Opinião

Razões para a medalha de ouro no ranking da inconstitucionalidade de SP

Autor

  • Estevan Pietro

    é advogado mestre em Direito Administrativo pela Universidade de Coimbra (FDUC/Portugal) especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (Ibet/SP) especializando em Regulação Pública e Concorrência pelo Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre/Portugal) pesquisador do grupo de pesquisa em Direito Administrativo Sancionador do IDP/DF e membro das Comissões de Direito Administrativo e de Relacionamento com o Poder Legislativo da 22ª Subseção da OAB/SP (São José do Rio Preto).

12 de abril de 2024, 17h15

Recentemente, esta ConJur divulgou reportagem intitulada “Índice de inconstitucionalidade de leis em São Paulo chega a 89% em 2022”, afirmando que o “(…) município de São José do Rio Preto saiu do 3º lugar para o topo do ranking de inconstitucionalidade em 2022. Das 44 leis julgadas, apenas cinco tiveram o texto totalmente aprovado pelos desembargadores”. Os dados são frutos do recente Anuário da Justiça São Paulo 2023/2024 (que poderá ser acessado aqui).

Tal como noticiado, o Anuário da Justiça demonstra que, tendo como referência leis declaradas inconstitucionais em 2022, Rio Preto superou o ano anterior, o que não apenas garantiu sua permanência no pódio, mas elevou a sua posição para a primeira do ranking estadual. E quais seriam as razões do alto número de leis inconstitucionais promulgadas pelo parlamento riopretense?

Partindo de possibilidade pretensiosa de que seja possível depurar as razões apresentadas nas diversas manifestações oportunizadas durante as sessões legislativas (declarações de voto, encaminhamentos, discussões, entre outros), existe, na essência, a presença precípua de dois fundamentos eminentemente políticos e com significativa carga de subjetividade.

Fundamentos

Com justificativas formuladas a partir da análise do objeto do projeto de lei e de seu impacto político-social, o Legislativo municipal compreende que determinado projeto merece aprovação ou o rechaçamento de eventual veto do Poder Executivo na justificativa de que a iniciativa legislativa privativa do Poder Executivo ou que a ausência de competência normativa necessita ser relativizada ou até mesmo desconsiderada para o exercício do debate resultante em aprovação da norma e que tal atitude provoque alguma movimentação por parte do Poder Executivo.

Portanto, existe na Câmara local algum sentimento de que o conteúdo precisa sobrepor a forma, resultando no prosseguimento de projeto de lei sabidamente ilegal ou inconstitucional.

Divulgação

O segundo fundamento apresenta elemento crítico pseudojurídico com inegável proeminência política porque, partindo de construção retórica e, aparentemente, desprovida de estatística, existe a narrativa da existência de certa imprevisibilidade dos julgamentos promovidos pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo e, por tal razão, o projeto de lei mereceria aprovação.

Desta maneira, estaria justificado a potencial apresentação de ADI e a condução da lei aprovada ao batismo de fogo organizado pelo Poder Judiciário paulista. Para além disso, ao que tudo indica, existe uma terceira razão pouco visível.

A obrigatoriedade de solicitação de parecer jurídico não possui previsão no Regimento Interno da Casa e, quando solicitado, apresenta natureza meramente opinativa, resultando na desnecessidade de sua presença em todos os projetos de lei, na observância de sua conclusão ou até mesmo na sua total desconsideração. Contudo, pode ser que exista algo além relacionado com esta terceira razão.

Sob pena de utilização de retórica subjetiva e da possibilidade de estar desalinhado com a realidade ou de encontrar outro fator que seja relevante para as alarmantes porcentagens encontradas, se faz necessário maior aprofundamento empírico deste ponto. Para isso, vamos nos valer dos dados colhidos durante os anos de 2021 a 2022, por serem os dados utilizados pelos últimos Anuários da Justiça.

De acordo com levantamento interno, no ano de 2021, o chefe do Poder Executivo de São José do Rio Preto promoveu 19 Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Do total, apenas uma única ADI foi julgada improcedente e outra prejudicada por perda superveniente do interesse. Ou seja, no enfrentamento do mérito, 17 leis municipais foram declaradas inconstitucionais, resultando na inconstitucionalidade de aproximadamente 89,47% das leis questionadas.

Das mencionadas leis inconstitucionais, 13 tiveram parecer jurídico e apenas em três casos os pareceres foram observados pela Câmara Municipal. Todavia, em apenas três casos – dos 13 que foram emitidos pareceres – o TJ-SP entendeu de forma divergente ao contido no parecer jurídico da Casa de Leis.

