Opinião

Direito a não produzir provas contra si mesmo, combinação de versões e prerrogativas

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27 de fevereiro de 2024, 13h23

A polêmica em torno das decisões proferidas pelo ministro Alexandre de Moraes no âmbito da operação “tempus veritatis” demonstra a necessidade de uma discussão profunda e desapaixonada sobre a possibilidade de acusados discutirem e combinarem, diretamente ou por meio de seus advogados, a versão a ser apresentada perante os órgãos responsáveis pela persecução penal ou em juízo.

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Na primeira decisão proferida, não parecia estar claro se qualquer comunicação entre advogados do caso havia sido proibida ou apenas conversas cujo teor dissesse respeito às versões a serem apresentadas por seus clientes.

Após provocação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o ministro Alexandre de Moraes reafirmou a proibição de combinação de versões pelos investigados, diretamente ou por meio de terceiras pessoas, entre elas familiares e advogados.

Esclareceu, contudo, que sua decisão inicial não continha proibição de comunicação entre os advogados atuantes no feito para outras finalidades.

Prerrogativas da advocacia
Seguiram-se, então, críticas no sentido de que a decisão não havia sido alterada substancialmente e que a proibição de advogados se reunirem para combinar as versões a serem apresentadas por seus clientes  — o que não é necessariamente o mesmo que se reunir para discutir estratégias defensivas [1] — foi mantida, o que implicaria violação a prerrogativas da advocacia.

É preciso que se tenha claro, no entanto, que as prerrogativas da advocacia são instrumentos para viabilizar a garantias das quais é titular o representado [2], neste caso, a ampla defesa e a proteção contra a autoincriminação.

Por isso, somente se poderá pleitear uma prerrogativa de o advogado estabelecer contato com outros advogados atuantes no mesmo procedimento para combinar versões quando isso for decorrência de um direito ou garantia dos seus próprios constituintes, os investigados ou acusados.

Em outras palavras, prerrogativa de advogado só existe ali onde haja direito ou garantia de seu constituinte. E não está claro se a combinação de estratégias ou versões, sejam verdadeiras ou falsas, é um direito dos investigados/acusados.

HC 86.864/SP e precedentes no STJ
É bem verdade que algo acerca do direito à combinação de versões foi ensaiado quando do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da medida cautelar no HC 86.864/SP [3], oportunidade em que se afastou decreto de prisão preventiva que se fundamentava em suposto “aliciamento” de corréu, e, assim, em interferência na colheita de prova. Na ocasião, embora o relator do feito tenha ressaltado “o direito de os corréus estabelecerem estratégia de defesa” (observe-se que não expressamente conformidade de versões fáticas), entendeu ser a controvérsia irrelevante no caso concreto, pois acusados e testemunhas de acusação já haviam sido ouvidos.

Heloisa Estellita

No Superior Tribunal de Justiça, há precedente unânime (AgRg no RHC 108.339/RS) [4] em que se afirma a legalidade do decreto de prisão preventiva baseado em tentativa de evasão e de combinação de versões.

Todavia, há também precedente em que se revoga prisão que havia sido decretada para “evitar a sempre nefasta combinação de versões”, ao fundamento da perda de eficácia da medida, diante do fato de que os acusados já haviam passado quase um mês presos compartilhando cela, bem como que ambos haviam constituído “uma única banca de advogados para realizarem a defesa, de modo que, na hipótese específica em questão, a possibilidade de que se reúnam e elaborem a sua tese defensiva constitui fração de seu próprio direito de ampla defesa” (HC 451.255/DF) [5].

Como a distinção parece ter se baseado na identidade dos advogados no último caso, fica a pergunta: para o reconhecimento desse direito de ampla defesa é necessária a contratação de um mesmo advogado para o caso? E como fica a questão do conflito de interesses? As implicações, como se vê, são complexas.

Em 2017, o ministro Gilmar Mendes ressaltou que, até aquele momento, o STF não afirmara “como decorrentes de direitos fundamentais uma prerrogativa de imputados influenciarem-se uns aos outros e combinarem versões”, ou seja, esclareceu que “a resposta sobre a existência, ou não, de um direito de investigados soltos se reunirem para combinar versões ainda está por ser dada” [6] (HC 141.478/RJ).

Combinação de versões e o “direito de mentir”
O quadro se complica quando se está a tratar de crimes praticados no âmbito de organizações criminosas, pois nesses casos entra em cena a figura da obstrução de justiça (artigo 2º, § 1º, Lei 12.850/2013).

Determinadas posturas de resistência à autoincriminação vêm sendo apontadas como ilícitas, sendo necessário verificar “o impacto que o discurso da obstrução de justiça tem gerado, por exemplo, sobre o direito de defesa, em suas diversas fisionomias” [7].

