utilização do instituto da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e a exigência de o contribuinte se submeter à regra dos precatórios para obter a restituição do indébito reconhecido na via judicial, a edição da MP nº 1.202/2023 é bastante preocupante, já que representa a intervenção direta da União para restringir a alternativa mais eficiente à disposição do contribuinte: a possibilidade de utilizar o crédito que detém com o ente público em declarações de compensação, com a consequente extinção imediata do débito compensado, sob a condição resolutória da ulterior homologação do procedimento.

Ocorre que a resposta à tributação em desconformidade às regras constitucionais vigentes deveria, automaticamente, resultar em dois efeitos: a retirada desse dispositivo do ordenamento jurídico, com efeitos retroativos, e a devolução, aos sujeitos passivos, dos valores recolhidos indevidamente, assegurando-lhes o direito de utilizarem livremente o crédito que possuem perante o Fisco.

Nesse contexto, como se observa da Exposição de Motivos nº 00175/2020 do Ministério da Fazenda, que antecedeu a edição da MP, a principal motivação dessa medida foi, justamente, impor restrições quantitativas à compensação de créditos decorrentes da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins.

Trata-se, portanto, de uma conduta questionável do governo para restringir o direito de o contribuinte usufruir livremente de um crédito que possui perante o Fisco, o que deve ser observado com bastante cautela, já que, em última instância, prejudica a própria eficácia plena da declaração de uma norma inconstitucional.

 

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