Em outras palavras, caso os pareceres jurídicos fossem observados e, partindo apenas dos casos em que houve a participação da extinta diretoria jurídica no processo legislativo de tramitação do Projeto de Lei (13 das 19 ADIs de 2021), a inconstitucionalidade das leis daquele ano, segundo interpretação do Órgão Especial do TJ-SP, seria de apenas 23%.

No ano seguinte (2022), segundo levantamento interno, 47 ADIs foram ajuizadas em face de leis rio-pretenses, de iniciativa parlamentar. Desse total, 13 projetos não tiveram a solicitação de parecer; dos 34 projetos que solicitaram parecer, 21 projetos não seguiram a conclusão jurídica. Mas aqui ocorre o plot twist: dos 13 projetos que seguiram o parecer jurídico, o TJ-SP tomou posição contrária em 100% dos casos.

Assim, no ano 2022, todos os projetos de Lei da Câmara Municipal de São José do Rio Preto que seguiram parecer jurídico tiveram a declaração de inconstitucionalidade pelo tribunal paulista.

Poderá haver recursos posteriores ao enfrentamento do mérito e a possibilidade de que alguns questionamentos tenham alcançado os tribunais superiores, mas ainda assim, tal levantamento demonstra, mesmo que indiretamente, a possível (terceira) razão pouco visível.

Duas razões políticas e uma jurídica

Existe, em nossa percepção, a necessária advertência de que aqueles que estão na linha de frente do Legislativo — agentes políticos — necessitam, de forma justificada, alguma parcialidade argumentativa para defesa de sua ideologia, no entanto, para o servidor comissionado não basta apresentar fidúcia para integrar função de chefia, direção e assessoramento (artigo 37, inciso V, CF/88 c/c Tema 1.010 de Repercussão Geral).

Tecnicamente, necessário se faz ir muito além, não apenas quanto ao constante aperfeiçoamento, mas especialmente pela busca por independência técnica.

Assim sendo, a conquista do pódio parece ser gerada por tríade constituída por duas razões políticas — relevantes sob a ótica da arena política e, por tal razão, transborda aqui qualquer consideração jurídica mais enfática — e uma endógena jurídica sazonalmente potencializada, afinal, os cargos comissionados de direção, chefia e assessoramento da Presidência do Poder Legislativo são renovados a cada dois  anos, incluindo seus diretores e o procurador-geral da Câmara.

Em termos estritamente jurídicos, o reflexo da real efetividade da atuação legislativa é verificado pelo resultado obtido no TJ-SP e pela pouca apresentação de recursos interpostos que visassem prevalência daquilo que foi sustentado no parecer emitido durante o processo legislativo. Ainda quanto aos meios e seus resultados, poderá ser visto também em outras ações parlamentares que merecem alguma meditação.

A despeito das regras internas, não há novidade nas utilizações de princípios jurídicos ou de interpretações em tiras, durante as sessões ou nos diversos atos interna corporis, para arrazoar atitudes ou até mesmo falas regimentalmente desautorizadas, mas que seriam justificadas por qualquer princípio indevidamente aplicado para que prevaleça o brocardo “o Parlamento serve para parlar” ou, em casos mais extremos, para alcançar determinado objetivo obstinado pelo parlamentar, como se fosse espécie solitária de paladino da justiça e tudo aquilo que não fosse eco de sua voz ou reflexo de sua face, obrigatoriamente seria considerado espúrio e obstáculo a ser superado para alcance de suposto bem comum.

Ainda que inconscientemente, a prática de condutas de exceção, por meio de interpretações viciadas na justificativa de relativização de incidência das regras aplicáveis para execução de atos ilegais (incluindo os antirregimentais) ou mesmo inconstitucionais, não podem servir de instrumento de navegação segura para alcance de resultado jurídico.

Logo, será necessário a conscientização dos representantes do povo de que o parlar, o legislar e todos os demais atos advindos da atuação parlamentar, incluindo até mesmo a escolha dos seus agentes comissionados, merece temperança e observância ao regramento positivado.

Autores

  • é procurador-geral da Câmara Municipal de São José do Rio Preto (biênio 2023/2024), advogado, mestre em Direito Administrativo pela Universidade de Coimbra (FDUC/Portugal), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet/SP) e especializando em Regulação Pública e Concorrência pelo Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre/Portugal).

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