Há precedentes, inclusive, atribuindo maior gravidade à combinação de versões entre acusado em casos de crimes praticados no âmbito de organizações criminosas (STJ, AgRg no RHC 158.003/RJ; STF, HC 201.377/RJ).

Esse é o pouco claro estado da questão a respeito da possibilidade de investigados/acusados, diretamente ou por intermédio de terceiros, combinarem versões entre si.

Não raramente o direito à combinação de versões, eventualmente falsas, é apontado como decorrência lógica de um suposto direito de mentir, que, por sua vez, seria um corolário do nemo tenetur, i. e., do direito de não ser obrigado a produzir provas contra si mesmo.

A questão não parece ser tão simples, no entanto. O próprio STJ, se bem observados os precedentes que tratam do tema, não reconheceu expressamente o direito à mentira, mas sim a atipicidade daquele que mente em juízo “com o fim de evitar sua acusação pela prática de algum crime, tendo em vista os postulados constitucionais do direito ao silêncio e da não autoincriminação” [8].

Maria Elisabeth Queijo, por seu turno, cita entendimento no sentido de que “o direito de defesa não conduz à extensão generalizada do nemo tenetur se detegere e que o direito ao silêncio não corresponde a um direito à mentira” [9], o qual, de qualquer forma, encontraria limites, por exemplo, na imputação falsa de crime a outrem [10].

Nesse sentido, a derivação do direito a combinar versões com outros acusados do nemo tenetur parece ser precária. É preciso investigar a existência de um fundamento para isso e, se encontrado, estabelecer limites autorizativos [11].

Direito à ampla defesa
Um ponto de partida para uma possível autorização para a combinação de versões entre acusados seria o bom e velho direito à ampla defesa. Nesse sentido, ao tratar do crime de obstrução de justiça, Adriano Teixeira e Luciano Feldens afirmam que há atos de defesa legítimos que nem mesmo se encontram previstos expressamente em lei e que, em face do princípio da ampla defesa, “o investigado pode fazer tudo em proveito de sua defesa que não seja em si ilícito”, como, por exemplo, arrolar apenas testemunhas cujos depoimentos lhe favoreçam.

Dizem, ainda, que o mesmo vale para o advogado, já que “o direito de defesa do cidadão é exercido, em grande parte, por seu defensor constituído” [12], daí não haver proibição de que o advogado “discuta estratégia de defesa com corréus e suas respectivas defesas” [13].

É preciso, indagar, no entanto, se discutir estratégia equivaleria a combinar versões fáticas não verdadeiras, ou se limitaria, por exemplo, a omitir declarar sobre fatos que prejudiquem os próprios investigados/acusados.

Conclusão
Como se vê, a questão nada tem de simples. Há muitas perguntas sem respostas e é importante que a controvérsia não seja dirimida nem com base no senso comum, nem de forma apaixonada, unilateral ou corporativa.

É fundamental, e, neste momento, urgente, que sejam estabelecidos os limites do nemo tenetur e da ampla defesa dos suspeitos/acusados para que seus advogados possam exercer seu mister de forma serena e segura e, se o caso, para que seu órgão de classe tenha meios para fazer valer as correspondentes prerrogativas.

 


[1] É possível discutir, por exemplo, quais recursos poderiam ser manejados contra determinada decisão ou se estão presentes determinados elementos típicos dos crimes sob investigação.

[2] Discussão mais abrangente, que não pode ser feita, em GÓES, Guilherme de Toledo. O sigilo profissional no processo penal: uma proposta de reinterpretação. Revista do Instituto de Ciências Penais, v. 7, n. 2, p. 395–433, 2022, que já

[3] Julg. em 05/04/2107.

[4] 6ª Turma, julg. Em 06/08/2019. A decisão foi confirmada pelo STF (HC 184.129/RS, j. 2020).

[5] 5ª Turma, julg. em 26/06/2018.

[6] A ordem foi concedida na ocasião, “mesmo sem resposta definitiva a tal questão”.

[7] FELDENS, Luciano, TEIXEIRA, Adriano. O crime de obstrução de Justiça, Alcance e limites do art. 2º, § 1º, da lei 12.850/2013, São Paulo: Marcial Pons, 2020, p. 9.

[8] RHC 66.908/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis, julg. em 10/11/2016; HC 326.956/SP Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, julg. em 5/11/2015. No mesmo sentido, HC 283.627/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, julg. Em 3/06/2014.

[9] QUEIJO, Maria Elisabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 465.

[10] Ob. cit., p. 277.

[11] Uma proposta envolvendo os deveres extrapenais de cooperação encontra-se em TEIXEIRA, Adriano. Der nemo-tenetur-Grundsatz und außerstrafrechtliche Mitwirkungspflichten. Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, v. 135, n. 2, p. 253–306, 2023.

[12] FELDENS, Luciano, TEIXEIRA, Adriano, Ob. cit., p. 41.

[13] Ob. cit., p. 42

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